Capítulo 50 – Chamado
No coração da floresta que servia de lar para os homens-lagartos, a grande tribo ergueu-se estrategicamente próxima à costa. Bastava caminhar por alguns minutos para alcançar o litoral e contemplar a vastidão do oceano, com suas ondas incessantes e o espetáculo majestoso proporcionado pela natureza. Essa proximidade com o mar não era meramente estética; representava também uma fonte vital de alimento e recursos para a sobrevivência da tribo.
A grande tribo era rigidamente dividida em três hierarquias distintas: Aprendizes, Guerreiros e Anciões.
Os aprendizes eram jovens homens-lagartos que, embora também treinassem nas artes da guerra — uma habilidade indispensável para sua espécie —, dedicavam-se a herdar e aprimorar os conhecimentos técnicos e práticos transmitidos por seus predecessores. Esses aprendizes, filhos de outros que seguiram o mesmo caminho, perpetuavam tradições e técnicas essenciais para o bem-estar coletivo. Entre eles estavam ferreiros habilidosos, pedreiros meticulosos e marceneiros engenhosos, cujas obras sustentavam a infraestrutura da tribo.
A origem dos aprendizes era contada como uma lenda ancestral. Há muitas gerações, sete homens-lagartos, conhecidos atualmente como os Sete Grandes Chefes, partiram em uma jornada pelo vasto mundo em busca de sabedoria e descoberta. Naquela época, o conhecimento dos homens-lagartos sobre as criaturas e civilizações exteriores era insignificante, e sua tecnologia, rudimentar. Após trinta longos anos, os Sete Grandes Chefes retornaram, trazendo consigo um tesouro de saberes adquiridos durante suas viagens. Eles instruíram seus filhos e impuseram que este legado fosse passado adiante, geração após geração. Assim nasceu a era dos aprendizes, garantindo que o progresso nunca cessasse.
Os guerreiros, como o próprio nome sugere, formavam a espinha dorsal da defesa tribal. Todo homem-lagarto, fosse macho ou fêmea, era encorajado — e, de certa forma, pressionado — a seguir o caminho do combate. Ainda que não fosse uma lei formal, era uma expectativa social inquebrantável. Recusar-se a portar uma arma ou a aprender a lutar era equivalente a abraçar o ostracismo e a vergonha pública. Para os homens-lagartos, a capacidade de defender a si mesmo era sinônimo de defender a tribo como um todo. Assim, o papel do guerreiro transcendeu a mera profissão; tornou-se um símbolo de honra e pertencimento.
Por fim, os anciões ocupavam o ápice da hierarquia. Eram veteranos que, após anos de batalhas e desafios, acumularam experiência suficiente para guiar a tribo com sabedoria e discernimento. Além de manter a ordem social, também supervisionavam o funcionamento cotidiano e a organização dos recursos. Serviam como bibliotecas vivas, detentores de memórias e conselheiros sobre assuntos diversos. Embora não dominassem especializações específicas como os aprendizes, sua sabedoria abrangente e pragmatismo estratégico os tornavam pilares fundamentais para a tribo. Cada decisão tomada por um ancião visava a prosperidade e a sobrevivência da raça, assegurando que as futuras gerações pudessem florescer mesmo diante das adversidades do mundo exterior.
A Clareira — o coração pulsante da vida entre os homens-lagartos. É ali que constroem suas moradias, treinam e conduzem suas rotinas diárias. O local se divide em duas áreas principais: o centro, onde o fluxo de indivíduos é constante, e as casas mais afastadas, situadas a poucos minutos de caminhada do núcleo movimentado.
Bruce e sua irmã, Virmirka, moravam em uma dessas casas mais isoladas. A escolha do local não era arbitrária. Bruce preferia um espaço amplo onde pudesse treinar sem restrições, aproveitando ao máximo o ambiente para aprimorar suas habilidades marciais. Os combates contra sua irmã, sempre intensos, eram parte essencial dessa rotina. No entanto, havia também um motivo mais sentimental. Eles se recusavam a abandonar a residência que outrora pertencera a seus pais.
Naquela manhã, Bruce já havia despertado e realizava os alongamentos matinais habituais. Do lado de fora da casa, preparava-se para o dia enquanto sua irmã se aproximava, com a energia característica que a definia.
— Vai querer apanhar agora ou mais tarde? — provocou Virmirka, cruzando os braços.
— Que tal mais tarde? — retrucou Bruce, lançando-lhe um olhar despreocupado.
— Hm? Está ocupado? Geralmente você não recusa um treinamento com sua amada irmã. — Ela ergueu uma sobrancelha, desafiadora.
— Pode-se dizer que sim. — Bruce desviou o olhar para um homem-lagarto encostado em uma árvore a poucos metros dali. Sua expressão se tornou mais séria.
— O que ele está fazendo aqui? — perguntou Virmirka, franzindo o cenho.
— Pega leve, Virmirka. — Bruce suspirou, tentando acalmá-la. — A situação não está boa para vocês ficarem discutindo agora.
Virmirka, porém, estalou os dentes em irritação e virou-se abruptamente para encará-lo.
— Fala logo, o que está acontecendo? — exigiu, impaciente.
— Parece que estão convocando alguns guerreiros para caçar o Grigaktakos. Ele apareceu na noite passada e emboscou uma das equipes de caça noturna. Pelo que ouvi, o senhor Vorsashi estava com eles. Ele ficou para trás enquanto os outros retornaram para dar a notícia… mas não foi visto desde então.
— O quê?! — exclamou Virmirka, horrorizada. No entanto, para surpresa de Bruce, sua reação não se devia à preocupação com Vorsashi, mas sim a outro motivo.
— Por que eu não fui chamada para essa missão?! — protestou, indignada.
Bruce piscou, momentaneamente confuso. Pensara que a reação dela se devia ao desaparecimento de Vorsashi, mas agora percebia que sua irmã estava mais preocupada por não ter sido incluída na caçada.
— Ah… — murmurou, ainda tentando assimilar. — Não sei… Por que não pergunta pro Shayax ali? Foi ele quem veio me chamar.
Antes que Bruce pudesse terminar a frase, Virmirka já havia partido em passos pesados, deixando um rastro de determinação e raiva. Marchava diretamente até o homem-lagarto encostado na árvore, pronta para exigir respostas.
Virmirka era o tipo de mulher-lagarto que detestava ser vista como fraca. Sendo a primogênita de sua família, carregava consigo o fardo e a determinação de ser forte o suficiente para proteger não apenas seu irmão, Bruce, mas também toda a tribo. A ousadia dos outros guerreiros em convocar Bruce, seu irmão mais novo, para a missão, enquanto a deixavam de fora, despertou nela um sentimento ardente de irritação e afronta.
Com um olhar agressivo e determinado, Virmirka aproximou-se do homem-lagarto encostado à sombra de uma árvore próxima. Shayax, o guerreiro em questão, já a conhecia — compartilhavam um pequeno passado que, embora breve, deixara marcas. A aproximação furiosa de Virmirka fez com que Shayax, instintivamente, recuasse um passo. No entanto, sua hesitação logo cessou ao perceber o perigo em demonstrar medo diante da fêmea dominante.
— Por que eu não fui convocada?! — esbravejou ela, sua voz cortante como lâminas.
— Hã? — Shayax balbuciou, incapaz de disfarçar o nervosismo.
A mão firme de Virmirka pousou sobre o ombro do guerreiro, o aperto revelando sua frustração latente. Embora Shayax fosse um guerreiro capaz, a fama de Virmirka e sua força inquestionável o fizeram hesitar. Ele já havia provado, em primeira mão, o peso dos golpes dela e sabia que não teria chances em um confronto direto. Quando tentou, instintivamente, recuar mais um passo, o aperto em seu ombro se intensificou, fazendo-o permanecer imóvel e tenso.
— Que tal responder à minha pergunta, Shayax? — insistiu Virmirka, os olhos perfurando o espírito do guerreiro.
— Ahh… é que… eu não sei! — respondeu ele, a voz quase trêmula.
— Você não sabe? — repetiu ela, estreitando os olhos.
Bruce, que observava a cena intimidadora de perto, aproximou-se com passos calculados, tentando aliviar a tensão.
— Ele só veio trazer a mensagem — argumentou Bruce. — Não foi ele quem decidiu quem seria convocado, irmã.
— Ainda assim! — insistiu Virmirka.
— Por que não vem conosco até o centro? Assim, pode perguntar diretamente a quem deu essa ordem. Não é mesmo, Shayax? — sugeriu Bruce, lançando um olhar significativo ao amigo.
— S-Sim! Isso mesmo! — concordou Shayax, balançando freneticamente a cabeça.
Finalmente, Virmirka afrouxou o aperto no ombro do jovem guerreiro, permitindo que ele respirasse com mais tranquilidade. Soltando-o, ela se afastou um passo, mas sua postura continuava carregada de autoridade.
— Certo. Esperem aqui. Vou buscar meu equipamento — disse ela, sua voz firme e cortante.
— Certo — respondeu Bruce, mantendo-se calmo.
— C-Com certeza… — murmurou Shayax, ainda nervoso, mas visivelmente aliviado.
Bruce conhecia bem o temperamento da irmã e sabia que provocá-la ainda mais seria um erro. Assim, preferiu manter a compostura e dar apoio à decisão dela. Shayax, por sua vez, apenas seguiu o exemplo, tentando não atrair mais a ira de Virmirka.
Quando Virmirka entrou em casa para buscar suas armas, Bruce lançou um olhar sem expressão para Shayax, mas havia um leve toque de ironia e orgulho em sua expressão.
— Você se saiu muito bem. Se tivesse falado ou agido de outra forma, provavelmente perderia alguns dentes. — Bruce sorriu de canto.
— Nem me fale… — respondeu Shayax, soltando um suspiro pesado.
Shayax e Virmirka tinham um passado. Apesar da diferença de idade entre eles, os dois já haviam compartilhado um breve romance. Tudo começou quando Bruce e Shayax ingressaram juntos na patrulha de caça, dado que tinham a mesma idade. A proximidade entre os dois fez com que Virmirka notasse Shayax e, decidida, escolheu-o como parceiro. Menos de dois meses depois, estavam namorando.
No entanto, o relacionamento não durou. Apenas quatro meses depois, Shayax decidiu terminar. Sentia-se indigno de manter um relacionamento com alguém tão forte e determinada quanto Virmirka. Para ela, aquilo foi uma tolice, mas, ao mesmo tempo, admirou a atitude de Shayax, considerando-a honrada e masculina. Assim, aceitou a decisão dele.
Virmirka sempre teve uma personalidade agressiva, orgulhosa e inflexível. Shayax, por outro lado, era conhecido por sua postura mais recuada e, às vezes, até considerada covarde por alguns dos outros homens-lagartos. Entretanto, por ser jovem, muitos acreditavam que ele ainda mudaria e amadureceria.
Determinando-se a crescer e provar seu valor, Shayax passou a treinar sob a tutela de Vorsashi. Queria se tornar um guerreiro habilidoso e digno, com o sonho de um dia retornar e conquistar novamente a mão de Virmirka.
Bruce gostava de Shayax. Apesar da relação estranha entre ele e sua irmã, Bruce via no amigo alguém esforçado e confiável. Ainda que reconhecesse o contraste entre a personalidade dominadora de Virmirka e o jeito mais tímido de Shayax, Bruce apoiava o amigo. Afinal, quem seria melhor para sua irmã do que alguém que ele conhecia bem e sabia ser um homem bom e dedicado?
— Sobre os acontecimentos recentes. — Bruce iniciou, seu tom de voz assumindo uma gravidade incomum. — Acha que ele ainda está vivo?
“Ele” era ninguém menos que Vorsashi, o respeitado mentor e instrutor de Shayax. Reconhecido como um dos guerreiros mais formidáveis e experientes da tribo dos homens-lagarto, Vorsashi possuía uma reputação imponente. Segundo o relato de Shayax, seu mestre havia permanecido para trás, enfrentando a fera monstruosa sozinho, enquanto ele e outro guerreiro aproveitavam a oportunidade para escapar. No entanto, tanto Bruce quanto Shayax tinham plena consciência do poder avassalador da criatura. Mesmo alguém tão habilidoso quanto Vorsashi precisaria de um grupo inteiro de guerreiros para lidar com aquela ameaça.
— Tenho absoluta certeza de que ele está vivo! — declarou Shayax, sua voz transbordando determinação.
— Oh, tanta certeza assim? — Bruce ergueu uma sobrancelha, intrigado com a convicção do amigo.
— Mas é claro! Meu mestre jamais cairia tão facilmente! — Shayax proclamou com firmeza, como se a própria ideia da morte de Vorsashi fosse uma afronta à lógica.
Diante daquela demonstração de confiança inabalável, Bruce permitiu-se um leve sorriso, um gesto meio irônico, meio admirado, diante do otimismo contagiante de Shayax.
— Certo, então temos que nos apressar para encontrá-lo na floresta, não é? — Bruce afirmou, sua voz carregando um tom de urgência.
— Isso mesmo, Bruce! — respondeu Shayax, com renovado entusiasmo.
Quando Virmirka retornou, devidamente equipada e com um olhar que transmitia pura determinação, Bruce e a pequena comitiva partiram rumo ao centro da Clareia. O grupo avançou com passos rápidos e decididos, como se cada segundo perdido pudesse custar a vida do guerreiro lendário que buscavam salvar.
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