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    — Você não deveria estar aqui, deveria? — Amena perguntou, agora voltando sua atenção para ele. Seus olhos carregavam impaciência, enquanto o sorriso dele parecia imune a qualquer censura.  

    Era verdade: ele não deveria estar ali. Amena era responsável pelo turno matutino e vespertino, enquanto Elber assumia a partir do entardecer, cuidando de tudo até o amanhecer seguinte. Mas agora, fora de seu horário, ali estava ele, tão confortável como se aquilo fosse completamente natural.  

    — Entendo, essa é a sua dúvida? — respondeu Elber, como se estivesse ponderando algo trivial.  

    — Caso tenha algo a dizer, diga logo — Amena o cortou, cada palavra carregando um senso de urgência.  

    — Não estou aqui a trabalho. Pelo menos, não nosso trabalho usual.  

    Amena estreitou os olhos, tentando decifrar o significado por trás daquelas palavras. A curiosidade lhe mordeu, mas ela reprimiu o impulso de questioná-lo. Não daria ao colega a satisfação de parecer interessada.  

    Foi então que um homem de cabelos vermelhos surgiu no corredor, movendo-se com a facilidade e a graça de alguém que não precisava justificar sua presença em lugar algum. Richard Ravens, dono da mansão e o mais poderoso entre os elfos, excetuando o rei, não trajava seu uniforme cerimonial de paladino. 

    Era um dia de folga, afinal, e suas roupas casuais refletiam isso: elegantes, mas confortavelmente práticas.  

    — Muito bom dia, Amena, Elber.  

    Amena e Elber imediatamente se inclinaram em reverência, os movimentos sincronizados.  

    — Muito bom dia, mestre Richard — saudou Amena, ainda curvada. 

    — Um bom dia, mestre Richard — ecoou Elber, com a mesma deferência, embora sem perder seu tom habitual de leveza.  

    Richard ergueu uma mão, um gesto casual, quase embaraçado, enquanto coçava a cabeça.  

    — Apenas Richard é suficiente…  

    Amena, no entanto, manteve-se firme em sua formalidade. Levantou-se lentamente, respondendo com compostura.  

    — Mestre Richard, as novas contratadas estão se adaptando bem ao trabalho.  

    Richard sorriu, o tipo de sorriso que carregava sinceridade e bondade. Era um contraste tão marcante com o de Elber que até Amena, sempre contida, sentia um calor interno ao vê-lo.  

    — Fico feliz em ouvir isso. Vejo que elas parecem bem à vontade.  

    — Sim, estão muito gratas pela oportunidade de servir ao senhor, mestre Richard.  

    Embora ele tivesse insistido que o chamassem apenas pelo nome, Amena não cedia. Para ela, tratá-lo com menos formalidade seria uma afronta, um desrespeito que ela jamais permitiria a si mesma cometer.

    Richard Ravens detinha um título que o tornava uma figura única e lendária na história do reino élfico: o único cavaleiro sagrado com a classificação de Paladino. Essa posição, reconhecida em todo o continente, era rara mesmo entre os humanos, a raça dominante, e absolutamente inédita para os elfos.  

    No continente, a política favorecia os humanos, que controlavam três reinos distintos, enquanto os elfos, com apenas um reino — compartilhado com os elfos negros, sua sub-raça — tinham pouca influência nas decisões globais. Ser um cavaleiro sagrado já era um feito grandioso, reservado a aqueles que se destacavam ao proteger seus reinos de ataques e guerras.

    Mas tornar-se um Paladino, o ápice dessa hierarquia, era um feito ainda mais raro. Dizem que um único Paladino tem o poder de um exército inteiro — uma verdade aceita em qualquer canto do continente.  

    Por séculos, porém, os humanos bloquearam qualquer tentativa de um elfo alcançar essa honra. O motivo? Medo. 

    Um Paladino élfico não apenas aumentaria o prestígio de seu reino, mas também poderia alterar o equilíbrio de poder. E, com esse fortalecimento, os elfos talvez se sentissem confiantes o suficiente para expandir seus territórios, desafiando a supremacia humana. 

    Por isso, toda vez que o reino dos elfos apresentava um candidato a Paladino durante a reunião anual entre os reinos, a proposta era sumariamente vetada.  

    Essa realidade mudou com um “milagre” chamado Richard Ravens.  

    Com apenas 12 anos — uma idade considerada absurda tanto para humanos quanto para elfos —, Richard quebrou todas as barreiras, conquistando o título de Paladino. 

    Mas sua lenda começou bem antes. Desde os 8 anos, ele já realizava feitos que fariam veteranos ruborizarem de vergonha. Em batalhas e missões, demonstrava um talento tão incomum que, em poucos anos, consolidou-se como o elfo mais forte do reino.  

    A consagração veio durante o Torneio dos Cavaleiros Sagrados, um evento que reúne os melhores de toda a raça humana e élfica para competirem entre si. 

    Era o palco perfeito para Richard provar seu valor, e ele o fez com uma destreza que deixou o público boquiaberto e os críticos sem palavras. Ali, ele não apenas venceu: esmagou qualquer dúvida sobre sua capacidade.  

    Naquele dia, Richard Ravens não se tornou apenas o primeiro Paladino élfico. Ele se tornou um símbolo de orgulho e resistência para seu povo — e uma ameaça impossível de ignorar para seus rivais.

    Richard venceu o Torneio dos Cavaleiros Sagrados com uma facilidade tão descomunal que não deixou margem para dúvidas: ele não era apenas o campeão, mas um símbolo vivo de invencibilidade. 

    Tanto humanos quanto elfos, ainda que relutantes, não tiveram escolha a não ser reconhecê-lo como o ser mais poderoso de todo o continente.  

    Amena sabia muito bem o peso disso. Trabalhar sob o comando de alguém tão lendário era um privilégio que muitos invejariam, e ela tratava esse posto com a seriedade que ele exigia. Sempre vigilante, ela dificilmente relaxava, mantendo um olhar atento sobre os outros empregados e garantindo que nenhum detalhe escapasse à perfeição.  

    Para os humanos, Richard era o pináculo — uma força inalcançável que personificava o potencial temido dos elfos. Desde o humilhante Torneio, em que os Paladinos dos três reinos humanos foram derrotados de forma esmagadora, as potências humanas não tiveram escolha. Conceder a Richard o título de Paladino não era apenas uma questão de honra, mas de política. 

    Negar-lhe o título, depois de um desempenho tão avassalador, seria admitir publicamente o medo que sentiam do crescimento do poder dos elfos.  

    E isso, os humanos não podiam permitir. Eles se apresentavam como a raça dominante, donos da maior parte do continente, e insistiam em sua suposta superioridade — apesar de suas limitações biológicas em relação às habilidades físicas e mágicas. 

    Admitir medo seria quebrar essa narrativa. Assim, mesmo contra sua vontade, tiveram de reconhecer Richard Ravens não apenas como o primeiro Paladino élfico, mas como a prova viva de que os elfos eram uma força a ser temida. 

    — Elber, agradeço profundamente por dedicar parte do seu tempo para me ajudar hoje. — A voz de Richard era firme, mas carregada de gratidão genuína. Ele então inclinou-se numa reverência profunda, um gesto que parecia deslocado vindo de alguém de sua posição.  

    O ar pareceu congelar.  

    Amena, sempre composta, não conseguiu esconder o choque que tomou conta de seu rosto. Seus olhos piscaram rapidamente, e suas sobrancelhas arqueadas traíam a incredulidade. O que está fazendo? Reverenciar um simples mordomo? Aquilo era inimaginável.  

    Elber, por sua vez, ficou paralisado. Seu sorriso habitual vacilou enquanto ele gaguejava, confuso.  

    — S-Senhor, por favor… não precisa disso! — Ele gesticulava desajeitado, quase como se quisesse fisicamente impedir Richard de se curvar mais. — Eu só estou cumprindo meu dever… Não há motivo para tamanha… consideração.  

    Richard endireitou-se devagar, um sorriso sereno dançando em seus lábios enquanto o encarava.  

    — Não subestime o valor do que faz, Elber. Pequenos gestos constroem grandes pontes.  

    Amena, já recuperada do susto inicial, respirou fundo e ajeitou a postura, retomando sua expressão severa. Por fora, parecia indiferente. Mas por dentro, perguntas começavam a se formar: O que poderia justificar tamanha reverência? O que esse homem havia feito para merecer tal gesto?

    — Com sua permissão, retornarei aos meus afazeres. — Amena quebrou o silêncio, inclinando a cabeça com um misto de respeito e urgência. Permanecer ali só a faria ainda mais curiosa sobre a conversa entre Richard e Elber, algo que preferia evitar.  

    Richard acenou com um sorriso cortês.  

    — Claro, Amena. Espero que tenha um excelente dia.  

    Enquanto se afastava, ela não pôde deixar de refletir sobre aquele homem. Para Richard, ela provavelmente não era mais do que uma subordinada — alguém dedicada, sim, mas distante de qualquer contexto mais pessoal. Ainda assim, por mais que a diferença de idade entre os dois fosse evidente, Amena não conseguia ignorar um pensamento incômodo: no fim das contas, ela ainda era uma mulher.  

    Amena tinha 372 anos. Para os padrões élficos, era uma idade respeitável, onde os primeiros sinais da passagem do tempo começavam a aparecer. Geralmente, os elfos envelhecem de forma sutil a partir dos 350 anos, alcançando o ápice de sua longevidade por volta dos 500. 

    Embora casos excepcionais de elfos vivendo mais de 600 anos fossem registrados, eram lendas, raridades que não se aplicavam à maioria. 

    Apesar de sua idade, Amena mantinha uma aparência impressionante. Seus traços refinados e sua disciplina inabalável ajudavam a preservar uma beleza que parecia desafiar o tempo. 

    Comparando-a aos humanos, seria fácil descrevê-la como uma mulher de 60 anos com a aparência vibrante de alguém em torno de 30 — uma ilusão possível apenas pela dedicação constante ao cuidado de si mesma.  

    Seus cabelos negros, lisos e bem alinhados, estavam presos em um coque impecável, uma combinação de praticidade e elegância. 

    Quanto ao resto de sua figura, mesmo que as roupas de serviço rigorosamente recatadas inibissem qualquer sugestão de sensualidade, era inegável que seu corpo possuía uma graça que não passava despercebida.  

    Amena afastou os pensamentos com um leve balançar de cabeça. Tais reflexões não têm lugar aqui, pensou, voltando ao foco que sempre guiou sua vida: servir com excelência. 

    Se fosse para descrever Amena, ela exalava aquilo que muitos chamariam de “beleza madura”. Uma presença serena, marcada pela compostura impecável e uma ausência quase constante de emoções explícitas, tanto em seu trabalho quanto fora dele. 

    Ela era o tipo de pessoa que passava a vida focada em perfeição e disciplina, nunca deixando espaço para distrações, especialmente aquelas relacionadas a questões do coração.  

    Nunca, até conhecer Richard.  

    A princípio, era simples admiração. Ele era um prodígio, um líder, um homem cujas conquistas ecoavam como lendas. 

    Mas com o tempo, esse sentimento começou a mudar, crescendo silenciosamente dentro dela, como uma chama tímida que se recusa a ser apagada. Ainda que tentasse afastar tais pensamentos, às vezes se via invadida por algo mais forte — um desejo suave, mas presente.  

    Quando Richard sorriu para ela naquele instante, Amena sentiu o rosto arder. O rubor foi breve, mas intenso o suficiente para fazê-la recuar. Com uma reverência rápida e calculada, ela saiu antes que alguém pudesse perceber sua mudança de atitude.  

    Por mais que lutasse contra esses impulsos, Richard era um homem encantador. Não apenas por sua aparência marcante, mas também por sua bondade e caráter, qualidades que tornavam impossível ignorá-lo. E, no fundo, ela era uma mulher como qualquer outra — sujeita a desejos e emoções que se entrelaçavam com sua admiração por ele, transformando o respeito em algo mais profundo e complexo.

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