Índice de Capítulo

    Vorsashi respirava com dificuldade, os pulmões queimando a cada inspiração, enquanto se preparava para a longa e tortuosa noite que o aguardava. Sabia que o sono, se viesse, não traria descanso, mas sim dores e lembranças amargas de sua luta desesperada. 

    Ele havia enfrentado o Grigaktakos com tudo o que possuía. Cada fibra de seu corpo fora forçada ao limite na tentativa de manter a besta faminta afastada, dando tempo para que os dois companheiros que o acompanhavam fugissem para um lugar seguro. Vorsashi não podia permitir que a criatura os seguisse. Porém, o que se seguiu foi uma perseguição implacável. O monstro parecia brincar com ele, testando-o, zombando de sua defesa frágil e de sua técnica falha após perder a arma mais confiável que possuía — sua lança. Toda sua base de combate estava arruinada no momento em que a lâmina se perdeu. 

    Desarmado e exausto, tudo o que pôde fazer foi correr e esquivar dos ataques incessantes do Grigaktakos. Foi apenas após incontáveis horas de fuga que, por um lampejo de sorte ou misericórdia do destino, ele encontrou uma abertura estreita o suficiente para escapar. Escondeu-se em uma caverna escura e úmida, onde finalmente teve um breve respiro para avaliar sua situação.

    O ar pesado que saía de seus pulmões refletia o esgotamento físico e mental. Entretanto, o pior ainda não havia sido contabilizado. Durante a fuga desesperada, perdera o braço direito — um preço alto, porém necessário para garantir sua sobrevivência. O ferimento pulsava, ardia, mas não era o fim. Não para um homem-lagarto. Vorsashi possuía uma dádiva inata, uma capacidade de regeneração sem igual entre as raças do continente. Mesmo um membro perdido poderia ser restaurado em questão de dias. 

    Ainda assim, a regeneração não apagava a dor. E, naquele momento, a dor era insuportável. Ele se recordou de Pendragon, o guerreiro lendário de uma era passada, reverenciado como o mais poderoso entre os homens-lagarto. Diziam que sua regeneração era tão prodigiosa que conseguia restaurar membros inteiros em poucas horas — um feito que parecia sobrenatural até mesmo para sua raça. Vorsashi, porém, não era Pendragon. Para ele, a recuperação levaria dias, e cada momento seria um tormento.

    — Não posso desmaiar… ahrr… ahrr… — murmurou, o peito arfando.

    Desmaiar seria uma sentença de morte. Se a criatura encontrasse seu esconderijo, ele estaria indefeso, incapaz de reagir ou escapar. Precisava resistir. Precisava manter-se acordado até que a ajuda chegasse — se é que chegaria.

    Um som seco de passos ecoou na entrada da caverna. Vorsashi, mesmo exaurido, ergueu-se de imediato, seus sentidos aguçados em alerta máximo. Era essa a dádiva — ou maldição — de um guerreiro forjado em tempos de guerra. Sobreviver em campos de batalha havia lhe ensinado que baixar a guarda, mesmo por um instante, poderia significar o fim.

    Ainda se lembrava vividamente da época em que as tribos viviam separadas e as noites eram permeadas por vigilância constante. Um galho estalando sob o peso de um predador era o bastante para despertar uma aldeia inteira. A guerra o moldara assim. Agora, cada sombra ou sussurro no vento parecia prenunciar perigo. Nunca mais repousaria tranquilamente fora das quatro paredes de um lar seguro. Nunca mais poderia relaxar.

    Ou talvez não sozinho.

    Ele recordou-se do tempo em que treinara seu discípulo. Passaram muitas noites ao relento, sob a luz fria da lua, enquanto o garoto se esforçava para dominar as técnicas transmitidas. A floresta densa testemunhara aqueles momentos. Apesar das lembranças de batalhas sangrentas que o assombravam, olhar para o jovem adormecido o enchia de um estranho conforto. Aquele rapaz, nascido após os horrores da guerra, era a prova viva dos sacrifícios feitos por tantos guerreiros que caíram antes dele. Vorsashi encontrara paz, mesmo que momentânea, ao protegê-lo.

    Inspirando fundo, o guerreiro dissipou a tensão crescente em seu peito. O olhar afiado voltou-se para a escuridão da entrada. Quem ou o que quer que estivesse ali, não ficaria escondido por muito tempo.

    — Vai ficar no escurinho mesmo? — provocou, sua voz ressoando como o eco de uma lâmina desembainhada. — Estou aqui. Pode vir!

    O silêncio foi quebrado por um riso baixo e desdenhoso. Os passos se intensificaram, e logo uma figura humanoide surgiu, contornando a curva da caverna. Vorsashi estreitou os olhos ao reconhecê-lo como um humano. Não era um homem-lagarto, disso ele tinha certeza. Seus trajes e postura exalavam uma aura de estranheza, mas também de confiança calculada.

    — Lagartixas são sempre tão resistentes assim? — zombou o homem. — Normalmente, quando esmago um desses insetos que invadem minha casa, não preciso de mais do que um ou dois golpes para acabar com a brincadeira.

    Vorsashi não recuou. Seu olhar penetrante cortou o espaço entre eles como uma lâmina desembainhada.

    — Se precisa de dois golpes para matar um inseto, então é evidente que sua capacidade está longe de ser digna de respeito.

    O tom calmo, mas carregado de aço, deixou clara sua posição. Vorsashi sabia reconhecer uma provocação quando a ouvia, mas não era o tipo de homem que abaixava a cabeça diante de insultos. A batalha verbal havia começado, e o guerreiro estava pronto para travá-la com a mesma determinação que dedicava ao campo de guerra.

    O homem trajava um jaleco de um tom púrpura profundo, que contrastava com a espada curta embainhada em sua cintura. Vorsashi avaliou-o com olhos atentos, tentando discernir se era um guerreiro de verdade ou apenas mais um daqueles que ostentavam armas sem jamais terem sentido o peso de um combate. Já havia visto muitos de sua própria raça que se intitulavam guerreiros, mas cujas habilidades mal passavam de exibições vazias. 

    Até poucos dias atrás, humanos haviam visitado a tribo, solicitando o envio de homens-lagartos para servirem em seus domínios. A proposta fora tão repentina quanto intrigante. Deram tempo para que os guerreiros ponderassem a oferta, prometendo que qualquer feito em batalha refletiria diretamente em recompensas para a tribo. Não era uma proposta ruim, mas havia receios. Muitos temiam abandonar a familiaridade de seu lar por um destino incerto. Até o momento, menos de trinta guerreiros haviam se voluntariado, enquanto os humanos exigiam um contingente de cem. A diferença numérica permanecia um problema sem solução. 

    Havia algo profundamente estranho naquela situação. Humanos raramente se aventuravam na floresta dos homens-lagartos. Na maioria das vezes, limitavam-se a cruzar a estrada que serpenteava à frente do território da tribo. Afinal, a passagem perto da floresta era uma das poucas rotas viáveis para o outro lado do continente. O restante do território era cortado por uma cadeia de montanhas imponentes, quase intransponíveis, que exigiam dias de escalada para serem cruzadas. 

    O que perturbava Vorsashi era a frequência dos encontros recentes com humanos. Primeiro, o grupo emissário, e agora, este estranho surgindo em meio à penumbra da caverna. Tantas coincidências em tão pouco tempo só poderiam indicar problemas. 

    — Você faz parte do grupo de humanos que veio aqui recentemente? — perguntou Vorsashi, mantendo o tom firme.

    — E por acaso eu pareço com aqueles cães amestrados do Grão-Vermelho? — respondeu o homem, a voz impregnada de desprezo. — Me poupe dessa comparação ofensiva. Eu não abanaria o rabo para aquela corte medíocre nem em um sonho. 

    A afirmação não deixava dúvidas. Não eram aliados. Pelo contrário, as palavras carregavam uma hostilidade que sugeria rivalidade entre humanos. Vorsashi não se surpreendeu. Humanidade e coesão nunca foram termos associados. Sua espécie sabia bem disso. Os humanos sempre priorizaram interesses individuais sobre o bem coletivo. Foi essa natureza egoísta que instigou a guerra contra os elfos no passado, uma guerra de ganância territorial que deixou cicatrizes profundas no continente.

    Vorsashi jamais confiara em humanos. Tudo que sabia sobre eles apenas reforçava a prudência em manter distância.

    — Lagartixa, preciso que venha comigo — disse o homem, avançando alguns passos na direção de Vorsashi.

    — Fique onde está. Mais um movimento e eu o matarei aqui e agora. — A voz de Vorsashi ecoou pela caverna como um trovão.

    O homem sorriu com escárnio.

    — Hahaha! Tente a sorte, se tiver coragem. Mas duvido que você ou qualquer membro da sua raça patética já tenha sentido o poder esmagador de um Conselheiro. 

    — Conselheiro? — Vorsashi repetiu, sem compreender o significado daquele título.

    Então, tudo aconteceu em um instante. O homem disparou em sua direção como um borrão, tão rápido que os olhos de Vorsashi mal puderam acompanhar. Um gosto doce e metálico inundou sua boca. Não havia nada ali, mas a sensação era tão real quanto a dor que explodiu em sua cabeça. 

    A mão do homem o havia atingido em um golpe preciso. Vorsashi tombou como uma marionete com os fios cortados, seus sentidos apagando-se na escuridão antes que pudesse reagir.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota