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    Um vilarejo élfico se desenrolava diante deles, suas construções de madeira simples, porém robustas, contrastando com o frescor do ambiente. Assim que os portões se abriram, Jack conduziu a carruagem para dentro. Ele manobrou até um canto próximo ao muro de madeira bruta, parando com destreza. 

    Logo desceu e começou a desatrelar os cavalos, guiando-os até o estábulo para descansarem e saciarem a sede.

    — Hã?! O que é isso? — vozes surpresas ecoaram pela área, interrompendo o silêncio rotineiro do vilarejo. Jack ergueu a cabeça e notou alguns olhares fixos e expressões de espanto direcionados à carruagem. Não demorou para que entendesse o motivo. 

    Denzel, o elfo negro, emergia lentamente do veículo, indiferente à atenção indesejada. Seus passos firmes, combinados ao contraste de sua pele com o entorno pálido e terroso, despertavam olhares curiosos e desconfiados. 

    Para muitos ali, a presença de um elfo negro era incomum, quase um evento por si só. Apesar de não ser proibido, era raríssimo ver um deles tão longe de Infra. 

    — Boa tarde. — A voz firme de um homem chamou Jack de volta à tarefa de amarrar os cavalos. Ele levantou os olhos e viu um elfo local se aproximando. O homem tinha a postura amigável e estendeu a mão. — Me chamo Kain Frets. Um prazer conhecê-lo.

    Jack aceitou o cumprimento, sua expressão neutra como de costume.  

    — Jack. Não vamos demorar, só precisamos comer alguma coisa e deixar os cavalos descansarem. 

    Kain hesitou por um momento, como se estivesse escolhendo as palavras.  

    — Entendido. Bem, podem ficar o tempo necessário. Temos algumas hospedagens no vilarejo. 

    — Hospedagens? — Jack ergueu uma sobrancelha, surpreso. — Isso é comum em vilarejos?

    O elfo deu um sorriso compreensivo.  

    — Ah, você é de uma cidade grande, não é? 

    — Sou. Não costumo visitar vilarejos. Quando era criança, talvez tenha passado por alguns, mas não me lembro bem. 

    — Compreensível. — Kain assentiu antes de continuar, agora com um tom de orgulho discreto. — Este é Bion, um dos vilarejos mais conhecidos da região. É um ponto de encontro, especialmente para quem precisa de suprimentos ou quer visitar parentes. Por isso, não é tão incomum termos hospedagens por aqui. 

    Jack apenas acenou, indiferente à explicação, mas sem desrespeitá-la. Não era exatamente a conversa mais cativante, mas ele também não ignorava o valor prático da informação. 

    Com um movimento de cabeça, Kain indicou que o seguissem. Jack caminhou logo atrás, enquanto Denzel mantinha alguns passos de distância, sua presença quase como uma sombra. À medida que avançavam pelas ruas de terra batida, Jack não pôde deixar de notar como os olhares se multiplicavam. 

    Moradores interrompiam suas tarefas, crianças paravam de brincar, todos espiando furtivamente Denzel. Era como se ele fosse uma criatura rara, uma visão que não pertencesse àquele mundo pacato. 

    Denzel, no entanto, parecia alheio a tudo, caminhando em silêncio com as mãos nos bolsos e o rosto impassível, como se não desse importância aos olhos que o seguiam. 

    Finalmente, chegaram a uma hospedagem modesta, com uma placa de madeira esculpida pendendo na entrada. Jack olhou de relance para Denzel, que apenas deu de ombros, enquanto Kain gesticulava para que entrassem. 

    O interior da estalagem não era nada fora do esperado para um vilarejo. Jack mal piscou ao observar o chão de madeira rangente, as mesas e cadeiras espalhadas pela área principal. Parecia uma mistura de hall de entrada e sala de jantar. 

    Um conceito prático, mas estranho para ele, acostumado a hospedagens onde esses espaços eram separados. Em locais mais humildes como aquele, no entanto, fazia sentido economizar espaço e combinar as funções.

    À frente, havia um balcão simples, atrás do qual estava uma jovem elfa de vestes modestas. Suas roupas pareciam costuradas à mão, uma colcha de retalhos de cores diversas que fez o senso estético de Jack se contorcer. Ele considerou o visual de gosto duvidoso, mas manteve sua expressão neutra ao se aproximar com a mesma postura apática de sempre. 

    — Boa tarde. — A atendente se curvou levemente, exibindo um sorriso tímido.  

    — Boa… — Jack respondeu, ligeiramente surpreso com a cortesia. — Quero dois quartos. Quanto é? 

    Sem dizer muito, a jovem pegou uma prancheta com um diagrama rudimentar do segundo andar, onde ficavam os quartos. Pequenas fitas verdes e vermelhas marcavam os disponíveis e os ocupados. Com paciência, ela explicou o sistema e pediu que ele escolhesse entre os marcados com verde.

    Jack, sem qualquer interesse em prolongar a interação, apontou aleatoriamente para dois quartos. Enquanto isso, Kain, parado ao lado, engatou conversa com outro elfo que parecia ser um amigo. Eles riam e falavam em um tom leve, o recém-chegado claramente contente com algo. 

    — Aqui estão as chaves, senhor. — A atendente empurrou uma tigela de barro com duas chaves para Jack, que as pegou sem cerimônia. 

    Sem perder tempo, Jack se virou e jogou uma das chaves para Denzel, sentado casualmente em uma cadeira próxima. O elfo negro a agarrou no ar com reflexos afiados. 

    — Faz o que quiser. Partimos ao amanhecer. — Jack declarou, já subindo as escadas com passos pesados. 

    — Certoooo… — Denzel murmurou, seu tom arrastado sugerindo cansaço enquanto girava a chave entre os dedos.

    ⧫⧫⧫

    Dois homens se relaxavam em poltronas acolchoadas, rindo e trocando palavras como velhos camaradas. A sala era, de longe, a mais elegante do estabelecimento, reservada para as reuniões mais importantes da Pousada Pássaro de Ferro. 

    Não que o momento exigisse tal sofisticação — eles estavam ali apenas pela comodidade. Afinal, poltronas macias superaram qualquer cadeira de madeira dura e mal ajustada.  

    — Preciso agradecer de novo, Kain. Sério, obrigado por trazer mais clientes para minha hospedagem. — disse Kriv, enchendo um copo à frente de Kain com um líquido roxo e espesso.  

    — Que é isso. — Kain respondeu, acenando com humildade. — Só fiz o que achei justo. E, pra ser sincero, entre todas as hospedagens do vilarejo, a sua é a mais bem falada.  

    Kriv arqueou uma sobrancelha, esboçando um sorriso brincalhão. — Tá dizendo isso só pra inflar meu ego ou é o que você realmente pensa?  

    — Ambos! — Kain soltou a resposta com um sorriso largo, rindo em seguida.  

    Kain era conhecido por todos no vilarejo. Como líder dos lenhadores e ocasional auxiliar da equipe de construção, destacava-se pela força e pela simpatia. 

    Sua postura robusta e cabelo laranja sempre despenteado eram inconfundíveis, e suas conexões o tornavam querido pelos donos de estabelecimentos. Entre eles estava Kriv Josh, o elfo que dividia a bebida e as risadas naquela tarde.  

    Kriv era um homem que equilibrava a elegância e a força. Embora seus cabelos já exigissem entradas marcantes, evidências de uma calvície iminente, sua estrutura muscular era impressionante, mantendo a imponência de seus anos mais jovens.  

    — Faz tempo que não bebo assim… — Kain comentou, girando o copo entre os dedos. — Ainda mais a essa hora! Preciso redobrar a cautela quando chegar em casa.  

    Kriv gargalhou, sem a menor intenção de poupar o amigo. — Um homem do seu porte, dominado pela esposa? Isso é hilário!  

    — Ah, se eu soubesse que ela era tão mandona, teria pensado duas vezes antes de casar. — Kain suspirou, sorrindo.  

    — Duas vezes? Até três vezes, e você ainda assim casaria. — Kriv replicou com um olhar cúmplice.  

    Eles se encararam por um momento antes de explodirem em mais risadas. Os rostos de ambos estavam corados, e Kain já havia perdido a conta de quantos copos havia tomado depois do segundo.  

    — Pensei que os negócios iam despencar quando começaram a enviar aqueles cavaleiros pra cá. — Kain comentou, lembrando-se dos Cavaleiros Sagrados que patrulhavam o vilarejo em busca de um elfo negro procurado pelo reino inteiro. — Felizmente, nada ruim aconteceu.  

    Kriv resmungou, seu humor azedando ligeiramente. — Nem fala, Kain. Minha aposentadoria tá em jogo. Não posso me dar ao luxo de me ferrar por causa de um elfo negro que decidiu fazer merda.  

    Kain soltou uma risada alta. — Você, falando em aposentadoria? Logo você?!  

    — E por que não? — Kriv ergueu o queixo com fingida indignação. — Tenho um filho, sabia? O garoto atinge a maioridade mês que vem. Tá na hora de passar o bastão e viver de boa enquanto ele toca o negócio.  

    Kain riu mais uma vez, balançando a cabeça. — Só você, Kriv. Só você.

    Entre uma dose e outra, a conversa se desenrolava, ora séria, ora completamente trivial. Era aquele tipo de papo que só amigos de longa data conseguem manter sem o menor esforço, embalado pelo conforto de um bom copo e risadas despreocupadas.

    — Ei, deixa eu te perguntar uma coisa — disse Kriv, com o olhar curioso. — O que achou do garoto novo que te recomendei?  

    Kain coçou o queixo e franziu o cenho como quem revisita memórias recentes.  

    — Minggu? O moleque é incrível! Em poucos meses, ele já é um dos melhores na equipe. Força de sobra e um talento absurdo. Não sei como achou esse diamante bruto, mas você mandou bem, amigo.  

    Kriv deu uma risada orgulhosa enquanto inclinava a jarra para encher mais um copo.  

    — Sabia que você ia gostar dele. Quando ele chegou aqui no vilarejo com a esposa, todo cheio de planos pra recomeçar a vida, deu pra ver de cara que era alguém fora do comum.  

    Kain arqueou as sobrancelhas, interessado.  

    — Ouvi dizer que ele te ajudou em alguma coisa. Foi o quê mesmo?  

    Kriv bateu na testa como se a lembrança tivesse acabado de lhe escapar e, em seguida, soltou um “Ah!” triunfante.  

    — Verdade! Ele colocou três encrenqueiros pra fora daqui. E sem esforço nenhum!  

    Kain se inclinou para frente, surpreso.  

    — Tá brincando comigo! Três caras?  

    — Estou falando sério. — Kriv deu de ombros. — Se treinassem aquele garoto direito, ele virava capitão de divisão nos Cavaleiros do Reino em dois tempos. É raro encontrar alguém assim, com talento natural.  

    Kain assentiu, balançando o copo vazio.  

    — Não é à toa que a molecada sonha em se alistar, mas, convenhamos, a maioria acaba sendo só mais um soldado mediano. Mesmo os poucos que chegam lá no topo têm que ralar muito pra isso.  

    — Alguns elfos camponeses conseguiram, sim. Os capitães da primeira e da quarta divisões, por exemplo. Mas você sabe como é: talento puro, meu amigo. O reino sabe aproveitar isso, pelo menos quando se trata de elfos…  

    Kriv pausou, o tom da voz ficando mais sério.  

    — Nunca vi nenhum elfo negro chegar tão longe, isso é um fato.  

    Kain desviou o olhar, visivelmente desconfortável com o rumo da conversa.  

    — Você tem algum remédio aí? Não posso voltar pro trabalho desse jeito. — Ele apontou para o copo vazio e deu uma risada sem graça.

    Kriv foi até uma mesa próxima e abriu uma gaveta. Tirou um pequeno frasco de vidro com sementes vermelhas e jogou para Kain, que quase deixou cair.  

    — Essas sementes são milagrosas. Cortam o álcool do sangue rapidinho e ainda previnem ressaca. Mas não exagera, porque dizem que podem te deixar meio deprimido.  

    Kain observou o frasco por um momento, murmurando algo para si mesmo.  

    — Sementes Vermelhas de Abelium… Faz tempo que não vejo disso por aqui.  

    Kriv arqueou uma sobrancelha.  

    — E daí?  

    — Elas só nascem na Grande Floresta de Abelium. É curioso pensar no que mais pode existir lá dentro. Componentes raros, plantas que ninguém nunca catalogou…  

    — Olha só, o olhar de explorador apareceu! — disse Kriv, com um sorriso provocador.  

    — Explorador? — Kain franziu o rosto, surpreso.  

    — Tá no sangue, não tá? Seu pai era um, não era?  

    O nome do pai o atingiu como uma flecha. As memórias inundaram sua mente: o homem que era seu herói, desvendando mitos e perseguindo lendas. E, no final, a doença, lenta e cruel, que o levou antes que pudesse realizar seus sonhos.  

    — Ele era, sim. Mas acho que nunca vou ser como ele.  

    Kain abriu o frasco e colocou uma das sementes na boca. O gosto amargo fez seu rosto se contorcer, arrancando uma risada de Kriv.  

    — Isso vai te colocar de volta no eixo. Agora vai lá e tenta não arranjar mais encrenca.  

    Kain deu um sorriso cansado.  

    — Valeu, Kriv. Você é um bom amigo.  

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