Capítulo 3 – Mansão Ravens
Acordar cedo era sempre um fardo, mas Richard já havia se acostumado. Era algo que fazia por obrigação, por ter responsabilidades a carregar, mesmo que isso arrancasse um pedaço de sua alma a cada manhã.
Naquele dia, porém, ele despertou com uma dor de cabeça latejante, fruto do sonho que o atormentara durante a madrugada.
A imagem dela ainda pairava em sua mente, tão nítida quanto dolorosa: sua mãe, a mulher que o trouxera a este mundo.
Ele odiava lembrar.
Não porque não a amava — muito pelo contrário.
Ela fora a única a ouvir seus devaneios infantis sem julgamentos, a única que o fez sentir que havia algo mais. Mas recordar-se dela era reviver a escolha que mudara o rumo de sua vida, uma decisão que o condenara a uma existência que ele desprezava.
Com esforço, Richard empurrou a memória de volta para o canto mais profundo de sua mente, onde ela não poderia feri-lo tão facilmente. Ainda assim, acordou com um susto, ofegante.
Sentou-se na cama, o coração batendo forte, o peito se movendo rápido como se tivesse acabado de fugir de algo. Ele passou as mãos pelo rosto e depois pelos cabelos, sentindo o suor frio. Só então seus olhos se ajustaram ao ambiente, e a visão do quarto familiar o acalmou.
Respirou fundo, mais uma vez e outra, até o ritmo desacelerar.
Era um quarto magnífico, um lugar que muitos chamariam de tesouro. Como dono de uma posição de prestígio no reino dos elfos, parecia natural que Richard vivesse cercado de luxo.
Ao menos era isso que as pessoas acreditavam. Ele, por outro lado, não dava a mínima para toda aquela ostentação.
Os tapetes no chão formavam círculos intricados com bordas banhadas a ouro. Um abajur, com curvas elegantes e minuciosamente detalhado, reluzia à luz da manhã, valendo provavelmente mais do que a casa de um cidadão comum.
Ele se levantou, os pés afundando levemente no tecido macio, e parou diante de um espelho imenso, que refletia sua figura parcialmente desnuda. As bordas do espelho eram cravejadas de pedras preciosas que cintilavam mesmo sob a luz pálida. Era belo, sem dúvida, mas vazio para ele.
Com passos lentos, Richard caminhou até o armário, as mãos se apoiando nas maçanetas de prata trabalhada. Quando abriu as portas, revelou uma coleção de roupas dignas de realeza: tecidos delicados, costuras impecáveis, detalhes entalhados à perfeição. Eram peças que poucos sequer poderiam sonhar em possuir.
E ainda assim, ele olhava para elas sem interesse. Tudo aquilo era brilho sem significado. Apenas mais um lembrete de que vivia cercado de coisas que não o preenchiam.
Richard pegou uma camisa de linho branco, de tecido macio e corte impecável, e a vestiu com movimentos automáticos. Em seguida, escolheu uma calça da mesma cor e terminou de se arrumar sem pressa.
Caminhou até outro compartimento do armário, onde estavam dobrados vários jalecos de um vermelho intenso, quase da cor de seus cabelos. Escolheu um e o vestiu com calma, ajeitando os punhos antes de voltar ao espelho.
Ali, no reflexo cintilante cercado de pedras preciosas, ele viu a mesma imagem de sempre: um homem que qualquer pessoa no mundo julgaria realizado.
“Ele deve ser imensamente feliz”, pensariam ao ver aquele quarto repleto de luxos e o homem bem vestido que vivia nele. Afinal, Richard possuía tudo o que muitos desejam: poder, dinheiro, influência, uma aparência marcante. E além disso, algo que poucos poderiam alcançar. Ele era especial.
Mais especial que os outros.
O mundo fizera questão de deixar isso claro. Desde cedo, ele foi um entre milhares, talvez bilhões, um gênio completo. Talento natural, habilidade inata, inteligência brilhante — todos os rótulos que as pessoas adoravam colocar sobre ele.
Mas seu rosto contava uma história diferente.
Havia algo no olhar de Richard, um vazio impossível de ignorar, como se todo aquele brilho externo fosse uma fachada frágil para esconder uma tristeza tão profunda que nem ele conseguia entender. Era o tipo de dor que, se confessada, arrancaria olhares de incredulidade e desprezo. “Você tem tudo que alguém poderia querer”, diriam. E, de fato, ele tinha.
Na rua, era reverenciado como um semideus.
Os olhares de admiração seguiam seus passos, homens e mulheres o contemplavam com desejo e inveja. Seu sorriso gentil e a maneira respeitosa com que tratava todos ao seu redor apenas alimentavam a ilusão.
Para muitos, Richard era a personificação da perfeição: bonito, poderoso, gentil, inatingível.
As propostas de casamento não paravam de chegar. Mais de trezentas até agora, cada uma rejeitada com a mesma polidez que ele usava para dispensar as tentativas de flerte e cantadas que recebia. Ele sempre era gentil, até mesmo encantador em suas recusas.
Mas ninguém nunca viu o homem por trás desse papel.
Nem mesmo ele sabia se ainda havia algo por trás.
Richard terminou de se arrumar ajustando o cinto que repousava ao lado da cama. Nele, pendurou a bainha onde repousava sua espada. O gesto era metódico, quase ritualístico, como se estivesse se preparando para um dia que exigiria mais do que roupas finas e sorrisos calculados.
Caminhou até a janela e afastou a cortina. A luz do sol invadiu o quarto, tingindo o tapete com um brilho dourado.
Ele manteve a cortina em uma das mãos, enquanto seus olhos vagavam pelo quintal lá embaixo.
Era um cenário ainda mais grandioso que o próprio quarto. Do alto, ele observava o vai e vem de seus empregados, figuras diligentes movendo-se pelo extenso jardim.
Richard não mantinha um quadro de empregados comum. Havia vinte e cinco deles em sua propriedade, todos oriundos de famílias nobres de baixa posição.
Era uma prática habitual entre os poderosos: preferir que nobres menores ocupassem posições como mordomos e arrumadeiras. Isso evitava que pessoas sem instrução ou status passassem pelas portas de suas casas — algo que muitos consideravam mais “seguro” e adequado.
Duas empregadas atraíram sua atenção enquanto atravessavam o jardim, carregando bacias nas mãos.
Caminhavam lado a lado, conversando animadamente. A risada ocasional e os sussurros abafados deixavam claro que estavam fofocando. De repente, uma delas olhou para cima, como se algo tivesse chamado sua atenção.
Seus olhos encontraram os de Richard.
Houve um instante de hesitação, e então ela cutucou a colega com o ombro.
Ambas voltaram o olhar para ele, seus rostos imediatamente tingidos de vermelho. Ficaram imóveis, como se a visão de Richard as tivesse transformado em estátuas, presas entre a surpresa e a admiração.
Richard ergueu a mão em um aceno casual.
O gesto, tão pequeno para ele, provocou um brilho radiante nos rostos das duas. Elas trocaram sorrisos excitados, como jovens fãs recebendo a atenção de seu ídolo.
Sem dizer uma palavra, Richard deixou a cortina cair devagar, escondendo novamente o mundo exterior. Atrás do tecido pesado, ouviu o som abafado de risadas felizes se afastando pelo jardim.
Era sempre assim. Sempre seria.
⧫⧫⧫
A empregada-chefe da mansão Ravens caminhava pelo corredor com sua postura impecável, cada passo ecoando uma autoridade silenciosa. Seus ombros alinhados, as mãos firmemente cruzadas atrás das costas e o olhar fixo à frente transmitiam um aviso claro: ali não havia espaço para erros.
Trabalhar sob o teto de Richard Ravens, um homem quase venerado como divino, era um privilégio reservado aos melhores.
Comportamento adequado?
Não.
Perfeição.
Quando passou por uma porta dupla, encontrou a origem de uma perturbação que já havia captado — risos abafados e descompassados.
A porta estava entreaberta, e sua visão caiu sobre duas jovens empregadas que conversavam animadamente. Suas risadas preenchiam o ar como música inadequada para aquele cenário de absoluta ordem.
O rosto da mulher endureceu, embora a mudança fosse sutil. Novatas. Era isso que aquelas duas eram. Chegaram juntas há pouco tempo, ainda sem entender completamente o peso do privilégio que lhes fora concedido.
No entanto, ela não era mulher de desculpas. Faltar ao trabalho para rir como colegiais? Imperdoável.
Seu olhar severo se estreitou à medida que avançava, os passos curtos e calculados amplificando sua presença.
As jovens estavam tão distraídas com a conversa que só perceberam a aproximação quando um som seco cortou o ambiente — uma tosse leve, mas intencional.
Elas congelaram.
O clima mudou instantaneamente. O rubor que antes tingia os rostos das meninas por causa da empolgação agora carregava tons de medo e vergonha. Suas risadas se dissiparam como fumaça.
De frente para a figura imponente da empregada-chefe, as duas se endireitaram em um gesto automático, incapazes de esconder a culpa.
Os olhos da mulher, frios como aço, pairaram sobre elas com um julgamento silencioso. Ela não precisou dizer nada. O peso da expectativa e do descontentamento estavam claros no ambiente, tão palpáveis quanto o silêncio que se seguiu.
— A-ah! Senhorita Amena… — A empregada de cabelos castanhos gaguejou, visivelmente perturbada, quase perdendo o equilíbrio da bacia de água em suas mãos.
— Senhora… — A segunda, de longos cabelos loiros, murmurou, a voz presa em sua garganta. Surpresa e medo lutavam em seus olhos, tornando-a incapaz de formular mais do que um sussurro.
Amena manteve o olhar firme.
Repreender jovens bonitas não era algo que a agradava, mas sua função exigia disciplina. No comando de uma equipe de 25 empregados, cada detalhe do trabalho precisava correr sem falhas, sem atrasos. E isso incluía lidar com deslizes, por menores que fossem.
— Não acham que estão sendo desrespeitosas demais? — Sua voz soou como aço envolto em veludo, firme, porém sem perder o tom educado. O equilíbrio em sua fala revelava uma pessoa de estudo e disciplina, alguém que dominava as exigências de sua posição como empregada-chefe.
Apesar da severidade, Amena não se permitia esquecer quem eram aquelas jovens.
Nobres de baixa posição, sim, mas ainda nobres. A formalidade era uma linha que ela jamais cruzava, mesmo nas reprimendas. O respeito em sua postura permanecia intacto, sua compostura um lembrete constante de que tudo ali era regido por ordem e hierarquia.
As duas garotas, agora tensas, pareciam encolher sob o peso do olhar da chefe. As circunstâncias não podiam ser piores. Após horas de trabalho árduo, o momento raro de descontração fora interrompido no instante mais inoportuno. Era como se o destino houvesse armado uma armadilha cruel.
— S-sinto muito, senhorita Amena. Isso não vai se repetir… — balbuciou a jovem de cabelos castanhos, inclinando-se em uma reverência apressada. A bacia em suas mãos impedia um gesto mais profundo, mas o esforço era claro.
A outra jovem rapidamente seguiu o exemplo, murmurando pedidos de desculpas em voz baixa, o rosto avermelhado pelo constrangimento.
Amena observou ambas com atenção, medindo a sinceridade em suas palavras. Apesar da falha, havia algo genuíno no arrependimento das jovens. Contudo, ela não era mulher de deixar brechas para repetição. A lição precisava ser aprendida.
— Tudo bem, apenas não repitam isso novamente. Lembrem-se do lugar onde estão, sim? — Amena manteve o olhar firme, mas sua voz carregava um tom mais leve. Aceitara as desculpas sinceras das jovens, mesmo que sem demonstrar indulgência em seu semblante.
— S-sim, senhora!
— Claro, pode deixar, senhora!
As duas responderam apressadas, inclinando a cabeça em respeito, ainda tensas, mas visivelmente aliviadas.
Embora severa, Amena sabia que exigir perfeição de duas empregadas com apenas uma semana na mansão seria insensato. Puxar as rédeas e saber quando soltá-las era uma arte que ela dominava bem. Não se tratava apenas de impor disciplina, mas de orientar, permitindo o crescimento daqueles sob sua liderança.
— E então, como estão as coisas por aqui?
A voz masculina soou firme, porém acolhedora, vindo do corredor. Os passos curtos e marcados o anunciaram antes mesmo que sua figura surgisse. Enquanto Amena irradiava seriedade e disciplina, o homem que se aproximava parecia envolver o ambiente com uma aura de calma e carisma inabaláveis.
Com um porte físico mediano, cabelos grisalhos cuidadosamente penteados, e uma barba bem aparada, o mordomo-chefe trajava um uniforme impecável, que realçava sua presença.
Apesar de seus muitos anos de vida, havia algo vigoroso em sua postura, como se o peso da idade houvesse sido transformado em sabedoria. Ele era o outro chefe dos empregados da mansão, dividindo a liderança com Amena, mas em horários diferentes para garantir o descanso de ambos.
— As coisas? — Amena repetiu, a voz carregando uma nota de desagrado. Sua expressão se fechou ao ouvir o tom casual dele, algo que a incomodava profundamente.
— Oh? Perdão pela indelicadeza. — O mordomo respondeu com um sorriso leve, claramente despreocupado.
— Você não cansa de brincar? — Amena rebateu, sua voz carregando uma pontada de irritação.
Era evidente que os dois eram como água e óleo. Enquanto Amena seguia cada regra com rigor quase obsessivo, mantendo a ordem como uma segunda pele, o mordomo parecia se mover com a facilidade de alguém que via o trabalho como um jogo bem executado.
Essa descontração, sempre presente no comportamento dele, era algo que a deixava profundamente irritada. Para Amena, aquilo soava como uma afronta ao peso da responsabilidade que carregavam. E para ele? Talvez fosse apenas uma maneira de lembrar que, mesmo nos ambientes mais rígidos, ainda havia espaço para leveza.
— Brincar? Do que está falando, minha cara? — Elber inclinou a cabeça com uma expressão de dúvida, mas o sorriso em seus lábios permanecia intacto.
Amena suspirou, preferindo ignorá-lo. Virou-se para as duas jovens empregadas, mantendo o tom autoritário:
— Não percam mais tempo. Voltem ao trabalho.
As garotas se curvaram rapidamente, um gesto cheio de respeito e alívio, antes de se retirarem apressadas.
Elber acompanhou a saída delas com um sorriso gentil, os olhos cheios de algo que se assemelhava a orgulho, como se estivesse observando filhas desempenhando bem suas tarefas.
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