Índice de Capítulo

    Uma criatura ofegante salivava enquanto avançava lentamente pela densa floresta, seus passos pesados esmagando a vegetação rasteira. A noite concedia-lhe uma vantagem implacável na caça, pois pertencia à rara espécie de javalis conhecida como Grigaktakos — nome dado pelos homens-lagarto. Essa criatura destacava-se entre os javalis de dois chifres, sendo uma raridade que surgia apenas quando um indivíduo acumulava vasta experiência e força.

    O Grigaktakos era maior e mais imponente do que qualquer outro de sua espécie. Suas habilidades ultrapassavam as dos comuns, e enxergar na escuridão era apenas uma entre suas várias aptidões. Sua investida possuía força suficiente para destroçar árvores inteiras sem hesitação, abrindo caminho com brutalidade devastadora.

    A fera ofegava enquanto devorava algo com voracidade. O sabor da carne fresca preenchia-lhe a boca, e ela se esbaldava na refeição. Entretanto, após alguns momentos mastigando a carne tenra, um desânimo rastejou até sua mente. O animal caçado havia parado de se mover.

    Por alguma razão instintiva, o Grigaktakos sentia um prazer sádico em devorar presas que ainda se debatiam, resistindo desesperadamente ao fim iminente. A criatura ansiava por sentir a luta inútil de sua presa enquanto a dilacerava. Mas, após a terceira ou quarta mordida, o corpo do animal sangrou em excesso, perdendo suas forças até sucumbir.

    Irritada com a janta entediante, o Grigaktakos bufou e virou-se, afastando-se do cadáver parcialmente devorado. Baba espessa e sangue escorriam de suas presas, misturando-se em fios viscosos que brilhavam à luz fraca da lua filtrada pelas folhas. Seus olhos predatórios faiscavam com fúria insaciável.

    Fome.

    O pensamento ecoava em sua mente primitiva. Sua vontade de comer permanecia insatisfeita, e ela recusava-se a continuar alimentando-se daquela refeição monótona. Não bastava apenas carne; precisava de movimento, de desespero, de presas lutando por suas vidas. Precisava caçar novamente.

    Foi então que, no véu sombrio da floresta, seus olhos captaram o movimento de três figuras humanoides caminhando juntas. Eles trajavam roupas simples e apresentavam peles escamosas, caudas e armas visíveis. Um portava uma lança, outro uma espada curta, e o terceiro carregava um arco.

    Os dois primeiros carregavam javalis abatidos sobre os ombros, sinal de uma caçada bem-sucedida. Como o Grigaktakos, eles também haviam buscado alimento após uma longa jornada na mata.

    Comida… matar… devorar… comer… comer… comer…!

    A saliva escorria em gotas pesadas de sua boca aberta, formando poças úmidas entre as folhas secas. Sem perder mais um segundo, a criatura se lançou adiante com fúria animalesca, uma força destrutiva faminta por carne viva.

    ⧫⧫⧫

    Era para ser apenas mais uma noite de caça rotineira. Após a equipe diurna retornar ao centro do vilarejo da grande tribo, diversas pequenas patrulhas compostas por três homens-lagartos foram despachadas para explorar a floresta sob o véu da noite. Essa prática de revezamento era parte integrante da tradição tribal, garantindo a distribuição equitativa das tarefas de caça. Além disso, alternavam entre a caça em terra firme e a pesca nos rios e lagos próximos. Quando necessário, também estendiam suas expedições até as margens do mar vizinho, ampliando suas opções de suprimento alimentar.

    Aquela noite, no entanto, era dedicada à caça terrestre. A equipe designada, composta por Shayax, Vorsashi e Gringenir, partiu logo após o regresso triunfante da patrulha anterior, que havia trazido três javalis robustos e alguns coelhos como prova de seu sucesso. Sentindo o espírito competitivo arder em seus corações, o trio partiu animadamente pela floresta. Contudo, o entusiasmo foi se dissipando à medida que o tempo passava sem avistarem presas em abundância. No fim, retornavam com apenas dois javalis — uma conquista razoável, mas longe do que esperavam.

    Apesar de ser motivo para alguma celebração, o desânimo pairava sobre o grupo, especialmente sobre Shayax, o mais jovem entre eles.

    — Ahhhh… Achei que iríamos conseguir muito mais do que isso… — lamentou o jovem, arrastando os pés.

    — Shayax, mantenha o foco e continue atento ao nosso entorno. Você é o vigia da equipe. Não se esqueça disso. — A voz firme de Vorsashi cortou o lamento, trazendo Shayax de volta à realidade.

    — Ah! Sim, senhor! Mil desculpas! — respondeu, endireitando a postura em sinal de respeito.

    O homem-lagarto que o repreendera era Vorsashi, o líder do grupo e também seu mentor. Reconhecido entre os membros da tribo, ele ostentava o título de sétimo guerreiro mais poderoso. Sua fama era sustentada por sua maestria com a lança, uma arma que manejava com precisão letal. Seu estilo de combate, conhecido como “Estilo da Lança Perfurante”, era caracterizado por ataques rápidos e devastadores, utilizando toda a força corporal para lançar estocadas capazes de romper armaduras e defesas com facilidade. Em termos de perfuração, nenhum guerreiro da tribo igualava seu talento.

    — Mal posso esperar para voltar para casa… — murmurou Gringenir, o terceiro integrante do grupo, enquanto ajustava o peso do javali em seus ombros.

    — Desde que se casou, você anda muito apressado para voltar para casa — provocou Vorsashi, erguendo uma sobrancelha escamosa.

    — Ora, capitão… Mas me diga! Que macho não ficaria ansioso para retornar aos braços de sua esposa? Hein? Me responda! — rebateu Gringenir com um sorriso malicioso.

    — Eu acho que ele só quer mesmo é transar, capitão. — Shayax lançou o comentário com um sorriso travesso.

    — C-Cale a boca, Shayax! — protestou Gringenir, ruborizando até as escamas.

    Vorsashi e Shayax soltaram gargalhadas ao verem a expressão envergonhada de Gringenir, que tentou, sem sucesso, disfarçar o embaraço enquanto apressava os passos para seguir adiante pela trilha sombria da floresta.

    Os passos tranquilos do grupo foram abruptamente interrompidos por um som pesado e ritmado, como o eco de algo colossal pisoteando o solo. O primeiro a reagir foi o mais experiente entre eles.

    — Atenção! — bradou Vorsashi, a voz cortando o silêncio como um trovão.

    Sem hesitar, lançou o javali abatido que carregava em direção à sombra maciça que emergia das trevas. A criatura, no entanto, sequer diminuiu o ritmo. Continuou sua investida brutal em linha reta, atropelando o cadáver do javali sem esforço algum. O impacto foi devastador — o corpo se partiu violentamente, explodindo em uma chuva de membros, vísceras e ossos fragmentados que voaram em todas as direções.

    Mas a fera não parou. Prosseguiu com sua investida implacável, avançando contra o grupo que ainda lutava para reagir. Não era um javali comum. Vorsashi reconheceu a ameaça instantaneamente. “Grigaktakos.” O nome ecoou em sua mente como um presságio sombrio.

    O guerreiro não teve tempo para ponderar. Os dois jovens a seu lado estavam paralisados, inexperientes demais para confrontar uma ameaça daquela magnitude. Os segundos que haviam perdido foram preciosos, e a besta continuava sua investida mortal. Vorsashi sabia que precisava agir — e rápido. Não havia espaço para hesitação.

    — Aaaaaah! — o grito ecoou na noite, carregado de determinação feroz.

    Com músculos tensionados e olhos fixos no alvo, Vorsashi empunhou sua lança, sentindo o peso familiar da arma em suas mãos calejadas. Em um movimento rápido e preciso, posicionou-se em combate, suas escamas refletindo fracamente a luz prateada da lua. Ele concentrou toda a sua força em um golpe perfurante, mirando a cabeça desprotegida da criatura.

    Era um ataque desesperado, quase suicida. Mas Vorsashi sabia que não havia outra escolha.

    Em meio ao golpe, por breves segundos, sua mente foi invadida por lembranças da época em que treinava com seu irmão mais novo, agora falecido. Muito do motivo pelo qual Vorsashi aceitara treinar Shayax devia-se ao fato de que, em certas características e traços marcantes, o jovem o fazia recordar daquele irmão animado e imprudente.

    O vislumbre nostálgico dissipou-se tão rapidamente quanto a lança em suas mãos se partiu.

    O golpe, que havia colidido contra a cabeça do Grigaktakos, fez sua arma rachar e quebrar como se fosse um objeto qualquer. No entanto, a lança não era um simples instrumento; era uma peça forjada para os melhores guerreiros da tribo. Ainda assim, sua resistência provou ser insuficiente diante da incrível dureza e força descomunal da criatura. Vorsashi observou o ponto de impacto na nuca do monstro e notou apenas um leve furo deixado pela investida desesperada.

    Estalou a língua em frustração. Aquilo era tudo que conseguira? O pensamento foi como um balde de água fria, especialmente para alguém que sempre se orgulhara tanto de suas habilidades e de sua precisão letal.

    Percebendo que o ataque havia sido em vão, Vorsashi rapidamente usou os braços para se apoiar na parte superior do corpo do Grigaktakos. Em um movimento ágil, girou o corpo sobre a fera, escapando por um triz, enquanto a besta continuava sua investida cega. Um estrondo ensurdecedor ecoou pela floresta quando a criatura colidiu com uma árvore massiva, partindo-a ao meio. Em seguida, o ruído reverberante da árvore desmoronando e atingindo o solo sacudiu os arredores como um trovão.

    Os três homens-lagartos que estavam próximos sentiram o impacto nos ossos, como se o som ecoasse diretamente em seus peitos. Shayax, instintivamente, levou a mão a uma das orelhas, tentando abafar o zumbido que se formava.

    — Mas o que… o que é isso…? — murmurou Shayax, a voz trêmula.

    — É o Grigaktakos! — respondeu Gringenir, com a voz carregada de urgência.

    Shayax encarou a criatura, seus olhos arregalados de incredulidade. Ele ouvira histórias sobre aquele monstro, mas jamais imaginara encontrar-se frente a frente com uma criatura tão lendária e temida. Gringenir, por outro lado, processou rapidamente o que estava acontecendo. Observando o ataque desesperado de Vorsashi, que mal fizera cócegas no monstro, ele teve certeza: aquele javali colossal e monstruoso só podia ser o Grigaktakos.

    — Vocês dois! Corram para a clareira agora!

    — O quê?!

    — O senhor ficou louco? Está pensando em enfrentar essa aberração sozinho?!

    Shayax e Gringenir ficaram atônitos com a ordem de Vorsashi. A criatura, que continuava sua investida avassaladora, destruía tudo em seu caminho sem demonstrar sinais de desaceleração. Enquanto corria, realizou uma curva abrupta e sobrenatural, mudando de direção com uma agilidade impressionante para retornar à posição do grupo. Qualquer obstáculo que ousasse cruzar seu trajeto era esmagado ou despedaçado sem esforço. A floresta, antes silenciosa, agora rugia com os sons estrondosos de árvores desmoronando e pedras sendo pulverizadas sob a fúria da fera. Parecia que uma batalha entre titãs havia eclodido em meio à vegetação densa.

    — Não temos chance alguma! Voltem imediatamente! Eu ganharei tempo para que vocês escapem! Avisem os outros para aumentarem a segurança e esperem pelo meu retorno! — vociferou Vorsashi, seu tom firme, mas carregado de uma determinação feroz.

    As chances de sobrevivência de Vorsashi contra o Grigaktakos eram ínfimas, mesmo para um guerreiro de sua estatura. Os dois homens-lagartos, ainda incrédulos e visivelmente divididos, trocaram olhares carregados de hesitação. O dilema de abandonar seu líder ou desobedecer suas ordens os paralisou por alguns preciosos segundos.

    — O que estão fazendo?! Vão logo! — rugiu Vorsashi, sua voz trovejando como um comando incontestável.

    O grito penetrante arrancou os dois jovens de seu torpor. Mesmo que seus corações protestassem, suas pernas obedeceram. Relutantes, eles se lançaram pela floresta, desaparecendo entre as sombras e folhagens densas.

    — Ótimo… — murmurou Vorsashi, voltando seu olhar para a fera descontrolada que se aproximava como uma flecha mortal. Seus olhos cansados, mas aguçados como lâminas, brilharam com a determinação inabalável de um guerreiro disposto ao sacrifício. — Assim como você o fez, meu irmão… eu também farei isso pela nossa tribo.

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