Índice de Capítulo

    A noite caiu sobre o vilarejo devastado, o silêncio pontuado apenas pelo crepitar distante de fogueiras improvisadas e o som abafado de gemidos de cansaço. 

    O exército finalmente se reuniu no centro do vilarejo destruído, trazendo consigo os destroços de uma batalha vencida a duras penas. Entre eles, dois dos mercenários capturados estavam sendo mantidos sob vigilância rigorosa em uma das poucas casas ainda de pé. Amarrados com cordas grossas e firmemente presos, não tinham chance alguma de escapar.

    Douglas, o líder da Ponto Escuro, havia decidido que passariam a noite no vilarejo. A viagem de volta ao reino ficaria para o amanhecer. Enquanto caminhava pelo local, os olhos de Douglas analisavam as baixas que tiveram: seis homens-lagartos mortos, restando apenas quarenta e quatro do contingente original. Da Ponto Escuro, três soldados haviam sucumbido às queimaduras das explosões, reduzindo suas fileiras para cento e quarenta e sete.

    Douglas queria respostas. Porém, sabia que seus homens precisavam de descanso antes de mais qualquer esforço. Decidido, caminhou em direção à casa onde os prisioneiros estavam confinados, chamando Bruce e Berco para acompanhá-lo. Esses dois haviam liderado a missão de captura, e ele precisava deles tanto pelo relato quanto pela autoridade que impunham.

    A entrada da casa era simples, de madeira estilhaçada, com marcas de batalha ainda visíveis nas paredes. 

    Guardas postados à porta endireitaram a postura ao ver Douglas se aproximar. Ele assentiu levemente antes de cruzar o limiar, seus passos ecoando pelo piso irregular. 

    Lá dentro, dois cavaleiros da Ponto Escuro mantinham vigília sobre os prisioneiros. Com um gesto breve, Douglas ordenou que saíssem, deixando apenas ele, seus dois tenentes e os prisioneiros na sala abafada.

    Os mercenários estavam sentados no chão frio, amarrados de forma que mal podiam mover os braços ou as pernas. Suas roupas estavam sujas de sangue seco e fuligem, os olhos cansados mas ainda desafiadores. A luz bruxuleante da tocha na parede projetava sombras nas feições endurecidas de Douglas enquanto ele se sentava em uma cadeira diante deles, sua postura calma, mas imponente.

    — Me chamo Douglas — começou ele, sua voz grave cortando o silêncio como uma lâmina afiada. — Sou o líder da Ponto Escuro.

    À sua direita, Berco permaneceu imóvel, os braços cruzados sobre o peito largo. Seus olhos, de um castanho profundo, fixaram-se nos prisioneiros como se quisessem arrancar a verdade à força. À esquerda, Bruce exalava tensão. Seus punhos estavam cerrados, os músculos das mãos pulsando levemente sob a pele. Ele se manteve ereto, o peito inflado, o queixo erguido. Seu olhar afiado, uma mescla de raiva e determinação, parecia perfurar os dois homens amarrados.

    A atmosfera na sala era densa, quase sufocante. Os prisioneiros trocaram olhares rápidos, tentando buscar algum tipo de conforto um no outro, mas era evidente que estavam acossados.

    Douglas inclinou-se ligeiramente para frente, suas mãos pousando calmamente sobre os joelhos.

    — Vamos facilitar as coisas para vocês — continuou ele, com a mesma firmeza implacável. — Vocês vão responder às minhas perguntas. Se colaborarem, talvez consigam sair dessa situação com vida. Caso contrário… — Sua voz pairou no ar, deixando o final da frase implícito.

    Bruce deu um passo à frente, sua presença aumentando a pressão na sala. Berco apenas sorriu de canto, como se já soubesse exatamente qual seria a escolha dos prisioneiros.

    A chama da tocha tremeluzia na parede, lançando sombras longas e dançantes pela sala sufocante. 

    Os dois mercenários, amarrados no chão, mal conseguiam esconder um misto de medo e arrogância. O mais velho esboçou um sorriso. Não era um sorriso genuíno, mas uma máscara frágil que escondia o desespero de sua situação.

    — A gente já sabe como funciona… então nos poupe dessa palhaçada — disse ele — Vamos responder tudo o que quiser, mas antes… preciso fazer uma pergunta. É possível nos deixar ir e fingir que morremos na explosão?

    Berco foi o primeiro a reagir. Seu rosto, sempre uma mistura de determinação e rudeza, se contorceu como se tivesse mordido algo amargo. Ele ergueu a sobrancelha, incrédulo, antes que sua expressão mudasse para pura indignação. Encheu os pulmões com ar, pronto para explodir.

    — Que?! Me poupe! Vocês vão passar um bom tempo numa cela em Grão-Vermelho! — bradou ele, o braço direito se movendo em um arco amplo, como se quisesse varrer a audácia do pedido para fora da sala.

    Douglas, sentado à mesa com os olhos fixos nos prisioneiros, ergueu a mão, um gesto calmo, mas definitivo.

    — Berco, fique calmo. — Sua voz era baixa, quase como um sussurro, mas carregava um peso que silenciava a sala. — Eles não parecem tolos o suficiente para pedir algo assim sem um bom motivo.

    Berco resmungou algo inaudível, frustrado, enquanto apertava os punhos com tanta força que as juntas ficaram brancas.

    — Quero que me conte — continuou Douglas, com a paciência de um predador observando sua presa. — Conte por que fez essa pergunta e, mais importante, dê informações detalhadas sobre seu empregador e sua missão. E entenda uma coisa: se eu perceber que está mentindo, a conversa termina aqui, e vocês vão ter que se explicar ao nosso pessoal da coleta de informações.

    O significado estava claro. Recusar-se a cooperar ou tentar enganá-los resultaria em uma viagem direta às mãos dos torturadores de Grão-Vermelho. Os prisioneiros assentiram com a cabeça, o medo agora evidente em seus olhos.

    O careca começou a falar, sua voz entrecortada. O outro mercenário, mais jovem e menos seguro, o interrompeu algumas vezes, mas logo ficou claro que eles estavam dispostos a colaborar. A explicação era longa e cheia de detalhes. Douglas e Berco ouviram atentamente, embora Berco frequentemente franzisse a testa em descrença. Em um momento, Bruce precisou intervir.

    — O que significa isso? — perguntou ele, interrompendo o careca enquanto o homem tentava explicar o termo “nobre”.

    Palavras e conceitos que eram comuns entre os reinos humanos e élficos, mas inexistentes entre os homens-lagartos, precisaram ser esclarecidos. A paciência de Douglas era admirável, mas mesmo ele começou a se inquietar quando a narrativa tomou um rumo estranho.

    — Espere um pouco… você está brincando conosco? Quer mesmo que acreditemos que o verdadeiro objetivo de vocês era atacar o vilarejo? — interrompeu Berco, sua voz elevando-se.

    — É a verdade! Enganei os outros para pensarem que a missão fosse diferente! — retrucou o careca, quase suplicante.

    Berco bufou, incrédulo.

    — Não brinque conosco! Isso não faz sentido! Se isso fosse verdade, vocês teriam que saber exatamente quando e onde a névoa apareceria. Como poderiam prever isso?

    O mercenário careca engoliu seco.

    — O nobre do reino… ele nos deu a hora e o dia exatos. Eu só segui ordens do contratante!

    Berco estava pronto para explodir novamente, mas Douglas ergueu a mão.

    — Quero perguntar algo. — Sua voz cortou o ar, e Berco se calou imediatamente. — Vocês disseram que nunca conheceram o contratante verdadeiro, apenas alguém enviado por ele. É isso?

    — Sim, exatamente. Tenho certeza de que era um nobre de Grão-Vermelho. A missão era destruir um vilarejo pertencente a outro nobre! É uma intriga entre casas nobres, algo feito nas sombras.

    Douglas ponderou as palavras, sua mente mergulhando em cenários possíveis. 

    Guerras entre famílias nobres eram eventos conhecidos, mas seguiam um protocolo rígido. Antes de qualquer conflito, os nobres precisavam notificar o rei, que então autorizava a batalha. Os termos eram estabelecidos de forma clara: hora, local e condições.

    Este ataque, no entanto, era algo fora da lei. Mercenários estavam envolvidos, um crime por si só, e nenhum pedido formal havia sido enviado ao rei. Douglas sentiu um gosto amargo na boca.

    Era possível que esse ataque tivesse sido planejado para enfraquecer o nobre local antes de uma guerra formal. Diminuir suas forças, reduzir suas chances de vitória, e então solicitar a permissão real para um conflito. Mas também podia ser algo mais. Intrigas políticas nunca foram a especialidade de Douglas. Ele odiava o jogo sujo da política. Seu foco era a estratégia militar, não os jogos de poder.

    Ainda assim, a situação exigia respostas. E ele as teria, de um jeito ou de outro.

    — Tudo bem, tudo bem. Acho que é o suficiente por hoje — disse ele, sua voz grave ecoando nas paredes de madeira. — Se continuarem a cooperar, não será necessário recorrer a métodos mais… drásticos. Mas não se iludam. Não posso libertá-los. Vocês atacaram um vilarejo indefeso, massacraram inocentes. Se eu, líder da Ponto Escuro, os soltasse, como meus homens me veriam? Como o reino me veria?

    Um dos mercenários, até então silencioso, revirou os olhos e resmungou, sua voz carregada de desdém:

    — Ah, qual é! Vocês da Ponto Escuro não passam de mercenários que agora bajulam nobres e a família real! Não são melhores do que nós!

    Douglas não se abalou. Seu semblante permaneceu impassível, como uma estátua talhada em granito.

    — É verdade — admitiu ele, sua voz calma, mas firme. — Fomos mercenários, sim. E fizemos coisas que talvez superem até mesmo as suas. Mas isso não muda o fato de que vocês serão levados ao Grão-Vermelho para serem julgados. Esta é a minha decisão final.

    Os rostos dos dois mercenários se contorceram em uma mistura de raiva e desespero. Até então, eles ainda nutriam a esperança de que poderiam negociar sua liberdade. Mas agora, essa última centelha de esperança havia se extinguido, consumida pela frieza das palavras de Douglas.

    Com um gesto autoritário, Douglas chamou os guardas que aguardavam do lado de fora. Eles entraram, suas armaduras tilintando suavemente, e assumiram o controle dos prisioneiros. Douglas, seguido por Bruce e Berco, deixou a cabana e adentrou a noite escura, onde as estrelas pareciam testemunhas silenciosas de tudo o que havia ocorrido.

    — Douglas — disse Bruce, quebrando o silêncio. Seus olhos amarelos brilhavam com uma mistura de seriedade e expectativa. — Agora que isso está resolvido, você poderia me ensinar sobre Gama e Fluxo?

    Berco, que caminhava ao lado deles, ergueu uma sobrancelha, surpreso.

    — Espera aí — interrompeu ele. — Você vai ensiná-lo?

    Douglas virou-se para Berco, um leve sorriso nos lábios.

    — Por que não? Em breve, quando retornarmos ao Grão-Vermelho, Bruce e todos os homens-lagartos se juntarão oficialmente à Ponto Escuro. Faz sentido que eu queira torná-los mais fortes, não acha?

    Berco hesitou por um momento, mas logo concordou com um aceno de cabeça.

    — Sim, claro. Peço desculpas se pareci rude, senhor.

    — Não se preocupe — respondeu Douglas, voltando-se para Bruce. — Mas saiba que aprender a manipular Gama e Fluxo é apenas o começo. Há muito mais que você precisa dominar se quiser realmente se tornar um membro da Ponto Escuro.

    Bruce inclinou a cabeça, curioso.

    — Como o quê?

    — Fundamentos básicos sobre Gama, por exemplo. A energia que permeia o mundo e como controlá-la. Além disso, você precisa de conhecimento geral. Sua raça vive isolada do resto do continente há gerações. Isso é uma desvantagem que precisa ser corrigida.

    Bruce refletiu sobre as palavras de Douglas. Ele sabia que o líder estava certo. A falta de conhecimento era uma fraqueza, e se ele quisesse se tornar mais forte — não apenas para si, mas para sua tribo —, precisava aprender com os humanos. Um dia, ele retornaria aos homens-lagartos e compartilharia tudo o que havia aprendido, fortalecendo sua tribo para os desafios que estavam por vir.

    — Você está certo — disse Bruce, determinadamente. — Preciso aprender sobre o mundo humano o mais rápido possível.

    Douglas sorriu, satisfeito.

    — Pensei que teria que insistir mais um pouco — admitiu ele. — Mas fico feliz que você entenda a importância disso. E não será apenas você. Quero que todos os homens-lagartos aprendam sobre Gama, etiqueta e conhecimentos gerais. No futuro, quando vocês se encontrarem com nobres ou figuras de grande renome, precisarão saber como se portar.

    Bruce assentiu, sua mente já se enchendo de possibilidades.

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