Capítulo 6 – O Pináculo de Lugar Nenhum
Jake seguiu os dois homens por um corredor escuro e abafado. A penumbra do local não o incomodava; como elfo, ele nascera com sentidos extraordinários que amplificavam sua visão, audição e olfato. O lugar era opressor, mas seus ouvidos captavam nitidamente os sons além das portas fechadas que ladeavam o corredor estreito.
Jogos de azar.
Pessoas riam e brindavam, os sons de dados rolando e moedas tilintando preenchiam os aposentos invisíveis. Aquele era um antro de apostas, um refúgio de indulgência e vícios para os elfos negros. Infra, a cidade esquecida pelos elfos do reino, prosperava nesse caos.
As leis do reino — que consideravam apostas um crime — não tinham força ali. A ilegalidade era a norma, e seus habitantes a aceitavam como parte de suas vidas cotidianas.
Durante o caminho até ali, Jake tinha visto a decadência da cidade em toda sua glória. Prostíbulos escancarados pontuavam as ruas, com mulheres em trajes mínimos chamando a atenção dos passantes. A vulgaridade era tão comum quanto o ar que se respirava.
Diferente de sua terra natal, onde regras rígidas e pudores mantinham a ordem, Abelium era uma terra sem amarras, onde qualquer coisa parecia possível.
Eles chegaram ao final do corredor, onde dois elfos negros corpulentos montavam guarda diante de uma porta robusta. Os olhos dos guardas analisaram os dois homens à frente de Jake, depois se fixaram nele.
O capuz que cobria sua cabeça e o arco pendurado em suas costas chamaram a atenção imediata. Um estranho encapuzado, armado, caminhando em direção ao chefe deles? Não era algo que passaria sem questionamentos.
Os guardas ergueram as mãos, exigindo que o grupo parasse. O homem magro que guiava o trio, o mesmo que havia aberto a porta de entrada para Jake, fez sinal para que ele e o outro acompanhante esperassem.
Ele avançou até os guardas e iniciou uma conversa rápida, mas tensa. Palavras eram trocadas, sussurros afiados, enquanto os olhos dos guardas retornavam ocasionalmente a Jake, desconfiados.
Após alguns minutos, um dos guardas assentiu com relutância. Eles abriram a porta, e o trio foi autorizado a entrar. Jake ajustou o capuz, certificando-se de que seu rosto permanecesse oculto, e seguiu os outros para dentro da sala.
O ambiente tinha o que Jake não esperava: simplicidade. Um escritório modesto. À frente, uma mesa desorganizada com papéis e documentos espalhados, atrás dela uma janela ampla, cujos vidros empoeirados mal permitiam a entrada da luz externa.
À direita, uma estante repleta de livros, alguns inclinados de maneira casual, como se fossem tirados e recolocados sem muito cuidado.
O homem ali presente era a figura central. Um elfo negro, marcado por uma cicatriz que contornava seu olho direito, descendo até o maxilar. Vestia roupas sociais, mas o desleixo era evidente.
O tecido estava amassado, e as mangas da camisa haviam sido puxadas até os cotovelos, revelando braços fortes e ligeiramente tatuados. Ele segurava um lápis entre os dedos enquanto passava a outra mão pelos cabelos negros e lisos, que caíam desordenadamente sobre seu rosto, alguns fios bloqueando parcialmente sua visão.
Seus olhos, no entanto, eram inconfundíveis: um misto de cansaço e ameaça, como os de um predador que preferiria não ser incomodado, mas que não hesitaria em atacar. Ele ergueu o olhar para os três que haviam acabado de entrar — Jake e seus acompanhantes.
A porta se fechou atrás deles com um estalo seco, e a tensão no ar aumentou. Todos na sala ficaram rígidos, como se aguardassem uma explosão iminente.
— Que porra é essa? — disse o elfo, o tom firme, cortante, carregado de autoridade.
Jake notou os dois homens ao seu lado trocarem olhares rápidos, claramente desconfortáveis. Não era à toa. Aquela figura à sua frente não era apenas o líder daquele estabelecimento; ele era uma lenda em Abelium. Um homem cujo dinheiro e influência governavam a cidade tanto quanto seus punhos e presença.
O olhar do elfo negro pesava sobre eles como um martelo prestes a descer. Seus movimentos eram lentos, deliberados, enquanto ajustava o lápis entre os dedos. Cada detalhe — da cicatriz ao desleixo calculado — dizia uma coisa: ele não precisava se esforçar para parecer perigoso. Ele era.
— Então, chefe… — o homem começou, desviando o olhar nervosamente para Jake. — Esse cara aqui… quer falar com o senhor.
A hesitação em sua voz era tão óbvia quanto o suor que começava a brotar em sua testa. Apesar de ser mais alto e musculoso que o homem sentado atrás da mesa, ele parecia um coelho diante de um lobo, incapaz de disfarçar o medo de dizer algo que pudesse irritar Salazar.
O chefe levantou uma sobrancelha, a expressão exalando cansaço misturado com um toque de irritação. Por um instante, ficou em silêncio, seus olhos escuros avaliando Jake sem pressa. Então, ele se recostou na cadeira, cruzando os braços de forma casual, mas cada movimento tinha um peso deliberado.
— Se eu não estou enganado — disse Salazar, a voz baixa, porém cortante como lâmina, — deixei bem claro que hoje não queria lidar com nenhum idiota. Não foi isso que eu disse?
— F-foi sim, senhor. Só que…
— Só que o quê?
O tom da última frase era como um golpe seco, fazendo o homem calar a boca instantaneamente. Sua respiração ficou presa na garganta, os olhos arregalados como se Salazar tivesse apontado uma lâmina invisível em sua direção.
Jake, parado ao lado, sentia o ar da sala pesado, quase sufocante. A tensão pairava como uma corda esticada, prestes a romper. O terror emanava dos dois homens ao seu lado, mas isso não era surpresa. Salazar não apenas carregava uma aura esmagadora, como fazia questão de demonstrar o controle absoluto que exercia sobre todos à sua volta.
— Então, é assim? — Salazar falou, a voz baixa, mas carregada com o tipo de veneno que fazia a espinha gelar. — Em vez de cumprir minha ordem, você traz qualquer idiota para a minha sala… porque sim?
— Eu disse pra você… — murmurou o homem magro ao outro, ambos com as cabeças baixas, quase se encolhendo de vergonha.
Jake, por outro lado, tinha limites para sua paciência — e eles já tinham sido ultrapassados.
Ele não havia atravessado Infra e suportado as inconveniências daquela cidade caótica para perder tempo com a teatralidade de Salazar. Sem hesitar, ele puxou o capuz que ocultava seu rosto, revelando suas feições.
A sala ficou em silêncio. Salazar piscou, surpreso, os olhos analisando o rosto do estranho. E então ele viu.
— Ooh… agora entendo. — A voz de Salazar era quase um ronronar. Seus lábios se curvaram num sorriso cheio de deboche. — Um elfo, hein? Porque uma mocinha tão delicada como você estaria andando por um lugar perigoso como este?
Jake não reagiu imediatamente. A insinuação pairou no ar por um momento, até que ele ergueu os olhos e os cravou em Salazar com um olhar tão afiado quanto uma lâmina.
— Mocinha? — Jake perguntou, o tom tão frio que poderia congelar. — Eu sou homem.
— O quê? — O sorriso de Salazar vacilou. Sua surpresa era genuína, o que dizia muito, considerando o quão raramente alguém conseguia desconcertá-lo.
Ele examinou Jake de novo, agora com mais atenção. Era difícil culpá-lo pelo engano. A delicadeza dos traços de Jake era algo que Salazar jamais havia visto, mesmo entre outros elfos. A beleza andrógina era tão impressionante que poderia confundir até o mais atento observador.
Jake não deu espaço para mais divagações. Ele deu um passo à frente, a voz firme e carregada de propósito.
— Vim até aqui para negociar com você, Salazar, o intocável.
Salazar sorriu, aquele tipo de sorriso que não carregava humor algum, mas sim a satisfação de ver sua reputação precedendo-o. O fato de um elfo conhecer seu apelido — um título que só circulava pelos becos sombrios de Infra — significava que seus feitos estavam ecoando além da cidade.
— Você entende sua posição aqui, garoto? — Ele inclinou a cabeça, os olhos brilhando com uma curiosidade afiada. — Qual é o seu nome?
— Jake. E o que diabos você quer dizer com “minha posição”?
O sorriso de Salazar alargou-se, agora um tanto perverso. Ele recostou-se na cadeira, tamborilando os dedos na mesa como se saboreasse cada palavra que estava prestes a dizer.
— Estamos em uma cidade de elfos negros. Se eu quisesse, poderia capturar você agora mesmo e vendê-lo para algum desgraçado daqui que adorasse descontar a raiva que sente pela sua raça metida a besta. Ou, quem sabe, para algum tarado disposto a pagar bem por um rostinho bonito como o seu. Que tal?
Salazar deixou as palavras pairarem no ar, observando Jake como um predador analisa a presa antes do bote. Para ele, era óbvio: nenhum elfo em sã consciência se aventuraria em Infra, ainda mais mostrando o rosto em plena luz — ou escuridão, no caso. A presença de Jake ali era uma ofensa à lógica.
Mas o que Salazar não esperava era a reação de Jake. O elfo apenas sorriu, um gesto calmo e despreocupado que fez o sangue de Salazar ferver.
— Você quer me vender? — Jake respondeu, o tom carregado de sarcasmo. — Para quem? Para um desses elfos negros quebrados que mal têm onde cair mortos? Francamente, faça-me o favor.
Salazar cerrou os dentes, as veias em suas têmporas saltando. Aquele sorriso. Aquele tom. Era o mesmo desprezo que ele havia passado a vida combatendo, vindo dos elfos e suas cidades reluzentes, onde ninguém precisava lutar por nada. Jake era o retrato vivo de tudo o que ele desprezava.
O que tornava ainda mais irritante o fato de Jake estar completamente à vontade. Ele não demonstrava medo, nem mesmo desconforto. Apenas aquele maldito sorriso, como se todo o poder de Salazar fosse irrelevante.
O desejo de esmagá-lo, de arrancar aquele olhar arrogante do rosto dele, era quase irresistível
Jake não deu espaço para Salazar reagir.
— Você é um homem de negócios, certo? — começou ele, sua voz cortante como uma lâmina. — Duvido que vá deixar sua raivinha superar o que realmente deseja.
Salazar estreitou os olhos, o desconforto momentaneamente eclipsado pela curiosidade.
— O que eu realmente desejo? — Ele repetiu, não por dúvida, mas por genuína intriga, embora sua hostilidade permanecesse à flor da pele. Aquele elfo nojento ousava supor que sabia algo sobre ele?
Jake deu um passo à frente, o olhar afiado e provocador.
— Estou falando do topo.
Salazar arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu. Jake prosseguiu, como se tivesse acabado de explicar algo óbvio a uma criança.
— Você chegou ao topo de Infra, mas alcançar o topo de uma cidade como essa… — Ele pausou, deixando o veneno escorrer pelas palavras. — É o mesmo que escalar um monte de merda de cavalo.
A ira cresceu no rosto de Salazar, seus punhos cerrados sobre a mesa. Cada palavra daquele elfo parecia uma facada em anos de suor, sangue e traições que ele suportara para conquistar Infra. A cidade era dele, maldita seja, e aquele garoto falava como se tudo fosse insignificante.
Jake percebeu, mas não diminuiu o ritmo.
— Você dominou o coração dessa cidade. Um feito impressionante, admito. Mas deixe-me perguntar algo: por que você acha que o reino nunca fez nada em relação a Infra? Mesmo com o caos, os crimes, o tráfico.
Salazar não respondeu, porque ele sabia a resposta. Todos em Infra sabiam. Mas Jake, sem esperar, respondeu por ele:
— Porque esta cidade não importa. Não faz diferença nenhuma. — A voz dele era implacável, carregada de uma segurança que parecia desafiar qualquer reação. — Então me diga, Salazar, de verdade: do que você está no topo?
O som seco da mão de Salazar batendo na mesa ecoou pela sala. Ele se levantou com força, a expressão um misto de raiva e frustração. Sua respiração estava pesada, seus olhos queimando de fúria.
Jake perdeu o sorriso sarcástico por um momento, seu rosto assumindo uma seriedade dura, mas o confronto estava longe de acabar.
Os dois homens ao lado de Jake ficaram petrificados, incapazes de entender como aquele elfo ousava dizer tais coisas a um homem que poderia esmagá-lo com um estalar de dedos.
O ar ficou denso, carregado de hostilidade, como se a qualquer momento pudesse explodir em violência.
— Certo, certo. — Salazar soltou um suspiro pesado, passando a mão pelo rosto como quem tenta afastar um pensamento incômodo. — Por mais que me irrite admitir… você está certo. Estar no topo de nada é, no fim das contas, não ter nada.
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