Índice de Capítulo

    Dois dias se passaram desde o início da marcha. A longa estrada de terra estendia-se diante da comitiva, composta pelos 250 soldados de Douglas e os 50 guerreiros homens-lagartos. Sob o sol inclemente que queimava a pele e roubava as forças, o grupo avançava com passos firmes, mas cansados. Algumas horas atrás, haviam contornado outra floresta, densa e misteriosa. Para os homens-lagartos, o desejo de explorar aquele novo domínio foi um teste de ferro; o chamado das árvores era forte, quase visceral, mas o dever os mantinha na trilha.

    Quando o terceiro dia começou a ceder lugar ao crepúsculo, o cansaço tomava conta da comitiva. Shayax, caminhando ao lado de Bruce, arrastava os pés com dificuldade, o corpo arqueado como se carregasse um fardo invisível. O jovem estava exausto, vítima de um problema que ainda não compreendia: a incapacidade de dormir longe do lar.

    — Ahhhh… — Um bocejo longo escapou dos lábios de Shayax, que parecia lutar para manter os olhos abertos.

    Bruce observou o amigo com atenção, notando o semblante abatido e as olheiras profundas que marcavam seu rosto.

    — Você está péssimo, Shayax. — As palavras de Bruce eram diretas, mas carregavam uma preocupação genuína.

    — Não dormi quase nada nas últimas duas noites… — Shayax suspirou, os ombros caídos como se suportassem o peso do mundo. — Não sei o que está acontecendo comigo.

    — Ansiedade, talvez? Ou saudades de casa?

    — Acho que um pouco dos dois.

    Antes que Bruce pudesse responder, um dos companheiros homens-lagartos, Afrem, aproximou-se com passos largos e um sorriso travesso. Durante os dois dias de viagem, Bruce e Shayax haviam feito amizade com ele e com Ibri, uma guerreira de espírito severo e olhar atento.

    — Que tal eu resolver isso para você, Shayax? — sugeriu Afrem, o tom cheio de malícia amistosa. — Uma boa pancada na cabeça, e você dorme como um filhote. O que acha?

    Shayax soltou uma risada fraca, balançando a cabeça.

    — Passo. Prefiro insônia a acordar com uma dor de cabeça infernal.

    Ibri, que vinha logo atrás, ergueu os olhos em direção ao trio, a expressão endurecida.

    — Vocês machos adoram perder o foco com essas brincadeiras. — Seu tom era cortante, carregado de reprovação. — Estamos em território desconhecido. A qualquer momento podemos ser emboscados. Fiquem atentos à estrada.

    — Você está sendo paranoica, Ibri, como sempre. — retrucou Afrem, em um tom de zombaria que apenas intensificou o desagrado da guerreira.

    Ibri lançou-lhe um olhar fulminante, mas preferiu não prolongar a discussão.

    — Hum. Eu mereço. — Ela virou o rosto, encerrando a conversa com uma dignidade silenciosa, enquanto voltava a vigiar os arredores.

    O grupo continuou avançando sob o céu tingido de dourado e violeta, os passos marcados pelo ritmo da jornada. Cada um enfrentava seu próprio cansaço e suas preocupações, mas a estrada não perdoava hesitação. O desconhecido aguardava, indiferente às fraquezas que carregavam.

    Quando a noite finalmente se abateu sobre a comitiva, cobrindo a estrada com um véu de trevas que parecia infinito, Douglas ordenou que o acampamento fosse montado nas proximidades de uma pequena floresta. Embora as planícies abertas estivessem mais próximas e fossem mais fáceis de preparar, a experiência como mercenário do comandante o ensinara que tais áreas eram convites para emboscadas de ladrões. Entre as árvores, ao menos, havia cobertura e sombra.  

    Os homens-lagartos e humanos trabalhavam em conjunto para erguer cabanas improvisadas e preparar o terreno para uma noite de descanso. Turnos de vigília foram rapidamente organizados, com revezamento a cada duas horas, para garantir que ninguém fosse surpreendido no meio da escuridão.  

    Shayax, com os olhos pesados e o corpo tomado pelo cansaço acumulado, deitou-se apressadamente no chão coberto de folhas, cruzando as mãos sob a cabeça como um travesseiro improvisado.  

    — Certo… Deixa eu tentar de novo… — murmurou, fechando os olhos com determinação.  

    — Se não conseguir, minha oferta ainda está de pé, Shayax. Posso te apagar com um só golpe, e você dorme que nem um filhote. — Havia um misto de provocação e camaradagem na voz de Afrem.  

    — Ah, deixa disso… — Shayax respondeu com uma risada fraca, ignorando a ideia absurda.  

    Bruce sentou-se próximo a uma árvore robusta, recostando-se contra o tronco nodoso. Fechou os olhos, mas manteve os ouvidos atentos aos sons ao redor, sem a intenção de dormir profundamente.  

    Ibri, que já terminara suas tarefas, cruzou os braços e observou Bruce com curiosidade.  

    — Por que nunca dorme de verdade? — perguntou, o tom sério como sempre.  

    Bruce abriu um sorriso tenso, coçando a nuca ao responder:  

    — Minha irmã. — As palavras foram acompanhadas por um suspiro resignado. — Ela costumava me atacar de surpresa enquanto eu dormia. Era um tipo de… treinamento, segundo ela. Se eu baixasse a guarda, acabava levando uma surra.  

    Ibri arqueou uma sobrancelha, a expressão severa suavizando-se por um breve momento.  

    — Treinamento ou tortura? — murmurou ela, com um vislumbre de preocupação em sua voz.  

    Bruce deu uma risada curta, embora amarga.  

    — Talvez um pouco dos dois. Com o tempo, acabei desenvolvendo a habilidade de descansar sem precisar adormecer completamente. Não é o ideal, mas é o que tenho.  

    Ibri franziu o cenho, claramente intrigada com a história, mas optou por não prolongar o assunto. Bruce desviou o olhar para Shayax, que tentava dormir, e sorriu.  

    — Como ele consegue aguentar ela? — murmurou para si mesmo.  

    A noite passou lentamente, com as estrelas observando silenciosas lá no alto. Quando os primeiros raios dourados tocaram a copa das árvores, o acampamento foi despertado. Em menos de meia hora, todos já estavam novamente em marcha.  

    Bruce olhou para Shayax, que esfregava os olhos enquanto caminhava, ainda com uma expressão sonolenta.  

    — Conseguiu dormir dessa vez? — perguntou Bruce, lançando-lhe um olhar de canto.  

    — Um pouco. Ainda não foi perfeito, mas foi melhor que antes. — Shayax sorriu, parecendo ligeiramente mais animado.  

    — Ótimo. Talvez hoje à noite você consiga descansar de verdade.  

    Afrem, caminhando ao lado com um semblante relaxado, interrompeu a conversa.  

    — Bruce, quanto tempo falta para chegarmos a esses tais reinos humanos? — perguntou, a cauda balançando com impaciência.  

    Bruce deu de ombros, um sorriso meio desajeitado surgindo em seu rosto.  

    — Como vou saber? É a minha primeira vez indo para lá. Nem faço ideia do que esperar.  

    Afrem soltou um grunhido frustrado, passando uma garra pela lateral da cabeça.  

    — Isso de caminhar o dia inteiro está me deixando maluco. Preciso de algo para me distrair logo!  

    Ibri, que vinha logo atrás, ergueu a voz com sua típica severidade.  

    — E o que fazia para te distrair em tua terra natal, Afrem?  

    Afrem abriu um sorriso largo, exibindo os dentes afiados.  

    — Muitas coisas! Eu comia, treinava, caçava, treinava de novo, e… bem… aproveitava os prazeres da carne quando tinha oportunidade. Muitas coisas!  

    Shayax, lutando para conter uma risada, murmurou:  

    — Isso não são tantas coisas assim…  

    Ibri revirou os olhos, acelerando o passo para se afastar da conversa.  

    — Machos… Sempre tão simples. — Resmungou para si mesma, enquanto o grupo seguia em frente, rumo ao desconhecido.

    A companhia avançava em marcha constante, já se passavam seis dias desde o início da jornada rumo ao Reino dos Homens. Embora a distância ainda fosse considerável, tudo transcorria conforme o esperado. A viagem até o Reino Grão-Vermelho costumava levar de nove a dez dias, e com o ritmo atual, restavam poucos dias para alcançar o destino.

    À frente de todos, Douglas cavalgava em silêncio. Seus olhos semicerrados fixavam a estrada de terra batida, mas sua mente estava distante, mergulhada em pensamentos inquietos. O comandante, conhecido por sua postura implacável e calculista, parecia perturbado. Algo o incomodava profundamente, e o desconforto transparecia em suas expressões tensas.

    Como se sentisse o peso dessa inquietação, Berco, um dos oficiais mais próximos de Douglas, aproximou-se em seu cavalo. Seu olhar denotava preocupação, e sua voz quebrou o silêncio que pairava entre eles.  

    — Capitão, houve algum problema? — perguntou Berco, com a sinceridade de quem havia notado a inquietação horas atrás.

    Douglas desviou os olhos da estrada e fitou seu subordinado por um breve instante antes de balançar a cabeça lentamente.  

    — Não, Berco… talvez seja apenas minha natureza cética — respondeu, sua voz carregada de hesitação. — Parece que nossa sorte está boa demais para ser verdade.

    Berco franziu o cenho, intrigado.  

    — O que quer dizer com isso, senhor? — insistiu ele, mantendo a voz firme, mas respeitosa.  

    Douglas suspirou, ajustando as rédeas do cavalo antes de responder.  

    — Nestes seis dias, avançamos sem qualquer contratempo. Nenhuma emboscada, nenhum sinal de perigo. Mas há algo que me inquieta… não encontramos um único indício de acampamentos de mercenários ao longo do caminho. Nenhum vestígio de fogueiras apagadas ou rastros de grupos itinerantes. É como se tivessem desaparecido da região.  

    O tom do capitão era grave, e Berco compreendeu de imediato a implicação. Douglas não se preocupava tanto com a falta de ataques, afinal, poucos ousariam confrontar uma comitiva da Ponto Escuro, ainda mais sob seu comando. A verdadeira estranheza residia no completo desaparecimento de sinais de vida que costumavam pontuar aquelas rotas.

    Após um momento de reflexão, Berco assentiu lentamente.  

    — Talvez isso tenha algo a ver com a época da Névoa — sugeriu ele. — Mercenários podem ser imprudentes, mas nenhum deles é tolo o suficiente para vagar por estas terras quando a névoa começa a surgir.  

    Douglas ergueu uma sobrancelha, ponderando a hipótese. A Névoa, aquele fenômeno misterioso e mortal, era uma ameaça que pairava como uma lenda viva sobre aquelas regiões. Para muitos, a única escolha sensata era evitar as estradas durante seu aparecimento. Mesmo assim, a explicação de Berco não parecia aliviar a preocupação que lhe corroía.  

    — Talvez esteja certo… — murmurou Douglas, voltando a encarar a estrada à frente. Ainda assim, o peso de sua intuição permanecia ali, um lembrete silencioso de que, no coração do desconhecido, a verdadeira sorte era sempre uma questão de tempo.

    Douglas ainda não conseguia dissipar o peso daquela inquietação que pairava sobre sua alma. Um pressentimento sombrio, como uma névoa insidiosa, apertava-lhe o peito. Ainda assim, tentou acalmar a mente com as palavras de Berco. Talvez o evento da névoa realmente tivesse afastado os mercenários.

    A marcha prosseguia em silêncio, o som das botas no solo marcando o ritmo do avanço. O céu, tingido por tons cinzentos, parecia refletir a tensão que não deixava Douglas em paz. Finalmente, incapaz de suportar o silêncio que alimentava seus pensamentos, ele chamou Berco, que cavalgava ao seu lado.

    Já estavam a poucos dias do destino — o lendário Reino Grão-Vermelho.

    — Berco, pode me ajudar com uma dúvida que me atormenta? — A voz de Douglas era baixa, mas carregava o peso de uma ordem implícita.

    — Claro, capitão. O que lhe aflige? — Berco inclinou a cabeça em atenção, seus olhos fixos no semblante do líder.

    — Qual o vilarejo mais próximo da estrada que estamos seguindo?

    Berco arqueou uma sobrancelha, surpreso pela pergunta inesperada. Ainda assim, seus pensamentos logo começaram a girar, vasculhando memórias fragmentadas em busca da resposta.

    — Vilarejo? — repetiu, como se quisesse confirmar o que ouvira.

    Após alguns instantes, ele balançou a cabeça, um traço de frustração surgindo em seu rosto.

    — Me perdoe, senhor. Não consigo lembrar de nenhum próximo. Mas posso consultar o mapa.

    Douglas ergueu a mão de forma breve, mas firme, interrompendo Berco antes que ele pudesse agir.

    — Não é necessário. — Sua voz carregava um tom distante, como se estivesse preso em lembranças de tempos passados. — Era apenas um pensamento, um eco dos dias em que fui mercenário. Mas esses tempos ficaram para trás. O mundo mudou, e talvez minhas antigas ideias já não tenham tanto valor.

    — Discordo, capitão. Nossa experiência como mercenários ainda nos serve bem. — Berco olhou por cima do ombro, examinando os homens que os seguiam, antes de retornar sua atenção ao líder. — Também achei estranho não termos cruzado com nenhum acampamento mercenário. E acredito que o resto do grupo compartilhe essa impressão.

    Douglas franziu o cenho, refletindo por um momento.

    — Sendo assim, vale a pena investigar. Consulte o mapa. Descubra qual o vilarejo mais próximo e envie dois batedores para lá. Quero informações claras sobre o local.

    Os olhos de Berco se iluminaram, como se finalmente compreendesse os pensamentos do capitão.

    — Sim, senhor! — respondeu prontamente, girando o cavalo com habilidade e cavalgando em direção ao grupo.

    Enquanto Berco se afastava, Douglas permaneceu imóvel, encarando a estrada à frente. Algo na quietude o incomodava profundamente. Seus lábios se comprimiram, e ele murmurou para si mesmo:

    — Amargo…

    A palavra escapou como um sussurro, acompanhada pelo estalar de seus dentes.

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