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    A sala de reuniões, outrora um espaço reservado para deliberações solenes, agora servia como palco para um encontro breve, quase uma troca apressada de palavras e intenções. Entre os anciãos, Pendragon fora destacado para representar a tribo diante do comandante humano responsável pela operação militar estacionada do lado de fora.

    Embora a aparência externa transmitisse uma rotina pacífica dos homens-lagartos dentro da floresta, a realidade era bem distinta. Um plano de contingência fora meticulosamente preparado em caso de hostilidades. Guerreiros permaneciam ocultos entre as árvores, posicionados para desferir um ataque em pinça caso a negociação tomasse um rumo diferente do planejado.

    Enquanto isso, a clareira central fervilhava com a presença dos guerreiros mais experientes, mantendo-se próximos ao contingente humano. Tudo estava estrategicamente alinhado para garantir a defesa da tribo em um instante.

    Pendragon, por sua vez, assumiu o papel de negociador e único representante na reunião. Em circunstâncias normais, todos os anciãos estariam presentes, mas temendo um golpe surpresa, ele ordenou que os demais se abrigassem em um local seguro, sob vigilância constante de guardas.

    Sozinho diante dos humanos, Pendragon evitou qualquer demonstração de fraqueza. Ele não trouxe acompanhantes, confiando que, em caso de traição, os sinais previamente combinados acionariam um ataque devastador contra os invasores.

    A tensão na sala era palpável. Os três ocupantes se posicionaram ao redor da mesa – Pendragon e o líder humano tomaram assento, enquanto um segundo homem, protegido por uma armadura, permaneceu de pé. Sua postura rígida e olhar vigilante denunciavam prontidão absoluta para intervir a qualquer momento.

    A presença do guarda transmitia uma sensação de ameaça latente. Ele parecia menos um soldado e mais uma fera acorrentada, preparada para saltar ao menor sinal de perigo. Esse comportamento não passou despercebido por Pendragon.

    O ancião relaxou ligeiramente. Se os humanos também mantinham tamanha cautela, então ambos os lados compartilhavam o mesmo receio. Talvez, afinal, houvesse espaço para diálogo em meio à desconfiança mútua.

    — Para começar, agradeço por dispor de seu tempo para esta conversa particular. Meu nome é Douglas Dorian, represento a Ponto Escuro, uma organização interna do reino encarregada de missões além das fronteiras. — A voz firme e articulada do homem ressoou na sala, carregando uma serenidade que inspirava respeito.

    Por mais que Pendragon conhecesse pouco sobre os humanos, percebeu de imediato que Douglas exalava uma aura distinta. Não era intimidadora, mas impunha consideração. Sua entonação segura e educada capturava a atenção de Pendragon e, de certo modo, o convidava a corresponder com a mesma cortesia.

    — É uma honra conhecê-lo, senhor Douglas Dorian. — respondeu Pendragon com um aceno respeitoso.

    Douglas sorriu calorosamente e levantou a mão em um gesto apaziguador.

    — Por favor, pode me chamar apenas de Douglas. Não há necessidade de formalidades aqui. — disse ele com um tom gentil.

    A palavra “sobrenome” despertou uma breve confusão em Pendragon. Embora compartilhassem a mesma língua — um idioma comum entre todas as raças inteligentes do continente — o conceito lhe parecia estranho. Ainda assim, optou por ignorar a dúvida naquele momento.

    — Nesse caso, peço que me chame apenas de Pendragon. — retrucou o homem-lagarto, espelhando a informalidade do humano.

    — Assim será. — Douglas respondeu, mantendo o sorriso amigável.

    O ambiente, até então impregnado de tensão, aliviou-se gradualmente. As palavras tranquilas e os gestos cordiais pareceram dissipar qualquer resquício de animosidade que pairava no ar.

    — Para iniciar, permita-me apresentar minhas desculpas. — disse Douglas, voltando-se para Pendragon com um olhar sincero.

    — Oh? Houve algo que justificasse um pedido de desculpas tão repentino? — Pendragon perguntou, arqueando uma sobrancelha escamosa.

    — Na verdade, sim. — Douglas respondeu, lançando um olhar para o guarda que o acompanhava.

    O homem armado reagiu imediatamente, deslizando a mão até a pasta de couro que carregava. De lá, retirou um cilindro enrolado e o entregou ao líder humano. Douglas desembrulhou o objeto com cuidado, revelando um mapa meticulosamente detalhado.

    — Este é o mapa do continente inteiro, o continente de Bakurai. — anunciou, empurrando o pergaminho aberto na direção de Pendragon.

    Os olhos do ancião se arregalaram de surpresa. Por mais que tivesse passado toda a sua vida naquele continente, sua compreensão geográfica se limitava aos arredores de suas terras natais. O mapa, com suas linhas elaboradas e símbolos precisos, parecia algo místico, quase divino. Pendragon inclinou-se sobre a mesa, absorvendo cada detalhe, cada contorno, enquanto tentava localizar sua própria morada naquele vasto pedaço de papel que, para ele, representava o mundo inteiro.

    — No momento atual, estamos exatamente aqui. — Douglas apontou para um ponto em uma região densamente arborizada, situada próxima à margem do continente. Era ali que os homens-lagartos haviam estabelecido sua morada.

    Nos arredores da área indicada por Douglas, o mapa revelava detalhes intrigantes. De um lado, a floresta estendia-se até encontrar o mar; do outro, erguia-se uma vasta floresta distinta, ladeada por uma montanha colossal que se erguia como um monólito central. A montanha parecia ter sido colocada ali deliberadamente, mas não como uma barreira intransponível—era apenas uma presença solitária e imponente no coração do continente.

    — Impressionante. Jamais imaginei que o continente tivesse esse formato. — Pendragon inclinou-se sobre o mapa, os olhos percorrendo cada traço.

    — Fascinante, não é? — respondeu Douglas com um sorriso.

    — Sem dúvida alguma. — E ambos riram, como velhos amigos partilhando uma descoberta empolgante—Douglas com o entusiasmo de quem revela algo novo e Pendragon com o encanto genuíno de quem vê o mundo de uma nova perspectiva.

    — Permita-me perguntar. — Pendragon apontou para uma passagem estreita entre a floresta dos homens-lagartos e a montanha próxima. Mesmo de dentro da floresta, aquela montanha era visível, destacando-se no horizonte. — Essa passagem é, de fato, uma das únicas formas de atravessar para o outro lado do continente?

    — Exato. Existem apenas quatro rotas conhecidas para se alcançar o outro lado do continente. Essa passagem aí é uma delas. Contudo, a maioria das pessoas evita utilizá-la. — Douglas cruzou os braços, adotando um tom mais sério.

    — Sim, imagino que seja por causa de nós. — Pendragon assentiu, já ciente do receio que sua espécie inspirava.

    — Está correto. — Douglas confirmou sem rodeios.

    Os homens-lagartos sempre foram temidos pelos humanos. Essa dinâmica de desconfiança mútua não era difícil de compreender. Assim como os homens-lagartos viam os humanos como uma ameaça, os humanos também os encaravam com apreensão—embora por razões distintas.

    — Também há essa outra passagem aqui. — Douglas indicou uma segunda rota na extrema direita do mapa. — Como a montanha ocupa o centro do continente, as únicas rotas terrestres são essas duas. A menos, é claro, que alguém escolha essa alternativa. — Ele apontou diretamente para a montanha.

    — A montanha? — Pendragon franziu a testa, visivelmente surpreso.

    — Isso mesmo. Embora não seja recomendável, alguns ousaram cruzar para o outro lado escalando a Montanha Piry Up. Contudo, essa rota foi praticamente abandonada nos dias atuais. 

    — Abandonada? Por que alguém escolheria essa rota, se as passagens terrestres são muito mais acessíveis? — Pendragon parecia intrigado.

    — Sua lógica está certa, mas há uma razão. Há cerca de 150 anos, segundo registros históricos, essas passagens terrestres simplesmente não existiam. — Douglas explicou, mantendo o tom didático.

    — Isso é mesmo verdade?! — Pendragon arqueou as sobrancelhas, surpreso com a revelação.

    — Sim, é um mistério curioso sobre a formação do continente. — Douglas concordou.

    Exatamente 150 anos antes, os ancestrais dos homens-lagartos haviam se estabelecido naquela floresta. Eles haviam usado o terreno denso como abrigo e, ao longo das décadas, formaram tribos que, após muitos conflitos por território, acabaram unificando-se. Ainda assim, não havia nenhum conhecimento registrado entre eles que sugerisse que as passagens ao lado da montanha fossem criações recentes. Nem mesmo Pendragon, como ancião, possuía tal informação, embora esperasse que esse tipo de saber tivesse sido transmitido através das gerações.

    — Como os humanos costumavam escalar a montanha? — Pendragon perguntou, curioso sobre a ousadia humana.

    — Ah, desenvolvemos equipamentos específicos para escalada. — Douglas sorriu, orgulhoso. — Mesmo hoje, algumas pessoas ainda escalam a montanha para coletar ervas raras ou plantas que só crescem naquela região. Há também aqueles que a sobem em busca de glória e reconhecimento. Mas a partir de certa altura, a escalada se torna extremamente perigosa.

    — Hm… — murmurou Pendragon, pensativo, enquanto seus olhos permaneciam fixos na montanha representada no mapa.

    — Você mencionou que existem quatro formas de atravessar para o outro lado do continente. Qual seria a quarta? — indagou Pendragon, inclinando-se levemente para frente, com visível curiosidade.

    — Pelo mar, é claro! — respondeu Douglas, com um leve sorriso.

    — O mar? Ah! Os navios! — exclamou Pendragon, ao recordar-se das raras embarcações que avistara em suas jornadas costeiras. Ele se lembrava delas deslizando pelas águas como sombras elegantes, mas nunca testemunhara uma delas singrando para além do horizonte. Em vez disso, pareciam apenas circundar a costa, como mensageiros que saltavam de um ponto ao outro.

    — Exato. Os navios representam uma opção viável para cruzar o continente, embora, por serem escassos, acabem se tornando um método de transporte exorbitantemente caro. Apenas aqueles com recursos financeiros substanciais podem se dar ao luxo de embarcar em tal jornada.

    Pendragon assentiu, embora o conceito de “dinheiro” ainda lhe parecesse um tanto enigmático. 

    A troca de bens e serviços não era estranha aos homens-lagartos, mas o sistema monetário humano representava algo bem mais abstrato. Em sua comunidade, tudo funcionava por um senso de dever coletivo. 

    Cada indivíduo contribuía para o bem-estar geral, tornando desnecessária a utilização de moeda. No entanto, os humanos, talvez por existirem em um número tão vasto e diversificado, dependiam desse sistema para manter sua ordem.

    — Mas o que realmente desejo discutir com você diz respeito à Neblina Perambulante. — A voz de Douglas tornou-se mais séria, atraindo a atenção de Pendragon.

    — Neblina Perambulante? O que seria isso? — perguntou Pendragon, franzindo o cenho.

    — Trata-se de um fenômeno natural peculiar que ocorre uma vez por mês. Uma neblina densa e impenetrável cobre determinada região, sempre no mesmo local. Ninguém sabe explicar por que o fenômeno se manifesta ali de forma tão recorrente, mas ele transforma qualquer viagem por aquela área em uma verdadeira provação. A visibilidade é quase nula, e até mesmo o senso de orientação mais aguçado é posto à prova. Cavalgadas tornam-se impossíveis, e até mesmo deslocamentos a pé são arriscados.

    Pendragon assentiu lentamente, absorvendo as palavras de Douglas.

    — Compreendo… um obstáculo perigoso para viajantes.

    — Exatamente. E, como você deve imaginar, essa neblina está prestes a se manifestar novamente. O problema é que ela cobre justamente parte do caminho que precisaremos tomar para alcançar o Reino Grão-Vermelho. — Douglas soltou um suspiro contido. — Isso significa que nossa viagem será severamente comprometida caso não elaboremos um plano para lidar com essa complicação.

    — E qual seria a sua estratégia para contornar essa dificuldade? — perguntou Pendragon, cruzando os braços.

    — Tenho duas propostas. — Douglas ergueu um dedo, indicando a primeira opção. — A primeira seria permanecer aqui por alguns dias, aguardando a dissipação da neblina antes de prosseguirmos.

    — Entendo. Foi por isso que solicitou essa reunião emergencial? — Perguntou Pendragon.

    — Exatamente. — Douglas ergueu mais um dedo, apresentando a segunda alternativa. — A segunda opção seria solicitar permissão para atravessar a floresta dos homens-lagartos em vez de seguirmos pela estrada principal.

    — Para evitar a região encoberta pela neblina. — Pendragon assentiu. — Faz sentido. Mesmo que fossem apanhados por ela, estariam em um território que conhecemos intimamente. Com nossos guias, poderiam ser conduzidos com segurança.

    — Precisamente. — Douglas inclinou-se ligeiramente para frente. — No entanto, mesmo levando alguns de seus guerreiros conosco, preferi pedir permissão formalmente. 

    — Vocês levarão nossos guerreiros, de qualquer forma. Por que se dar ao trabalho de pedir permissão? — Pendragon ergueu uma sobrancelha.

    — Por respeito. — Douglas respondeu, a voz firme e sincera.

    — Respeito? — repetiu Pendragon, intrigado.

    — Sim. Os homens-lagartos que nos acompanharão passarão a integrar minha organização, a Ponto Escuro. E, enquanto estiverem sob meu comando, não os tratarei como meros subordinados ou ferramentas. Serão meus companheiros, meus aliados. E para merecer sua lealdade, devo começar respeitando as regras e os costumes do povo de onde vieram. Esse é o alicerce de minha liderança. Respeito às tradições deste lugar e os códigos que governam seu povo. Não quero que nossa presença seja vista como uma afronta.

    Pendragon permaneceu em silêncio por um momento, observando Douglas com um olhar avaliador. Então, finalmente, acenou com a cabeça, esboçando um leve sorriso.

    — Admirável. Irei considerar suas propostas cuidadosamente.

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