Capítulo 58 - Ponto Escuro
Douglas Dorian, formalmente reconhecido como capitão da renomada organização Ponte Escuro, já exercia sua liderança sobre o grupo muito antes de ser incorporado ao reino Grão-Vermelho.
Este homem de cabelos dourados impecavelmente alinhados e barba meticulosamente aparada não apenas comandava respeito, mas também inspirava temor entre aliados e inimigos.
A Ponte Escuro teve origens humildes, iniciando como um bando de seis mercenários determinados a sobreviver a qualquer custo. Eles navegavam no submundo do crime, recorrendo a pilhagens, extorsões e assassinatos como meios de subsistência.
Sob a liderança de Douglas, que na época ostentava apenas 22 anos, o grupo prosperou em um ritmo assombroso, crescendo até se tornar uma vasta organização mercenária dividida em sete divisões, cada uma com mais de cem guerreiros.
Seu nome ecoou por todo o continente, tornando-se sinônimo de força e eficiência. Contudo, essa era de caos e liberdade chegou ao fim quando Douglas completou 28 anos.
A organização foi oficialmente dissolvida — ou, mais precisamente, absorvida — pelo reino Grão-Vermelho.
A Ponte Escuro deixou de ser uma força independente para se transformar em um braço militar formalizado, agora a serviço da coroa. Os dias de contratos obscuros e atos ilícitos deram lugar a missões sancionadas pelo reino, como a erradicação de monstros e a destruição de bandos mercenários que perturbavam a ordem pública.
Em troca, foram reconhecidos como uma peça vital na estrutura militar do reino.
No entanto, essa transição não ocorreu sem desafios. Muitos dos antigos companheiros de Douglas, vindos de origens humildes e acostumados à vida sem regras, sucumbiram às tentações do luxo recém-descoberto.
A abundância e a segurança os conduziram à preguiça, aos excessos e até ao vício em substâncias entorpecentes. A coesão e a disciplina da Ponte Escuro começaram a se desfazer diante dos olhos de Douglas.
Determinado a preservar o legado que havia construído, Douglas tomou uma decisão drástica. Com mão de ferro, purgou a organização, expulsando aqueles que não demonstravam comprometimento com a causa.
Homens que preferiam a ociosidade à disciplina foram descartados sem hesitação. Aqueles que permaneceram, no entanto, emergiram mais fortes e resilientes. O medo de serem descartados, combinado com a liderança inabalável de Douglas, inflamou suas ambições e os transformou em guerreiros ainda mais temíveis.
Agora, embora o número de integrantes tenha diminuído drasticamente, a Ponte Escuro resplandece como a organização mais formidável do reino Grão-Vermelho — superada apenas pelos lendários Cavaleiros Sagrados, detentores do título de paladinos.
Mais do que um grupo mercenário reformado, tornaram-se um símbolo de disciplina, lealdade e força militar, perpetuando o legado de Douglas Dorian como um líder visionário e implacável.
— Douglas, o que faremos em relação à situação dos Engrenhados? — questionou Bercovitch, mais conhecido entre os homens como Berco.
— Berco, você está se preocupando demais. Aqui, beba um pouco de água. — Douglas estendeu um cantil, o tom sereno contrastando com a tensão no ar. Berco não pode deixar de notar o sorriso no canto de sua boca.
— Senhor… — Berco encarou Douglas com uma carranca de descontentamento. A irritação estampada em seu rosto era palpável, e, embora estivessem em território estrangeiro, onde discrição era uma virtude, ele não se conteve.

— Não há necessidade para tanta preocupação. — Douglas deixou-se cair ao chão, soltando um longo e satisfeito suspiro ao esticar as pernas cansadas. — Já despachei uma equipe para lidar com essa questão. Tenho plena convicção de que tudo sairá conforme o planejado.
— Convicção, senhor? — Berco arqueou uma sobrancelha, a descrença ainda aparente.
— Se algo der errado, a responsabilidade será inteiramente minha. — Douglas falou com firmeza, apoiando os braços sobre os joelhos.
— Hm…
Berco conteve-se diante da resposta, suas palavras morrendo antes de serem proferidas. Ele conhecia aquela frase. Todos conheciam. Era o juramento peculiar de Douglas, uma promessa feita muito tempo atrás para solidificar a confiança entre ele e seus homens.
Se suas decisões resultassem em fracasso, ele havia jurado cortar fora o próprio braço como forma de pagar pelo erro. Uma promessa tão extrema que beirava a loucura, mas que havia cimentado sua autoridade de maneira incontestável.
Nenhum homem da Ponto Escuro ousaria contrariá-lo após ouvir essa declaração. Não porque duvidassem de sua coragem para cumprir a promessa, mas porque jamais fora necessário. Cada vez que Douglas proferia aquelas palavras, os eventos se desenrolavam exatamente como ele previa.
Era essa infalibilidade, reforçada pelo peso de sua promessa, que transformava dúvidas em silêncio e desconfiança em lealdade absoluta.
— O senhor realmente está confortável com essa decisão? — indagou Berco, franzindo o cenho. Douglas, ao perceber a hesitação em seu tom, arqueou uma sobrancelha, incitando-o a prosseguir. Após um suspiro frustrado, Berco continuou: — Homens-Lagartos integrando a Ponte Escuro. Já somos vistos ainda como mercenários pela população do reino, apesar de tudo que fizemos para impulsionar seu crescimento. Sem nós, duvido muito que o reino teria sobrevivido na forma como está hoje.
Suas palavras, embora medidas, carregavam uma carga de ressentimento quase palpável contra aqueles que, mesmo beneficiados por seu trabalho, ainda os tratavam com desprezo e injúrias.
— Você soa como uma criança se lamentando, Berco. — disse Douglas, com um tom calmo, porém cortante.
— Senhor, essa situação é mais grave do que parece! Eles querem colocar esses… — Berco lançou um olhar ao redor, certificando-se de que nenhum Homem-Lagarto estivesse perto o bastante para ouvir sua próxima frase. — Esses monstros na nossa organização… O rei, com certeza, fez isso de propósito. Deve ter pensado que, já que nossa moral perante o reino está no chão, adicionar mais um peso não faria diferença. Afinal, para o público, já somos nada além de escória. Mesmo que, sejamos francos, nossos homens sejam mais fortes do que a maioria dos cavaleiros sagrados…
A última frase escapou de seus lábios como veneno. Era evidente que Berco alimentava ressentimento em relação à situação. Mas a verdade era que ele não exagerava. Eles ainda eram vistos como mercenários que haviam se rendido ao reino. E, por mais que tentassem mudar essa imagem, a primeira impressão deixada na história raramente se apagava.
— Você não acha que está pegando pesado demais? — questionou Douglas.
— De forma alguma, senhor. — respondeu Berco, sem hesitar.
— Então considere isso… Somos vistos com desdém por causa de nossas ações passadas. Diga-me, Berco, o que éramos antes de nos aliarmos ao reino?
Estalando a língua em desgosto, Berco respondeu:
— Ladrões, assassinos… Fazíamos qualquer coisa para conseguir mais dinheiro ao fim do mês.
— Exatamente. Agora me diga, pessoas como nós realmente merecem ser vistos com bons olhos?
— Mas nós compensamos isso, não? O reino só está de pé por nossa causa! Nosso esforço! Se não tivéssemos apoiado e protegendo os aventureiros durante a caça aos monstros que brotam como vermes, aquele lugar teria sido engolido! Os cavaleiros sagrados só ficam escondidos dentro das muralhas, em segurança, enquanto somos nós que enfrentamos o inferno do lado de fora… não eles…
A frustração transbordava das palavras de Berco, mas Douglas discordava de parte do que ele dizia. Não achava que os erros do passado deveriam ser simplesmente apagados. Na verdade, nunca buscou redenção.
Tudo o que Douglas desejava era uma vida tranquila e honesta. Queria um teto seguro, um lugar onde não precisasse temer ser caçado ou morto por crimes antigos. Não buscava ser um herói, um salvador ou um símbolo de justiça.
Alcançou o que queria, mesmo que muitos de seus homens não compartilhassem desse sentimento.
A mancha de mercenário nunca se apagaria. Era algo que carregariam para sempre, um fato incontestável.
— Continuando… Somos vistos como somos por causa de nossas ações, certo? Mas e eles? — Douglas inclinou a cabeça em direção à clareira, onde os Homens-Lagartos se reuniam. Alguns conversavam, outros riam enquanto comiam. — O que eles fizeram para serem tratados como monstros?
— E o que isso importa, senhor?
— Importa para mim. — O tom de Douglas ficou repentinamente mais sério, carregado de autoridade. Seu olhar cortante fez Berco engolir seco. Então, voltando-se para a clareira, continuou: — Neste mundo podre, quero que, ao menos dentro da minha organização, eles recebam o respeito que merecem. Não serão tratados como meros bichos de estimação, ração ou sacrifícios. Serão meus homens. Sob meu comando e sob minhas asas, todos são iguais.
⧫⧫⧫
Alguns dias se passaram, e, após optarem pela estratégia mais prudente, os humanos continuaram acampados nas proximidades da clareira dos homens-lagartos.
Embora agora estivessem formalmente aliados, mantinham uma vigilância incessante, dia e noite, pois ainda não confiavam completamente nos homens-lagartos que habitavam a região.
Douglas levantou-se bem cedo naquele dia. Hoje seria o momento em que conheceria os cinquenta homens-lagartos que, ao seu lado, marchariam rumo ao reino Grão-Vermelho. Inicialmente, o número de guerreiros seria o dobro, conforme o pedido formal feito anteriormente, mas, mesmo assim, ele não se abateu com a redução do contingente.
Afinal, ele sabia que, biologicamente, os homens-lagartos eram mais fortes que os humanos, e, se bem treinados, mesmo cinquenta poderiam se transformar em uma força de combate formidável.
No interior do acampamento humano, os cinquenta homens-lagartos estavam organizados em fileiras de dez, alinhados lado a lado. Seus corpos imponentes, de músculos visíveis e posturas altivas, contrastavam com a postura dos mercenários humanos ao redor.
Cada um deles, com o peito estufado e os olhares firmes, exalava um orgulho que, aos olhos de Douglas, parecia inatingível.
Eles portavam suas espadas com a confiança de quem as possuía não apenas como ferramenta de guerra, mas como símbolo de honra.
A relação de Douglas com a espada começara de maneira desonrosa, aos dezenove anos, quando, movido pela ganância, usou sua lâmina para assaltar um casal de viajantes à beira da estrada.
Desde aquele dia, mesmo que tivesse adquirido alguma habilidade com a espada, nunca sentiu a honra que ela deveria representar. Sua lâmina sempre foi um meio de sobreviver, uma ferramenta para tomar dos outros, nunca algo a ser valorizado.
E mesmo agora, ao proteger um reino inteiro, aquela marca de desonra permanecia em seu coração, um peso que ele não conseguia apagar.
— Bom dia a todos! — exclamou Douglas, com as mãos postas nas costas, sua voz ecoando pela clareira enquanto se voltava para o grupo de homens-lagartos à sua frente. Eles eram mais altos e mais musculosos que ele, sua presença ameaçadora tornando o capitão ainda menor diante deles. — Me chamo Douglas Dorian, sou o capitão da organização à qual irão se juntar a partir de hoje, chamada Ponto Escuro. É um prazer conhecer todos vocês.
Antes mesmo de marcharem para o reino, Douglas achou interessante a oportunidade de se apresentar formalmente aos homens-lagartos que, a partir daquele momento, passariam a ser seus subordinados. Por isso, solicitou permissão para realizar uma sessão de treino com eles e seus próprios mercenários.
— Hoje, iremos dar início à nossa primeira sessão de treino juntos. Quero que saibam que estou bastante animado em poder trabalhar ao lado de vocês, e quero ver do que os guerreiros homens-lagartos são feitos!
Algumas risadinhas e sorrisos vindos dos homens-lagartos fizeram os outros mercenários se agitar. Era como se os lagartos os estivessem menosprezando, com sorrisos convencidos que denotavam uma arrogância silenciosa, algo que inflamava a raiva nos corações dos humanos.
— Agora, cada um dos meus homens irá escolher um de vocês para que possam ter um combate individual. Isso servirá para que eu possa avaliar, de forma mais íntima, do que vocês realmente são capazes.
Com essa instrução, os mercenários começaram a se mover, avançando em direção aos homens-lagartos e selecionando seus parceiros de treino. O plano de Douglas era simples, mas estratégico: criar uma oportunidade para que houvesse, ao menos, um pequeno vínculo entre eles.
O ato de trocar lâminas, de lutar ao lado do outro, de sentir o peso e a força de um guerreiro diferente, poderia ser uma forma de estabelecer uma conexão, um entendimento mútuo entre os homens.
Afinal, a lâmina não era apenas uma ferramenta de combate — ela era uma extensão do guerreiro, um elo que poderia, com o tempo, transformar estranhos em aliados.
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