Capítulo 48 – A Tribo dos Homens-Lagartos
A Grande Tribo dos homens-lagartos consistia em seres humanoides — majoritariamente guerreiros — cujos corpos robustos e escamosos evocavam a imponência de répteis colossais que caminhavam pelo mundo sobre duas pernas. Entre as raças conhecidas do continente — Humanos, Elfos, Elfos Negros e Homens-Lagartos — estes últimos possuíam a constituição física mais formidável. Vivendo em harmonia entre seus semelhantes, eles dependiam da caça aos animais das florestas que habitavam, além de praticarem a pesca rudimentar, recorrendo ao uso de lanças e redes artesanais.
A tribo operava como uma unidade coesa, onde tudo era dividido de maneira equitativa. Cada membro trabalhava não apenas para si, mas em benefício de todos, criando um sistema de apoio mútuo. Tanto as fêmeas quanto os machos dominavam as artes marciais, embora os homens geralmente se encarregassem da caça, enquanto as mulheres cuidavam dos filhotes e se dedicavam à coleta de ervas medicinais e frutas silvestres.
Contudo, essa vida comunitária harmoniosa foi conquistada à custa de um passado sangrento. A Grande Guerra das Tribos — um conflito devastador — marcou a história dos homens-lagartos, com tribos rivais batalhando incessantemente pelo domínio sobre a floresta. Muitos pereceram nesse período sombrio, mas seus sacrifícios não foram em vão. Após anos de carnificina, as tribos finalmente firmaram um acordo de paz, unindo-se para fundar uma sociedade próspera e pacífica.
Proteger essa paz tornou-se a missão dos sobreviventes, um legado transmitido de geração em geração. A nova linhagem de guerreiros carregava essa responsabilidade com fervor, treinando incansavelmente para defender a tribo contra qualquer ameaça.
Bruce, um jovem homem-lagarto de dezessete anos, era um desses guerreiros da nova geração. Determinado e disciplinado, ele forjara um físico imponente por meio de treinos rigorosos, tanto solitários quanto ao lado de sua irmã. Essa rotina diária era indispensável para seu crescimento como defensor de sua tribo, e Bruce sabia disso melhor do que ninguém.
Em uma manhã parcialmente ensolarada, Bruce dirigiu-se ao centro da tribo, onde a maioria dos guerreiros costumava se reunir. O cenário ao redor era uma mescla de troncos grossos e sombreados por folhas densas. As modestas cabanas de madeira erguidas entre as árvores utilizavam os troncos como suporte estrutural, fundindo-se perfeitamente com o ambiente natural. Algumas árvores serviam como pilares dentro das construções, enquanto outras forneciam sombra e enfeites naturais.
Caminhando pesadamente, Bruce se aproximou de uma pequena cabana com a porta entreaberta. Sem hesitar, adentrou o local, como alguém já familiarizado com aquele ambiente.
— Toc, toc. Senhor Sing, está aí? — anunciou-se Bruce com uma voz firme.
— Oh! Ah! Bruce! Bem-vindo, garoto! — respondeu uma voz rouca, pertencente a um homem-lagarto de meia-idade que emergiu de trás de uma bancada cheia de ferramentas rudimentares.
Sing era um dos poucos ferreiros da tribo. Por estarem isolados do restante do mundo, os homens-lagartos possuíam uma tecnologia menos avançada, o que tornava as habilidades de Sing um recurso precioso e altamente requisitado.
— O senhor continua com bastante saúde. Parece estar muito bem. — comentou Bruce com respeito.
— Hehehe. Já chegou me bajulando, garoto? Ora, pare com esses elogios infundados. Claramente este velho aqui, com seus sessenta e poucos anos, já tem um pé na cova! Hahaha! — brincou Sing, soltando uma risada grave.
— Pai, o senhor quer continuar o serviço de ontem? — perguntou uma voz mais jovem, vinda de um cômodo nos fundos.
Um homem-lagarto mais novo apareceu na soleira da porta, limpando as mãos sujas de fuligem com um pano encardido. Seus olhos encontraram os de Bruce, e um sorriso largo iluminou seu rosto.
— Eita! Bruce?! Quanto tempo! — saudou o jovem, aproximando-se.
— Nem me fale! Como está, Ink? — respondeu Bruce, esboçando um sorriso sincero.
— Estou bem, ah… — Ink hesitou ao perceber que suas mãos ainda estavam manchadas de preto, recuando o gesto de cumprimento.
Bruce, no entanto, surpreendeu-o com um aperto de mão firme, ignorando completamente a sujeira.
— Guerreiros não se importam em sujar as mãos. — afirmou Bruce com um tom confiante.
— Haha! Você continua com esse espírito de guerreiro inquebrantável! — respondeu Ink, retribuindo o aperto com entusiasmo.
Ink e seu pai, Sing, eram figuras amplamente conhecidas na Grande Tribo. Bruce — um guerreiro dedicado — frequentemente buscava os serviços dos dois para a manutenção de suas armas. Com o tempo, ele estreitou laços com a família, sendo tratado por ambos com uma simpatia quase familiar.
Os procedimentos naquela manhã seguiram o habitual. Primeiramente, Bruce dedicou-se a uma conversa descontraída com Ink e Sing, trocando palavras calorosas que aqueciam o ambiente modesto, mas acolhedor. Logo depois, como já era tradição, foi agraciado com a oportunidade de examinar os trabalhos em andamento na oficina. Para Bruce, que pouco compreendia sobre a fabricação de armas, aquilo se tornara um passatempo curioso e envolvente. Ele percorria os projetos inacabados espalhados pelo local com genuíno fascínio, absorvendo detalhes que mal compreendia.
Enquanto Ink oferecia explicações sucintas sobre os processos de forja, Sing se aprofundava em descrições técnicas, descrevendo cada detalhe com entusiasmo quase professoral. Bruce, por sua vez, balançava a cabeça em sinal de compreensão e mantinha a mão pensativa sobre o queixo, fingindo absorver cada palavra com atenção acadêmica.
Por fim, chegaram à etapa principal — o verdadeiro motivo da visita de Bruce. Ele retirou um par de adagas gêmeas e as depositou sobre a bancada robusta na sala principal. Este era o coração da oficina, onde Sing e Ink dedicavam-se à criação e manutenção das armas utilizadas por mais da metade dos guerreiros da tribo.
— As mesmas de sempre, Bruce? — indagou Ink, examinando as lâminas com um olhar crítico. Ele as retirou com cuidado das bainhas de couro curtido de javali, inspecionando suas bordas e peso.
— Sim, as mesmas de sempre. — respondeu Bruce com um sorriso afável, observando as adagas nas mãos do jovem ferreiro.
Ink ergueu os olhos, curioso.
— Me diz uma coisa, Bruce. Por que você não troca essas lâminas por algo melhor que temos aqui? — perguntou Ink, franzindo a testa. — Não me entenda mal, você cuida tão bem dessas sortudas que nem parece que estão contigo há quase o quê? Sete, dez anos? Mas, sendo sincero, ao invés de continuar com a manutenção, por que não escolhe um par novo?
Bruce soltou uma leve risada antes de responder:
— Ah, na verdade, eu já tenho outras guardadas em casa. Mas, mesmo assim, gosto de treinar com estas aí. É por isso que estão um pouco mais gastas.
— Hein? Mas por quê?
— Que curiosidade toda é essa, hein, Ink? — questionou Sing, estalando a palma aberta contra a cabeça do filho, que reagiu imediatamente com um “Aiii.” — Ficar fazendo perguntas demais vai acabar afastando as pessoas de você.
— Ficar falando demais sobre o seu trabalho também… mas ninguém tá reclamando… — resmungou Ink, massageando a cabeça onde fora atingido.
Bruce deixou escapar uma risada discreta diante da cena. A cumplicidade entre pai e filho arrancou-lhe um sorriso genuíno. Por mais que jamais tivesse tido a mesma sorte, ele se alegrava em testemunhar que, pelo menos, alguns jovens homens-lagartos tinham o privilégio de crescer sob uma convivência tão afetuosa.
— Não tem problema, senhor Sing. — respondeu Bruce, com um aceno leve, transmitindo tranquilidade.
— Tem certeza, Bruce? — insistiu Sing, erguendo uma sobrancelha escamosa. — Se deixar esse garoto perguntar tudo o que quiser, uma hora ou outra ele vai acabar fazendo perguntas cada vez mais íntimas sobre a sua vida.
— Caso realmente haja algo que eu não queira ou não possa responder, simplesmente não direi. Fora isso, não vejo mal algum em satisfazer a curiosidade de Ink. — Bruce sorriu antes de voltar-se para o jovem ferreiro. — Ink, eu não troco essas lâminas porque são um presente de valor inestimável para mim.
— Ohh… Ahh… S-sério? — Ink arregalou os olhos por um instante, mas logo encolheu os ombros sob o olhar afiado do pai, que o repreendia silenciosamente, como quem diz: “Chega de perguntas.”
Bruce manteve o sorriso sereno, embora seus olhos refletissem um tom de nostalgia.
— Sim. Elas foram um presente de meus falecidos pais.
— Hm…! — Sing murmurou, largando a ferramenta em mãos. Em um movimento firme, pressionou a cabeça do filho para baixo, curvando-o em sinal de reverência, e repetiu o gesto com o próprio corpo.
— P-pai?! — Ink exclamou, tentando resistir à pressão.
— Abaixe a cabeça e peça desculpas, seu moleque! — Sing vociferou, o tom severo transbordando autoridade.
— O-O quê…?!
— Bruce! Perdoe a insolência do meu filho indisciplinado. — Sing declarou com uma voz grave, marcada por uma rouquidão carregada de culpa.
Bruce levantou as mãos em um gesto apaziguador, tentando dissipar a tensão no ar.
— Não há necessidade, senhor Sing. Por favor, não se preocupe com isso. — Sua voz era calma, mas carregava um tom gentil e firme.
— Não, não — retrucou Sing, sacudindo a cabeça. — Tanto você quanto sua irmã cresceram sem a presença de seus pais devido às antigas desavenças que dividiram nossa tribo antes da unificação. Seus pais, assim como muitos outros guerreiros, sacrificaram suas vidas para garantir que hoje pudéssemos viver em paz. Sinto muito pela falta de respeito que meu filho demonstrou para com a memória deles. — Sing inclinou a cabeça uma vez mais, com um peso palpável em suas palavras.
Sing se referia às adagas que os pais de Bruce haviam deixado como herança. A sugestão de Ink para substituí-las ou trocá-las havia sido, aos olhos do mais velho, um desrespeito à memória dos pais do guerreiro. Bruce, no entanto, compreendeu imediatamente a preocupação de Sing, especialmente considerando o status reverenciado que ele e outros como ele possuíam dentro da tribo.
Dentro daquela comunidade, os órfãos da guerra, conhecidos como — Adoratus, eram vistos com profundo respeito. Eles simbolizavam as perdas e os sacrifícios feitos para consolidar a paz que a tribo agora desfrutava. Bruce e sua irmã estavam entre os Adoratus, e essa posição vinha acompanhada de admiração e deferência.
Bruce, contudo, mal se recordava dos pais, pois era apenas um bebê quando foi deixado sob os cuidados da irmã mais velha. Antes de partirem para o campo de batalha, seus pais haviam deixado as adagas como presentes simbólicos, caso não retornassem com vida. As lâminas tornaram-se, desde então, mais do que ferramentas — eram relíquias que carregavam a memória de sua família.
Na tribo, os Adoratus recebiam um tratamento excepcional, sendo protegidos e reverenciados por sua força e resiliência. Mesmo assim, Bruce havia se recusado a se apoiar em privilégios e, sob os cuidados de sua irmã, crescera para se tornar um guerreiro habilidoso. Embora não fosse o mais forte dentre os lutadores, ele figurava entre os cem melhores da tribo — uma conquista que lhe proporcionava um orgulho silencioso, mas profundo.
— Novamente… não há motivo para se preocupar com isso agora. Seu filho não tinha como saber o valor sentimental que essas adagas possuem para mim. Portanto, ele não tem culpa alguma ao sugerir que eu as trocasse por algo mais eficiente. Na verdade, isso apenas demonstra o quão bem o senhor educou seu filho! — respondeu Bruce, com um tom gentil e compreensivo.
Sing, ainda um tanto abatido pelas palavras do filho, relaxou visivelmente ao ouvir a resposta de Bruce. Ele ergueu a cabeça mais uma vez, exibindo um semblante sereno e aliviado.
— Você nunca mais faça algo assim de novo, ouviu bem, Ink?!
— O-Ouvi, pai… — respondeu Ink, com uma voz tímida e arrependida.
Bruce sorriu calorosamente, deixando transparecer sua tranquilidade. A terceira e última etapa da tarefa prosseguiu sem mais incidentes e, enfim, Bruce foi liberado para retornar à sua casa.
— Agradeço muito pela ajuda de hoje, Senhor Sing. E a você também, Ink. — disse Bruce, fazendo um leve aceno em sinal de gratidão.
— Não há de quê, Bruce. Vocês, jovens guerreiros que continuam treinando com tanto afinco, serão o futuro da nossa tribo. Meu dever é apenas garantir que tudo esteja em ordem até o momento de passar o bastão para a próxima geração. — O velho artesão lançou um olhar firme para o filho, que se apressou em responder.
— S-Sim! Meu pai tem razão! Assim como você, Bruce, também sou um guerreiro! Por mais que ainda não tenha alcançado o seu nível de habilidade… farei tudo o que estiver ao meu alcance para me tornar útil à tribo! — Ink declarou com um brilho determinado nos olhos, sua voz carregada de entusiasmo juvenil.
Bruce não era apenas um órfão de guerra, mas também um guerreiro competente e admirado. Isso, por si só, já lhe garantia o respeito dos demais, além do legado heroico que seus pais haviam deixado.
— Espero poder contar com você no futuro, Ink. — disse Bruce, estendendo um sorriso sincero ao jovem.
— Com certeza, Bruce! — respondeu Ink, animado.
— Então, vou indo agora. Muito obrigado por tudo, vocês dois! — Bruce fez uma reverência respeitosa, despedindo-se com calma antes de seguir seu caminho.
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