Índice de Capítulo

    Kain esperou pacientemente o efeito das sementes vermelhas começarem a fazer efeito antes de se preparar para voltar ao trabalho. Assim que a névoa do álcool saiu de sua mente, ele se levantou, pegou suas ferramentas no depósito do vilarejo, e partiu rumo à floresta. 

    O caminho era bem conhecido por ele, mas isso não diminuía sua cautela. Embora essa área não se conectasse diretamente à temida floresta de Abelium, ainda havia perigos suficientes para deixar qualquer um em alerta.

    A vegetação ao redor era densa, com árvores altas e antigas, que criavam um teto verde e bloqueavam grande parte da luz do sol. A brisa carregava o cheiro terroso de musgo úmido e folhas secas, e o som de pássaros e insetos era um lembrete constante da vida pulsante naquela região. 

    Apesar de mais segura em comparação com Abelium, a floresta ainda abrigava feras mágicas, e Kain sabia que uma ameaça podia surgir de onde menos se esperava.

    Os lenhadores nunca entravam sem escolta, e para protegê-los, havia os Protetores — guerreiros treinados para lidar com qualquer coisa que colocasse o trabalho em risco. Kain havia trabalhado com eles muitas vezes, mas seu papel era mais relacionado à força bruta do que ao combate. Não era um guerreiro treinado, mas, mesmo assim, sua presença costumava ser suficiente para intimidar predadores menores.

    — Kain, ainda bem que voltou. — A voz feminina chegou como um sussurro suave, mas cheio de autoridade. Ele ergueu os olhos para o alto das árvores e avistou uma figura descendo com a leveza de uma folha caindo. Kiara pousou ao seu lado com um salto delicado, seus cabelos dourados balançando enquanto ela aterrissava.

    — Algo aconteceu enquanto estive fora? — perguntou ele, franzindo o cenho. 

    — Ficaram tensas as coisas por aqui — respondeu Kiara, ajustando a espada curta presa à sua cintura enquanto caminhavam lado a lado. 

    Ela usava um colete de couro ajustado, ideal para mobilidade, sobre roupas leves. Embora fosse jovem, havia algo em sua postura ereta e olhar penetrante que transparecia experiência. Kiara era uma guerreira habilidosa, treinada desde a infância por seu pai, e mesmo sem a força bruta de alguém como Kain, sua destreza com a espada era lendária entre os Protetores.

    — “Ficaram tensas”? — Kain repetiu, olhando para ela de soslaio. — Explique melhor.

    Kiara suspirou, o tom de sua voz oscilando entre cansaço e irritação. 

    — A briga semanal entre Minggu e Eron. Aqueles dois discutiram novamente, mas, desta vez, a coisa escalou. — Ela fez uma pausa antes de continuar: — Eron perdeu o controle e atacou Minggu. Bem, não deu muito certo para ele.

    — O quê? — Kain parou de andar, claramente surpreso. — Minggu fez o quê?

    — Acabou com ele. — Kiara deu de ombros, mas seus olhos mostravam que estava relembrando a cena. — Humilhou o Eron na frente de todo mundo. Foi tão rápido que ninguém teve tempo de intervir. Ele usou a própria força de Eron contra ele e o imobilizou. Agora o idiota está emburrado e recusando-se a trabalhar.

    Kain suspirou, passando a mão na nuca. Era difícil lidar com Eron. Ele tinha um temperamento explosivo e uma língua afiada, e seu orgulho sempre o colocava em situações como essa.

    — Vou resolver isso. Onde ele está agora? — perguntou, enquanto voltavam a caminhar.

    — Sentado perto do rio, fingindo que está cuidando das ferramentas. — Kiara lançou um olhar malicioso para Kain. — Boa sorte com ele. Ah, e Kain… — Ela hesitou por um momento. — Tente não piorar a situação, tá?

    Kain deu um meio sorriso. 

    — Eu não prometo nada. 

    Enquanto avançavam pela trilha, ele sentiu o familiar peso da responsabilidade cair sobre seus ombros. Trabalhar com pessoas era, por vezes, mais complicado do que lidar com as feras mágicas que rondavam a floresta.

    Minggu era o tipo de novato que qualquer líder gostaria de ter sob sua supervisão — forte, habilidoso, e com um carisma natural que atraía tanto olhares de admiração quanto de inveja. 

    Recomendado por Kriv, um lenhador veterano de confiança, ele havia rapidamente conquistado seu espaço na equipe de Kain. Sua força física impressionante e sua capacidade de adaptação eram notáveis, mas também vinham acompanhadas de uma personalidade firme, que não hesitava em revidar provocações.

    Essa postura, embora admirável, o colocava em rota de colisão com alguns elfos mais antigos, cuja insegurança se manifestava em olhares hostis e comentários maldosos. 

    Minggu, no entanto, não era do tipo que abaixava a cabeça. Sempre que era confrontado, ele respondia com firmeza, o que frequentemente escalava para discussões acaloradas. Até então, as coisas haviam se limitado a palavras, mas, pelo que Kain ouviu de Kiara, isso tinha mudado.

    Ao chegarem à clareira, a cena habitual se revelou. Os lenhadores estavam ocupados com seu árduo trabalho, cortando e carregando madeira para uma pilha crescente no canto da área. 

    O som de machados se chocando contra os troncos ecoava pela floresta, e o cheiro de seiva misturava-se ao ar úmido. O esforço físico era evidente no suor que escorria pelos rostos e roupas desgastadas dos trabalhadores.

    Mas nem tudo era como deveria ser. Kain notou, com uma expressão séria, um grupo de Protetores reunido em um canto, conversando despreocupadamente. 

    Alguns trocavam risadas, enquanto outros pareciam entretidos em flertes descarados. A visão o incomodou profundamente. Era o trabalho dos Protetores garantir a segurança dos lenhadores, e qualquer distração poderia ser a diferença entre uma vida salva ou uma tragédia.

    — Kiara… — Kain começou, mas sua voz vacilou. Ele não era de confrontar os Protetores diretamente, especialmente porque sabia que isso poderia gerar um conflito entre os grupos. Ele respirou fundo e tentou novamente. — Será que você poderia… conversar com seus companheiros? Pedir para levarem o trabalho mais a sério? Se eu falar, é capaz de levarem pro lado pessoal, e isso pode atrapalhar a dinâmica entre nós.

    Kiara olhou para ele, surpresa pela hesitação, mas logo assentiu. 

    — Ah, claro. Desculpe por isso. Vou cuidar disso agora mesmo.

    Sem esperar mais, ela caminhou até o grupo de Protetores. O som de suas botas leves contra o chão da clareira quase se perdia entre as vozes. Ela se aproximou deles com um ar de determinação, e Kain viu quando ela ergueu a voz, interrompendo as conversas paralelas e os flertes indiscretos. 

    Enquanto isso, Kain respirou fundo novamente, tentando afastar a irritação. Ele ajustou as alças do machado em seu ombro e caminhou até os lenhadores. 

    Cada passo parecia mais pesado que o anterior, não pelo cansaço físico, mas pelo peso da responsabilidade. Esses homens confiavam nele para liderar, protegê-los e, acima de tudo, garantir que todos voltassem para casa no fim do dia. 

    Os lenhadores, ocupados em seu trabalho, não notaram sua aproximação de imediato. O som rítmico de machados contra madeira e o rangido dos troncos sendo arrastados para a pilha davam à clareira uma atmosfera de esforço coletivo. 

    Kain observou por um momento antes de se juntar a eles, decidido a resolver a situação com Minggu antes que aquilo se tornasse um problema maior.

    Kain foi recebido com acenos e sorrisos cansados quando se aproximou de seus lenhadores. Mesmo exaustos, eles mantinham a camaradagem de sempre, um dos poucos luxos que o trabalho pesado permitia. 

    Ele caminhou entre eles, desviando de troncos recém-cortados e ferramentas espalhadas, até encontrar Kruger sentado em um tronco caído. O homem segurava um copo de madeira cheio de água, seus ombros relaxados enquanto recuperava o fôlego.

    — Opa, Kruger, já cansou? — Kain provocou, com um sorriso de canto.

    Kruger ergueu o olhar e respondeu com um riso baixo, a exaustão evidente na sua voz rouca. 

    — Mais ou menos… Ainda bem que essas árvores gigantes nos dão sombra. Ao menos o sol não nos castiga junto com o machado.

    Kain assentiu, olhando ao redor. A clareira estava em relativo silêncio, exceto pelo som distante de lenhadores ainda trabalhando e do vento soprando pelas copas das árvores. Mas algo faltava. Ele franziu o cenho ao perceber que não via a pessoa que estava procurando.

    — Onde está Minggu? — perguntou casualmente, embora seu tom denunciasse a preocupação subjacente.

    Kruger ergueu uma sobrancelha, um sorriso brincando em seus lábios.

    — Seu protegido? Hahaha, acho que foi mais pro fundo da mata, depois do show de hoje cedo.

    O comentário fez Kain cerrar levemente os lábios. Ele inclinou-se para a frente, apoiando as mãos nos quadris.

    — Não o chame de “meu protegido”, Kruger. Você sabe que essas coisas podem… incomodar.

    Kruger deu de ombros, bebendo o restante da água antes de responder.

    — Se incomoda ou não, chefe, acho que já pegou. Todo mundo chama ele assim, até os Protetores.

    Kain suspirou. Ele sabia que o apelido carregava implicações que Minggu provavelmente detestava. Para os outros, era uma forma de colocá-lo sob a sombra de Kain, diminuindo sua independência e conquistas. Ele ainda não tinha certeza se isso realmente afetava o garoto, mas preferia não correr o risco.

    — E Eron? Onde ele está? — Kain mudou de assunto, sua voz mais direta.

    Kruger inclinou a cabeça em direção ao rio, a alguns metros de distância.

    — Emburrado por ali. Sentado no barranco, mexendo em alguma coisa.

    Kain seguiu o olhar do lenhador e avistou uma figura solitária no limite da clareira, perto da margem do rio. Eron estava de costas, o som da água corrente misturando-se ao farfalhar das árvores. Ele parecia absorto, seus movimentos lentos enquanto mexia em algo que Kain não conseguia identificar de onde estava.

    Suspirando profundamente, Kain agradeceu com um aceno e começou a caminhar na direção de Eron. 

    Kain se aproximou de Eron com passos firmes, seu olhar sério carregando um traço de impaciência. Eron, sentado em uma pedra próxima à margem do rio, não se deu ao trabalho de olhar para cima. 

    Ele estava concentrado em passar os dedos por um pedaço de madeira que parecia estar entalhando, talvez mais para ocupar as mãos do que por interesse genuíno.

    — Eron, será que você pode voltar ao trabalho e parar de agir como uma criança mimada? — começou Kain, cruzando os braços. Seu tom era firme, mas carregava um leve sarcasmo. — Você tem o quê, trinta anos? Já passou da hora de agir como um homem adulto, não acha?

    A provocação atingiu Eron em cheio. Ele finalmente levantou o olhar, seus olhos brilhando com uma mistura de irritação e frustração.

    — Vai se ferrar, Kain! — disparou ele, deixando o pedaço de madeira cair ao chão. — Você sempre toma o lado daquele moleque! Sempre!

    Kain suspirou, passando uma das mãos pela barba rala que cobria seu queixo.

    — E quem foi que começou a confusão dessa vez, Eron? — perguntou, sua voz carregando um peso deliberado.

    O silêncio que se seguiu foi mais eloquente do que qualquer resposta que Eron poderia dar. Ele desviou o olhar, apertando os lábios enquanto sua expressão endurecia. 

    — Olha, Eron — continuou Kain, inclinando-se um pouco para frente, como se tentasse reforçar sua autoridade —, eu não tenho tempo para lidar com suas birras. Somos adultos aqui. E o garoto que você resolveu partir pra cima tem idade pra ser seu filho. 

    Eron bufou, ainda sem encarar Kain, mas o rubor em seu rosto o entregava.

    — Então chega dessa palhaçada e volta ao trabalho — Kain completou, endireitando-se novamente. — Caso contrário, vou começar a descontar do seu salário. E você sabe o que isso significa.

    A menção de “salário” fez Eron estremecer quase imperceptivelmente. Seus ombros tensionados relaxaram levemente enquanto ele processava a ameaça. Relutante, ele levantou-se devagar, limpando a poeira das calças com um movimento irritado.

    — Injustiça da porra… — murmurou baixo, mais para si mesmo do que para Kain, enquanto começava a caminhar em direção às ferramentas largadas no campo.

    Kain observou a cena, lutando para não rir. 

    — E nada de reclamações, Eron! — gritou, seu tom mais leve agora. — Se reclamar, desconto mais um pouco do salário!

    Eron virou a cabeça apenas o suficiente para responder com um grunhido abafado.

    — Tá bom! Tá bom!

    Kain soltou uma risada curta, balançando a cabeça. Seus olhos acompanharam Eron até o ponto onde ele retomou o trabalho com os outros lenhadores. Por um momento, Kain ficou parado ali, observando o campo. 

    Os sons de machados cortando madeira e vozes abafadas preencheram o ar, misturando-se com o vento que sussurrava nas copas das árvores.

    Mas ainda havia algo incompleto. Seus olhos vagaram pela clareira, procurando um rosto familiar.

    — Onde será que ele se meteu agora…? — murmurou para si mesmo.

    Sem perder tempo, ele ajustou o peso do machado que carregava sobre o ombro e começou a andar, seguindo uma trilha improvisada pela floresta. Se conhecia Minggu o suficiente, o garoto provavelmente tinha ido mais fundo na mata, onde ninguém o incomodaria.

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