Capítulo 67 - Irmãos Mercenários
Sigurd finalmente alcançou a entrada da caverna que ele e seu grupo de mercenários utilizavam como base temporária. Não era a única – haviam outras espalhadas pelo território do reino Grão-Vermelho, todas estrategicamente posicionadas para facilitar operações e fugas rápidas. A viagem de volta fora longa, mas relativamente tranquila, exceto por um detalhe que apenas ele sabia: dois de seus homens haviam morrido. Não por descuido, mas pelas mãos de alguém com habilidades tão refinadas em assassinato e furtividade que lutar contra eles teria sido suicídio.
Ele tomou a decisão mais sensata: deixar o inimigo em paz. Às vezes, recuar era o único jeito de vencer, especialmente quando o objetivo era minimizar perdas.
Enquanto cruzava o salão principal da caverna, notou os rostos de seus homens. Olhares raivosos e descontentes, um silêncio carregado de frustração. Era fácil entender o porquê. A névoa inesperada, espessa como um manto de traição, havia surgido no pior momento possível, atrasando-os o suficiente para perderem o prazo da missão. E essa missão teria lhes rendido uma quantia considerável.
Sigurd não podia culpá-los. Na verdade, ninguém ali podia culpar ninguém. Era azar, pura e simples, e todos sabiam disso. Mesmo assim, engolir a perda nunca era fácil, especialmente para homens que viviam no limite da sobrevivência.
Ele passou pelos mercenários com passos firmes, mas sem pressa, lançando olhares de canto para os rostos contorcidos de irritação.
“É difícil para eles… Mas faz parte do jogo”, pensou, enquanto seguia para uma sala no fundo da caverna.
A sala era pequena e funcional, nada extravagante. Uma mesa de madeira gasta dominava o centro, com uma cadeira que já havia visto dias melhores. No canto, uma cama estreita e bem-feita. Mais ao fundo, escondida pela penumbra, estava a verdadeira joia da sala: um pequeno lago que se conectava a uma passagem subterrânea. Uma saída de emergência. Apenas ele e seu irmão, Vick, conheciam aquele segredo. Era uma regra básica de sobrevivência. Confie em poucos, conte menos ainda.
Sigurd afundou na cama, o peso dos últimos dias finalmente deixando seus ombros. Ele fechou os olhos por um instante, mas um sorriso torto surgiu em seus lábios.
“Um sucesso…”, murmurou para si mesmo, sem explicar, nem mesmo em pensamento, o que queria dizer com aquilo.
Três batidas leves na porta o arrancaram de seus devaneios. Aquele padrão era inconfundível – seu irmão mais novo, Vick.
— Entre. — disse Sigurd, sem sequer abrir os olhos.
A porta rangeu ao abrir, e Vick entrou, fechando-a rapidamente atrás de si. Ele era um homem jovem, talvez um pouco mais franzino que os outros, mas a inteligência brilhava em seus olhos.
— Vejo que está cansado, irmão. — disse Vick, enquanto cruzava os braços.
Sigurd se levantou da cama, ajeitando a postura como quem tenta desmentir a verdade evidente.
— Cansado? Eu? Não sei do que está falando, irmãozinho. — respondeu, deixando escapar uma risada baixa.
— Além disso, parece feliz. — Vick arqueou uma sobrancelha. — Não xingou os céus nenhuma vez no caminho de volta. Nada sobre má sorte ou a maldita névoa…
Sigurd inclinou a cabeça, fingindo indignação.
— Ei, ei. Tá pensando o quê, baixinho?
A provocação arrancou um sorriso discreto de Vick, mas ele não mordeu a isca.
— Me diga uma coisa, irmão. — começou Vick, mudando o tom. — O cliente que pediu aquela missão… Ele encontrou você na floresta de Uruan, não foi?
Sigurd ficou imóvel por um segundo, encarando o irmão. A floresta de Uruan. A informação era correta, mas o detalhe o preocupava. Apenas ele e o contratante deveriam saber daquele local.
— Como você sabe disso? — perguntou, com uma calma forçada.
— Você estava me seguindo?
O sorriso de Vick cresceu, mas não era um sorriso amigável.
— Talvez. Ou talvez eu tenha meus próprios informantes.
Sigurd não respondeu de imediato, mas sua mente já trabalhava em alta velocidade.
Sigurd respirou fundo, os olhos fixos na figura do irmão parado à porta.
— Quantas pessoas sabem? — perguntou, quebrando o silêncio que parecia pesar como uma rocha entre eles.
— Apenas eu — respondeu Vick, sem hesitar. — E, respondendo à sua pergunta anterior, não, eu não o segui. Só deduzi. Você me deu algumas pistas, mesmo que não tenha percebido.
Sigurd cerrou os olhos, avaliando a resposta. Era verdade que ele havia compartilhado informações superficiais, o suficiente para acalmar a curiosidade do irmão, mas nada tão concreto. Ainda assim, Vick acertara com precisão quase sobrenatural. Era quase irritante, mas não exatamente surpreendente. Ele conhecia bem o irmão que tinha.
Se o destino tivesse sido mais gentil, talvez Vick tivesse seguido um caminho muito diferente — um acadêmico respeitado, talvez até famoso. Contudo, a guerra que ceifara os pais de ambos roubara dele essa chance. Inteligência fora do comum e uma aura imponente faziam parte de quem ele era, mas tudo isso estava marcado pelo semblante jovem demais para tanta raiva acumulada.
— Se você não confia em mim o suficiente para contar o que realmente está tramando, então não vou perguntar mais nada. — Vick deu meia-volta, a mão pousando firme na maçaneta da porta.
— Espere! — exclamou Sigurd, o tom mais alto do que ele pretendia.
O irmão parou, mas não se virou, e Sigurd soltou um suspiro de frustração.
— Você é tão dramático, caramba, Vick. — Ele esfregou a testa, buscando paciência. — Tá bom, vou te contar.
O jovem virou-se lentamente, a expressão dura suavizada pela curiosidade que ele tentava esconder.
Sigurd hesitou por um momento antes de começar a falar.
— Há pouco mais de um mês, fui abordado por um contratante. O encontro aconteceu na floresta de Uruan, como você deduziu. — Ele fez uma pausa, esperando alguma reação do irmão, mas Vick permaneceu imóvel, a atenção completamente nele. — Só que aquele homem não era o verdadeiro contratante. Ele estava servindo como ponte entre mim e quem realmente nos contratou.
Vick arqueou uma sobrancelha, mas permaneceu calado.
— A missão era simples, pelo menos no papel: devastar um vilarejo e fazer parecer que foi obra do acaso. O tipo de coisa que uma neblina súbita ajudaria a justificar. — Sigurd riu de canto, mas o som não tinha humor algum. — E claro, eu não podia contar aos meus homens a verdadeira natureza do trabalho. Eles precisavam acreditar que era apenas mais uma missão comum.
A raiva de Vick finalmente transpareceu.
— Esses nobres… Como pode, Sigurd? Aceitar um trabalho sujo desses para aqueles porcos que só sabem de guerra e destruição?
A reação era exatamente o que ele esperava. Vick sempre carregara um ódio visceral pelos nobres, os mesmos que haviam sido os responsáveis pela guerra que destruíra a família deles.
— Irmãozinho… — Sigurd começou, a voz baixa e quase gentil. — Você é inteligente o suficiente para perceber a armadilha que armaram para mim, não é?
Vick apertou os punhos, os olhos baixos, e estalou os dentes, um som que ecoou na pequena sala.
— Nojentos… — balbuciou ele.
Sigurd continuou, a voz agora mais firme, quase desafiadora.
— Por que você acha que eles escolheram minha trupe? Com tantos mercenários experientes e organizações maiores por aí, por que contratar um grupo pequeno e pouco conhecido como o nosso?
Vick não respondeu, mas o silêncio dele era carregado de compreensão.
— Porque somos descartáveis. — Sigurd completou, o sorriso que se formou em seu rosto era amargo como fel. — Eles não queriam chamar atenção. Queriam que o ataque parecesse um acidente, algo que não levantasse suspeitas entre as massas.
Ele fez uma pausa, observando o irmão processar a explicação.
— Grandes organizações não aceitariam esse tipo de missão. Elas têm influência suficiente para recusar contratos políticos sujos sem medo de retaliações. Mas nós? Nós não temos esse luxo.
Vick finalmente ergueu os olhos, e Sigurd viu a mistura de raiva e impotência neles.
— Então você aceitou porque não tinha escolha…
— Exato. — Sigurd deu de ombros, como se estivesse falando do clima. — Se eu recusasse, eles teriam nos eliminado. Ou algo pior. Você sabe como é o jogo político entre os nobres. Recusar um trabalho assim seria o mesmo que cavar nossa própria cova.
O silêncio que se seguiu foi pesado, mas Vick não tinha mais nada a dizer. Ele entendia, mas isso não tornava mais fácil de aceitar.
— Espere um pouco… — A expressão de Vick contorceu-se em algo entre o choque e a incredulidade, seus olhos arregalados como se tivesse acabado de perceber uma verdade que desafiava a lógica. — A névoa… Eles ordenaram o ataque no dia exato do evento da névoa porque sabiam que iria acontecer?!
Sigurd cruzou os braços e suspirou pesadamente, inclinando a cabeça levemente, como alguém que estava esperando por esse momento. Ele sabia que não demoraria para Vick, com sua mente afiada, juntar as peças. O fenômeno da névoa, uma força da natureza caótica e imprevisível, sendo antecipado com tamanha precisão? Mesmo que isso fosse verdade, contar tal história seria suficiente para que qualquer um os chamasse de loucos. Mas, afinal, eles estavam sendo pagos, e acreditar não fazia parte do contrato. Apenas cumprir.
— Sim, isso mesmo. Eles acertaram na mosca. — Respondeu Sigurd, a voz carregada com um tom quase cortante, enquanto um olhar gelado tomava conta de seu rosto.
Vick deu um passo hesitante para trás, o impacto da revelação quase o desequilibrando. Ele piscou rapidamente, tentando processar o que ouvira.
— Como… Por quê… Como isso é possível?
O evento da névoa. Apenas mencionar seu nome já trazia um arrepio às espinhas de aventureiros e mercadores por todo o continente. Era um terror antigo, descrito em incontáveis relatos como uma parede de bruma tão espessa que apagava a paisagem ao redor, engolindo florestas, vilarejos e até mesmo exércitos inteiros. Muitos que ousaram cruzar seu véu nunca mais retornaram, deixando apenas histórias de desaparecimentos misteriosos e lendas assustadoras.
A névoa era um pesadelo aleatório, surgindo sem aviso prévio. Ou pelo menos, era o que todos acreditavam.
— Eles acertaram o lugar e o dia que a névoa apareceria… Isso é… Isso é monstruoso. — murmurou Vick, sua voz cheia de raiva contida. — Como podem omitir algo assim? Essa informação poderia salvar vidas, Sigurd! Por que manter algo tão crucial em segredo?
Sigurd apenas deu de ombros, mas seu olhar permanecia fixo, duro como pedra.
— Não faço ideia. E, para falar a verdade, não quero nem saber.
Vick notou a tensão no rosto de seu irmão, um músculo se contraindo na mandíbula dele. Havia mais ali, algo que Sigurd estava escondendo.
— Tomei uma decisão importante baseada nisso… — murmurou Sigurd, finalmente desviando o olhar.
— Que decisão? — insistiu Vick, estreitando os olhos.
Sigurd respirou fundo antes de soltar a bomba:
— Não podemos continuar no território deste reino depois de tudo isso. Temos que desaparecer.
Vick sentiu seu estômago afundar enquanto as palavras do irmão se fixavam em sua mente. Agora fazia sentido: a compra de explosivos em segredo, o recuo estratégico na busca pelo assassino de dois de seus homens no vilarejo, a inquietação crescente de Sigurd. Tudo isso apontava para uma conclusão inevitável.
— Você vai explodir… você vai explodir nossos próprios homens? — A voz de Vick saiu quase como um sussurro, cheia de descrença.
Sigurd assentiu lentamente, sem dizer uma palavra. Ele mantinha a cabeça baixa, como se a própria ideia fosse um fardo pesado demais para carregar.
— Você quer que todos pensem que morremos, não é? — continuou Vick, sua voz agora mais firme. — Vai usar essa explosão para fingir a destruição completa da nossa organização, enganando os nobres que nos contrataram. Com isso, nós dois fugiremos com o dinheiro que você recebeu adiantado. É isso, não é?
Sigurd levantou os olhos, encarando o irmão com um olhar vazio, quase resignado.
— Esses nobres não vão descansar enquanto souberem que estamos vivos. Se eles suspeitarem que temos conhecimento de que a névoa pode ser prevista, não pensarão duas vezes antes de nos caçar. Isso é uma guerra que não podemos vencer, Vick.
— Então, é por isso que você fez tudo isso… — Vick sussurrou, mais para si mesmo do que para o irmão.
Houve um longo silêncio entre os dois, quebrado apenas pela respiração pesada de Vick. Finalmente, ele suspirou e balançou a cabeça.
— Você ia me contar isso hoje, não ia?
— Sim. Porque hoje é o dia. A base vai pelos ares ao pôr do sol.
Vick fechou os olhos, lutando contra a tempestade de emoções que se formava dentro dele. Quando os abriu novamente, havia um brilho sombrio em seu olhar.
— Então vamos terminar isso juntos.
Sigurd sorriu levemente, um sorriso amargo e cansado, mas cheio de gratidão.
— Obrigado, irmão.
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