Índice de Capítulo

    A carruagem avançava tranquilamente pelas estradas de terra batida, o ranger das rodas ecoando suavemente entre as árvores das florestas densas que ladeavam o caminho. Os galhos altos entrelaçavam-se acima, formando uma cúpula natural que filtrava a luz do sol, lançando sombras que dançavam no chão irregular. A estrada seguia quase que em linha reta, quebrada ocasionalmente por bifurcações cobertas de folhas secas. A quietude era interrompida apenas pelo som dos cascos dos cavalos contra o solo e o sutil farfalhar da vegetação ao redor.

    No assento dianteiro, segurando as rédeas com firmeza, estava Richard Ravens, um cavaleiro sagrado com a postura ereta de quem carregava mais do que o peso do próprio corpo. 

    Ao seu lado, silencioso e sombrio, estava Tiko, um elfo negro marcado pelo fardo de uma acusação que o tornara fugitivo em seu próprio reino. A jornada dos dois era compartilhada, mas o abismo entre eles era perceptível. Não havia palavras trocadas desde que deixaram a cidade ao amanhecer. Não porque faltassem coisas a dizer, mas porque já haviam discutido tudo o que importava antes de partirem.

    Tiko havia concordado em levar Richard até o lugar onde se escondia, um refúgio próximo a um pequeno vilarejo. Era uma concessão feita com relutância, impulsionada pela esperança — ou talvez pelo desespero — de encontrar alguma forma de justiça. 

    Tiko buscava não apenas provar sua inocência nas acusações de assassinato dos próprios pais, mas também descobrir os verdadeiros culpados. Um desejo que parecia tão distante quanto as estrelas visíveis nas noites mais claras.

    Richard, por sua vez, estava determinado a ajudá-lo. Ele conhecia a história de Tiko, ou ao menos partes dela, e sabia que o elfo carregava cicatrizes mais profundas do que os olhos podiam ver. Embora quisesse trazer alguma reparação, Richard entendia que não poderia apagar os horrores que o elfo negro havia sofrido nas mãos de seu próprio povo. 

    O cavaleiro não alimentava ilusões de que a justiça plena fosse possível, mas acreditava que ajudar Tiko a alcançar uma verdade — mesmo que amarga — poderia ser um começo.

    Apesar de sua disposição para ajudar, Richard sabia que sua bússola moral tinha limites. Ele era um cavaleiro sagrado, e suas ações deveriam refletir o bem maior. Sacrificar um reino inteiro para salvar um homem, por mais inocente que fosse, não era algo que poderia aceitar. Ainda assim, ele estava disposto a arriscar, desde que o preço não recaísse sobre as pessoas que jurara proteger.

    Os dois viajantes estavam imersos em seus próprios pensamentos enquanto a carruagem seguia adiante. Richard, com as rédeas firmes em mãos, olhava a estrada com olhos treinados, mas sua mente vagava pelas implicações do que estavam prestes a fazer. Já Tiko, de perfil fechado, mantinha os braços cruzados, o capuz jogado sobre a cabeça sombreando o rosto. 

    O elfo parecia perdido, os olhos fixos na paisagem que passava lentamente, como se cada árvore e sombra o puxassem de volta a memórias que preferia esquecer.

    — Acha que vamos conseguir chegar antes de anoitecer? — Pela primeira vez desde que haviam subido na carruagem, Tiko quebrou o silêncio. Sua voz, embora baixa, carregava uma tensão palpável. O semblante preocupado no rosto do elfo negro deixava claro que algo o incomodava.

    Richard manteve os olhos na estrada por alguns segundos antes de responder, um sorriso discreto puxando o canto de seus lábios.

    — Talvez… — Ele lançou um olhar breve para os cavalos que puxavam a carruagem com vigor. — Esses aqui são Elmorazes.

    Tiko ergueu uma sobrancelha, desviando o olhar para os animais à frente.

    — Hm? Ah, eu sei. Meus pais tinham alguns. Tirando os cavalos de guerra dos cavaleiros sagrados, os Elmorazes são os mais rápidos do reino. Nobres brigam por eles, não é? — Sua voz suavizou por um momento, um vestígio de nostalgia transparecendo ao lembrar das lições de montaria com seu pai.

    Richard o observou por um instante, antes de soltar uma risada curta e voltar os olhos para a estrada.

    — É, às vezes eu esqueço que você cresceu entre uma família de elfos.

    Tiko bufou de leve, mas não parecia irritado.

    — Eu entendo por que você estranharia. Admito que é… fora do comum. Fui um sortudo, entre muitos outros que não tiveram a mesma sorte. — Ele fez uma pausa, o tom da sua voz endurecendo de novo. — Mas então, vamos chegar antes do anoitecer?

    Richard franziu o cenho, percebendo a inquietação crescente no elfo.

    — Talvez. Por que tanta pressa?

    Tiko hesitou, os olhos fixando-se na linha do horizonte, onde a floresta densa parecia se fundir com o céu que começava a escurecer. Ele abriu a boca para responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Finalmente, soltou um suspiro e murmurou:

    — Tem uma pessoa… — Ele parou novamente, como se a frase fosse pesada demais para ser completada. Seus olhos vagaram pela estrada antes de finalmente acrescentar: — Uma pessoa que deve estar preocupada comigo.

    Richard ergueu as sobrancelhas ligeiramente, mas não pressionou.

    — Oh… — foi tudo o que disse, sua curiosidade substituída pela percepção de que o assunto era mais pessoal do que parecia.

    O sol desapareceu rapidamente no horizonte, deixando para trás um céu tingido de tons arroxeados e azuis profundos. A noite descia como um manto pesado, e a estrada à frente tornou-se um borrão de sombras indistintas. Richard reduziu o ritmo dos cavalos, puxando suavemente as rédeas para evitar que colidissem com qualquer obstáculo escondido pela escuridão.

    Tiko, sentado ao seu lado, acendeu uma lamparina que havia trazido, a chama dançando timidamente contra o vento da noite. A luz vacilante projetava sombras ondulantes nas árvores ao redor, criando uma atmosfera quase surreal. Ele segurava a lamparina com firmeza, iluminando o caminho o melhor que podia, enquanto sua mente parecia vagar para um lugar distante.

    A viagem continuou em silêncio. Richard, embora curioso, respeitou o espaço do elfo. Ele sabia que qualquer pergunta poderia tocar em feridas ainda abertas. Quanto a Tiko, ele parecia cada vez mais fechado em seus próprios pensamentos, como se a escuridão ao redor espelhasse algo dentro de si.

    ⧫⧫⧫

    Após várias horas de viagem e já tendo atravessado o vilarejo próximo à residência de Tiko, Richard reduziu o ritmo da carruagem até detê-la por completo. Tiko observava a casa à sua frente com uma expressão intrigante, mesclada a algo que poderia ser descrito como arrependimento ou talvez culpa. Richard apenas o observou enquanto ele começava a descer da carruagem.  

    Logo, ambos perceberam uma luz acender-se no interior da casa, antes completamente imersa na escuridão. O brilho vacilante, como se conduzido por mãos invisíveis, deslocava-se pelo cômodo até que, por fim, a porta de madeira rangeu ao se abrir.  

    Um elfo idoso surgiu no limiar, fitando os dois visitantes com um semblante de absoluto espanto. Entre as figuras que se perfilavam diante de sua residência, uma era ninguém menos que Richard Ravens, o homem mais influente de todo o reino. 

    Um calafrio percorreu-lhe a espinha, mas o fato de Tiko estar ao lado de Richard, e não sob custódia, permitia-lhe deduzir que, ao menos por ora, o poderoso senhor não viera como inimigo.  

    — Tiko… — murmurou GolbZedh, desviando a atenção brevemente para o jovem, embora mantivesse os olhos atentos em Richard Ravens, cuja presença dominava o momento. — …O que está acontecendo…?

    O semblante contorcido de Tiko deixava evidente a importância que aquela pessoa tinha para ele. Para alguém que normalmente mantinha um rosto fechado e adotava a postura mais direta e seca possível, era raro exibir uma expressão tão carregada de emoções. Ele aproximou-se de GolbZedh com um gesto quase afetuoso.  

    — Ele está aqui para me ajudar, GolbZedh — explicou Tiko.  

    — Ajudar?  

    Richard Ravens, já de pé no chão, interveio na conversa.  

    — Isso mesmo, senhor. Meu objetivo aqui é auxiliar Tiko. Pode ficar tranquilo.  

    Richard procurou transmitir a maior dose de sinceridade possível, e pareceu bem-sucedido, pois GolbZedh relaxou visivelmente o corpo em resposta às suas palavras.  

    — Bem… — GolbZedh fixou o olhar em Tiko, e a sutil mudança em sua expressão deixou claro que ele estava prestes a abordar um assunto delicado. — Você fugiu de casa sem dizer uma palavra… o que estava pensando?  

    — Eu não fugi! — A voz de Tiko vacilou em resposta. Fugir parecia uma palavra demasiado drástica para descrever suas intenções. Seu verdadeiro objetivo era provar sua inocência, mas ele sabia que tentar conversar com GolbZedh sobre ir às cidades élficas não resultaria em um diálogo genuíno, e sim em uma discussão que, inevitavelmente, culminaria em uma briga. Por isso, Tiko optara por partir sem qualquer aviso. — Eu só queria…  

    GolbZedh aproximou-se de Tiko, e, com um gesto rápido que este poderia ter evitado, abraçou-o. Os olhos de Tiko se arregalaram. GolbZedh nunca o abraçara antes. Apesar de demonstrar, à sua maneira, que se importava genuinamente com Tiko, ambos eram indivíduos que preferiam ações a palavras para expressar seus sentimentos.  

    Para Tiko, GolbZedh sempre fora um amigo. Ainda que sua forma de demonstrar isso fosse marcada pela dureza.  

    Os braços de Tiko permaneceram tensos, caídos ao lado do corpo, incapazes de retribuir o gesto. Ele se sentia indigno de corresponder àquele afeto, considerando o quanto havia preocupado GolbZedh com seu desaparecimento. Durante toda a viagem ao lado de Richard, Tiko não conseguira processar adequadamente como enfrentaria aquele homem, o que o deixara tenso, ansioso, com tudo culminando naquele instante.  

    Por um breve momento, moveu os braços lentamente, trêmulos, mas parou no meio do gesto. A culpa permanecia como um peso esmagador dentro de si.  

    — Você não faz ideia… do quanto eu me preocupei… estou feliz que você está bem… — murmurou GolbZedh, a voz oscilando como se estivesse à beira das lágrimas. 

    Os olhos de Tiko começaram a arder. Derramar lágrimas era algo que ele abominava; considerava um sinal de fraqueza. Esforçou-se ao máximo para manter a postura, mas não conseguiu impedir que uma única lágrima escorresse lentamente por sua bochecha.  

    Seus braços, enfim, envolveram as costas de GolbZedh. Ambos permaneceram abraçados por alguns segundos antes de se separarem novamente.  

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