Índice de Capítulo

    — Qual é o problema, Miasme? — perguntou Sigurd, franzindo o cenho.  

    — Hã? Nada… não é nada. — respondeu o homem, hesitante, quase engasgando nas palavras.  

    Desconfiado, Sigurd seguiu o olhar de Miasme. Observou atentamente, mas tudo o que viu foi uma vasta planície se estendendo diante deles. Nada que justificasse aquela reação estranha. Era apenas um mar de gramíneas ondulando sob a brisa leve do entardecer. A partir daquele ponto, estavam oficialmente fora do território do reino dos elfos.  

    — Tu tá meio estranho hoje, hein? — comentou Sigurd, estreitando os olhos. — Mas vou deixar passar dessa vez. Afinal, tu não foi comigo no prostíbulo semana passada. Deve tá no limite, coitadinho… — acrescentou com um riso zombeteiro antes de se afastar.  

    Os outros riram da piada enquanto continuavam com os preparativos. Em poucos minutos, as barracas estavam montadas. Eram apenas duas, o suficiente para acomodar o grupo. Dois homens dividiriam cada uma, enquanto os outros dois assumiriam a vigia do perímetro.  

    Como sempre, recorreram ao velho e infalível jogo de pedra, papel e tesoura para decidir quem ficaria de guarda naquela noite. O azar, mais uma vez, recaiu sobre Sigurd e Beilir. Sigurd bufou alto, arrancando risadas dos companheiros que pareciam se divertir com sua má sorte recorrente.  

    ⧫⧫⧫

    Miasme — ou melhor, Tiko — abriu os olhos na escuridão opressiva da noite. Na verdade, sequer havia dormido. Limitou-se a deitar-se na mesma barraca que o homem ao seu lado, fingindo descansar. Esperou, paciente, até que a respiração pesada do outro denunciasse o sono profundo antes de finalmente agir.  

    Levantou-se com movimentos calculados, tomando cuidado para não produzir ruído algum. Apanhou sua mochila e a espada. Antes de sair, permitiu-se um último olhar para o homem adormecido.  

    Durante os dias em que fingiu ser um deles, Tiko lutou contra a dualidade corrosiva entre o que desejava fazer e o que deveria fazer. Os elfos presos na carruagem seriam vendidos como mercadoria para humanos. Ele não podia permitir que aquilo acontecesse. Mas como enfrentar tantos homens ao mesmo tempo? Por mais que odiasse admitir, não se sentia forte o bastante para tal façanha.  

    Agora, parado ao lado do homem indefeso, Tiko afilou o olhar.  

    “Minha justiça.”  

    Sem hesitar por mais um segundo, ele cravou a lâmina no pescoço do homem. O corpo acordou em espasmos bruscos, os olhos arregalados e vermelhos de desespero. O sangue jorrou em torrentes, tingindo o chão e as mãos de Tiko.  

    — Avance… — murmurou para si mesmo.  

    Aquele era o segundo homem que matava. Mas, ao contrário do primeiro, cuja morte carregava a sombra da hesitação, esse momento trazia algo distinto — e sombrio. Esse homem era lixo. Um parasita que, na visão de Tiko, não merecia continuar respirando. Essa era sua justiça, a lei que ele jurara impor ao mundo quando tivesse força para tanto.  

    Ao arrancar a lâmina do cadáver, Tiko deslizou silenciosamente para fora da barraca. Dois vigias estavam mais adiante, mas antes de lidar com eles, virou-se para a outra barraca próxima. Movendo-se em total furtividade, entrou e se deparou com mais dois homens, adormecidos.  

    Mesmo sabendo o que precisaria fazer, Tiko respirou fundo.  

    As lâminas deslizaram através das gargantas com precisão cruel. Sangue jorrou, mas os corpos permaneceram imóveis. Ele já havia aprendido o método correto para matar algo que não se mexia — uma lição extraída de anos ajudando GolbZedh a preparar a carne dos javalis que caçavam. Era um corte limpo, rápido. Esses dois sequer tiveram tempo para acordar ou compreender o que acontecia.  

    As cabeças caíram inertes, e o sangue formou uma poça viscosa aos pés de Tiko. Por um breve instante, ele olhou para o reflexo distorcido na superfície escarlate. Encarou-se. Quem ele estava se tornando? Não — a pergunta verdadeira ecoou em sua mente — O que preciso me tornar?  

    Um som de passos atrás dele o arrancou do devaneio.  

    — Ei, pessoal, tá na hora de acordar. Minha vez de… 

    O homem ergueu a cortina da barraca e congelou. Seus olhos arregalaram ao ver Tiko parado sobre os corpos mutilados, a máscara salpicada de sangue e as botas mergulhadas no líquido viscoso. O choque paralisou o vigia por tempo demais.  

    Tiko avançou como uma fera. Sua espada perfurou o peito do homem em um golpe direto, atingindo o coração. Ambos caíram juntos no chão, Tiko montado sobre ele. O vigia lutou, segurando a lâmina com força, mas Tiko girou a espada dentro de sua carne.  

    A vida escoou do corpo do homem. Seus dedos soltaram a lâmina, tombando no chão com um baque surdo. Seus olhos permaneceram abertos, vazios.  

    — Que porra… — A voz de Sigurd cortou o silêncio. — Que porra é essa, Miasme?!  

    Sigurd apareceu na entrada da barraca, segurando uma tocha. Ele viu a cena — Tiko ajoelhado sobre o corpo ensanguentado de Beilir. Seus olhos se arregalaram em incredulidade.  

    Tiko se levantou, puxando a espada do cadáver com um estalo úmido.  

    — Ah… — arfou, o peito subindo e descendo em um ritmo frenético.  

    — Você… —  

    Sigurd apertou o cabo de sua espada, e as peças começaram a se encaixar. Desde o início, algo parecia errado com Miasme. Agora, diante da prova sangrenta, ele olhou para o homem à sua frente como se estivesse vendo um estranho pela primeira vez.  

    — Quem é você?! — berrou Sigurd, sacando a lâmina. — Você é Denzel?!  

    Tiko manteve o olhar fixo, recuperando lentamente o controle sobre sua respiração. O cansaço queimava seus músculos, mas ele se recusou a demonstrar fraqueza.  

    — Meu nome é Tiko… — respondeu com frieza, apontando a lâmina manchada de sangue. — E agora, você vai morrer.

    ⧫⧫⧫

    A luta se arrastou por minutos intermináveis, mas Tiko permaneceu firme após trocas brutais de golpes. Embora não possuísse o refinamento de um cavaleiro sagrado treinado, a disciplina imposta por seu pai desde cedo fornecera-lhe a base necessária para se defender e manejar uma espada com eficácia. Sabia que tinha vantagem sobre aqueles elfos negros de Infra, cuja formação militar era rudimentar. 

    Ainda assim, enfrentar vários inimigos simultaneamente era um risco que não desejava correr. Inicialmente, seu plano era escapar sob o manto da escuridão, mas algo dentro dele mudou. Optou por aniquilar os homens e libertar os elfos negros capturados, revertendo o curso dos acontecimentos. Contudo, a situação escalou rapidamente para algo mais perigoso do que ele havia imaginado.

    — Gr… que porra! — vociferou Sigurd, caído no chão, o corpo encharcado de sangue e repleto de cortes profundos.

    Tiko arfava, exausto. Foi a primeira vez que enfrentou outro homem em um duelo mortal. Suas mãos tremiam, e sua mente fervilhava. Enxugando o suor da testa, lançou um olhar para o homem ferido, que se contorcia, tentando estancar um ferimento aberto no peito. O sangue jorrava incessantemente.

    Avançando com passos calculados, Tiko parou diante do homem. Sigurd o encarava, olhos arregalados, consumidos pelo terror. Ao perceber o desfecho inevitável, soltou um riso amargo e resignado.

    — Acha que não terá o mesmo fim que o meu algum dia…? — murmurou Sigurd, a voz embargada.

    — Com certeza terei… talvez um destino ainda pior.

    Sigurd arregalou os olhos diante da resposta inesperada.

    Tiko balançou a cabeça, espantando pensamentos sombrios. Não era hora para contemplar a própria mortalidade.

    — Não. Na verdade… eu não morrerei como você.

    Quando Sigurd tentou responder, Tiko deslizou a lâmina pela garganta dele. A cabeça do homem tombou, rolando pelo chão até parar diante de seus pés. 

    — Avançe…

    Determinando-se, Tiko dirigiu-se à carruagem onde os elfos negros estavam presos. Um a um, abriu as portas, libertando-os. Temerosos, os prisioneiros hesitaram em sair, forçando Tiko a tomar a palavra.

    — Meu nome é Tiko. Matei esses homens e estou libertando vocês, mas não por piedade — e sim por mim e pelos meus objetivos. Quero que retornem para Infra e espalhem o que fiz. Contem a todos. — Ele fez uma pausa, encarando as planícies que o aguardavam antes de prosseguir. — Digam a todos que fui eu quem matou Richard Ravens.

    Os elfos, ainda paralisados pelo choque, assentiram em silêncio. Com olhares furtivos, desapareceram na densa floresta de Abelium.

    — Certo… — murmurou Tiko, encarando o horizonte e retomando a caminhada.

    — Isso foi incrível.

    A voz inesperada o fez reagir instintivamente. Girando, desferiu um golpe rápido, mas sua lâmina foi bloqueada com facilidade por uma espada longa e ondulada. O impacto reverberou, e Tiko sentiu a força e firmeza no punho do adversário.

    Seus olhos percorreram o rosto do homem à sua frente. Traços maduros, talvez trinta anos, e um manto roxo que ocultava parte do corpo. Mas o que mais o surpreendeu foram as orelhas arredondadas. Um choque percorreu sua mente.

    — Humano…? — balbuciou Tiko.

    — Hahaha! Pegou rápido, garoto! — O homem aproveitou o momento e desferiu um chute devastador no estômago de Tiko.

    Havia algo anormal naquele golpe. Tiko percebeu ao ser arremessado e colidir violentamente contra o solo, a dor irradiando por todo o corpo.

    Caído, ele largou a espada e abraçou o abdômen, lutando para recuperar o fôlego.

    — Não achei que fosse matar aqueles sujeitos, mas, caramba, você fez um trabalho impressionante contra esses perrapados, sabia? — disse o homem, rindo. — Mas é triste, sabe? Muito triste. Eu pensei que você fosse forte, mas na verdade é bem fraquinho. O que será que o nosso conselheiro viu em você?

    Enquanto o homem divagava, Tiko mal conseguia captar suas palavras. A dor no estômago o consumia.

    — Caramba… bati tão forte assim? Acho melhor reduzir um pouco meu fluxo… caramba… hahaha.

    De trás do homem, um grupo emergiu da floresta. Trajavam mantos roxos e máscaras, com espadas manchadas de sangue fresco.

    — Oh! Já terminaram de matar aquelas pessoas? — perguntou o homem, ainda rindo. Um dos encapuzados assentiu. — Como combinamos, deixaram um deles vivo com nossa mensagem, não é?

    Outro aceno afirmativo.

    — Ótimo, ótimo. Coloquem fogo em tudo, certo?

    — Quem…

    Forçando-se a levantar, mesmo com a dor lancinante, Tiko apoiou-se na espada.

    — Quem são vocês…?

    — Oh, levantou? Sim, levantou. Ótimo! Ele levantou, gente!

    O homem falava com um tom estranho, quase insano, como se estivesse desconectado da realidade.

    — Quem são vocês, porra?!

    — Me desculpe… — O homem pareceu surpreso com o grito de Tiko. Endireitou-se, deu leves batidinhas nas roupas como se estivesse se preparando para uma apresentação teatral e, então, com um sorriso largo e arqueando o corpo, respondeu: — Me chamo Kurin, e nós somos Os Pecadores.

    POSFÁCIO

    Saudações, Pedro Henrique aqui. Antes de mais nada, gostaria de expressar minha profunda gratidão a você por dedicar seu tempo à leitura do primeiro volume de Ascensão do Lorde! Este é apenas o prelúdio de incontáveis aventuras que pretendo compartilhar neste vasto e fascinante mundo que criei. Espero sinceramente ter a oportunidade de dar continuidade à narrativa com os próximos volumes e seguir explorando as jornadas de nossos dois protagonistas iniciais, Tiko e Jack, além de introduzir outros três protagonistas que farão suas estreias nos volumes subsequentes desta obra que tanto estimo.

    Este volume inaugural ambienta-se no reino dos elfos, uma escolha que me exigiu bastante reflexão antes de ser concretizada. Cogitei incluir a história de outro personagem principal neste primeiro tomo, mas percebi que isso resultaria em uma obra excessivamente extensa. Como podem observar, o volume já possui quase 300 páginas! Acreditei, por um momento, que ultrapassaria esse número, mas, com certo jogo de cintura, consegui reduzir o tamanho sem comprometer a essência da narrativa. Sempre é um desafio determinar quais partes manter e quais sacrificar para alcançar um equilíbrio satisfatório.

    Nosso próximo volume, o segundo de Ascensão do Lorde, continuará revelando novos desdobramentos e, principalmente, destacará um dos protagonistas que mais me entusiasmei em criar! Por ora, encerro por aqui, ansioso para reencontrá-los nas páginas do próximo capítulo desta jornada épica. Até lá!

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