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    — Meu Deus… — A mão de Pursena cobriu seus lábios, seus olhos arregalados denunciavam o horror que sentia ao ouvir a história.

    — Então foi isso… Pecadores… — Ivoguin apertou o punho com força, seus nós dos dedos embranquecendo enquanto sua voz oscilava entre raiva e tristeza.

    — Depois que a treinei por uns cinco anos, ela insistiu em me acompanhar em uma viagem. Já era adulta, com seus quinze anos, e não consegui convencê-la a ficar. Agora aqui estamos. — Markus suspirou, sua voz carregada por uma mistura de cansaço e aceitação.

    Um silêncio pesado caiu sobre a sala, sufocando as palavras de todos por um momento. Até o vento que antes sussurrava pelas frestas das janelas parecia ter se calado.

    — Markus… — Ivoguin finalmente quebrou o silêncio, sua voz carregada de remorso. — Eu… Eu nem fazia ideia de que tudo isso tinha acontecido. Por que nunca me contou? Eu teria feito qualquer coisa para ajudar.

    — Não podia… — Markus respondeu, sua voz firme, mas não desprovida de emoção.

    — Por que não?! — A indignação de Ivoguin era palpável.

    — Porque esta viagem tem um propósito. E este propósito… é caçar e matar os pecadores. — Markus o encarou diretamente, seus olhos como brasas sob as sombras das tochas.

    Ivoguin recuou ligeiramente, surpreso. Mas foi Pursena quem parecia mais atordoada, seus olhos se enchendo de lágrimas enquanto processava as palavras. Pecadores. Mesmo em terras distantes, os rumores sobre aqueles monstros eram sussurrados com temor. Homens e mulheres que renunciaram à própria humanidade para mergulhar na escuridão, matando por prazer, deixando atrás de si um rastro de caos e sofrimento.

    — Durante esses cinco anos, estive caçando cada um deles. Eu sei o quão perigoso é, mas essa é a única forma de fazer justiça pela minha filha. — A voz de Markus era como uma lâmina bem afiada, cortando qualquer argumento antes que surgisse. — Não podia envolver você nisso, Ivoguin. Este é meu fardo.

    — Markus… — murmurou Ivoguin, sem palavras diante da determinação do amigo.

    — Você pode me ajudar de outra maneira. — Markus virou-se para Pursena, inclinando-se ligeiramente, um gesto de respeito. — Cuide de Sira para mim. Ela precisa de um lar seguro, de pessoas que possam oferecer o que eu não consigo. Não peço por mim, mas por ela.

    Pursena tentou segurar as lágrimas, mas foi em vão. Seus olhos recaíram sobre Sira, a menina que parecia tão pequena diante do peso do mundo. Tão pequena e, ainda assim, tão forte por ter suportado tudo isso.

    Ela levantou-se devagar e caminhou até Sira, ajoelhando-se diante dela.

    — Sira. — Sua voz era suave, mas carregada de emoção.

    — O-Oi… — Sira murmurou, surpresa e um tanto desconfortável com a proximidade.

    — Não podemos substituir seus pais. E nem tentaríamos. Mas… — Pursena pausou, respirando fundo para conter o soluço que ameaçava escapar. — Eu ficaria muito feliz se você aceitasse ficar conosco. Queremos que faça parte da nossa família.

    Sira piscou, surpresa pela sinceridade na voz da mulher. As palavras alcançaram algo dentro dela, algo que ela não queria admitir que existia. Uma necessidade de pertencimento.

    — Eu… — A menina hesitou, sua voz sumindo antes de conseguir formar uma resposta.

    Pursena inclinou-se e a envolveu em um abraço inesperado. Sira arregalou os olhos, sua postura rígida relaxando aos poucos.

    — Bem-vinda, Sira. Sinta-se em casa. — Pursena murmurou, suas lágrimas escorrendo livremente.

    — Obrigada… — sussurrou Sira, desviando o olhar para Markus. Ele a observava com um leve sorriso, seus olhos refletindo alívio e um carinho profundo.

    Mas Sira segurou o choro. Era um hábito antigo, enraizado na necessidade de mostrar força. Durante os cinco anos ao lado do avô, ela sabia que ele queria protegê-la. Ele já havia tentado afastá-la inúmeras vezes, insistindo que ela não precisava compartilhar o fardo de sua vingança. Mas ela recusava, determinada a estar ao lado dele, a lutar contra aqueles que destruíram sua família.

    E agora, aqui estava ela. Em um abraço que parecia acolhedor demais, em uma promessa de segurança que a fazia questionar tudo o que acreditava.

    Mesmo assim, por um instante, permitiu-se acreditar. Talvez, só talvez, pudesse descansar. Ao menos por um tempo.

    Markus sorriu, os olhos refletindo uma tristeza quase imperceptível, e então fixou o olhar em Ivoguin. Seu amigo, com a carranca marcada pela frustração e o desgosto, não parecia disposto a esperar mais. Markus sabia que aquela conversa era inevitável; ele precisava fazer algo, ou Ivoguin simplesmente explodiria ali mesmo.

    Com um gesto sutil, ele indicou para o lado de fora. Sem dizer uma palavra, os dois se afastaram da sala, deixando as mulheres ali, em uma conversa abafada. 

    O vento fresco da noite os recebeu, e o silêncio da casa foi substituído pela brisa suave que acariciava os rostos deles. Ao chegarem a um canto afastado, Ivoguin, sem qualquer aviso, desferiu um soco com toda a força no rosto de Markus. O impacto foi violento, e o som do golpe ressoou no ar, fazendo Markus tombar para trás, caindo de forma desajeitada no chão, o sangue jorrando de seu nariz.

    — Socando fofo? — Markus murmurou, ainda com o rosto contra o solo, tentando limpar o sangue que começava a se espalhar por seu rosto e camisa.

    Ivoguin, os punhos cerrados, olhava para ele com um ódio silencioso que se transformava em desespero.

    — Que merda, cara… Que merda… Por que você não pediu a minha ajuda, porra?! — A voz de Ivoguin estava carregada de uma raiva reprimida, e os olhos, antes fortes e decididos, agora pareciam quebrados.

    Markus, com o olhar já turvo pela dor, ergueu a cabeça e sorriu de forma cansada.

    — Porque com toda certeza você me ajudaria. — A resposta foi simples, mas com um tom de resignação.

    Ivoguin o encarou, os olhos se estreitando em uma mistura de incompreensão e frustração.

    — E?! — Sua voz elevou-se novamente, e um tremor de nervosismo percorreu seu corpo.

    Markus baixou o olhar, sentindo o peso das palavras que não queria pronunciar.

    — Eu não queria te arrastar para aquilo… — Ele murmurou, quase em um suspiro, como se as palavras que saíam de sua boca fossem ainda mais pesadas do que o próprio golpe.

    Ivoguin levou a mão ao rosto, esfregando os olhos, uma mistura de raiva e impotência tomando conta de seu ser. Não conseguia suportar a ideia de não estar ao lado de seu amigo, de não poder protegê-lo como sempre fez. 

    Uma risada forçada escapou de seus lábios, mas logo foi abafada pela dor contida. Ele riu como um homem à beira do abismo, e então, como se o peso de suas próprias emoções fosse grande demais para suportar, deixou uma lágrima escorrer pelo rosto.

    Quando a risada cessou, Ivoguin se sentou no chão, em frente a Markus, também com a postura relaxada, mas agora em um silêncio pesado, apenas interrompido pelo som das folhas ao vento.

    — Foi mal pelo soco… — Ivoguin disse, a voz soando baixa, quase sem energia, como se ele estivesse tentando se desculpar por algo que não podia corrigir.

    — Não foi nada, não se preocupe com isso. — Markus respondeu, com um tom de voz ameno, tentando aliviar a tensão.

    Ivoguin olhou diretamente para seu amigo, os olhos agora mais claros, sem a raiva de antes, mas ainda carregados de preocupações não ditas.

    — Posso te fazer uma pergunta? — Ivoguin perguntou, a voz ainda um pouco trêmula.

    Markus olhou para ele, sem entender completamente o que estava prestes a ser dito, mas, de alguma forma, intuía a direção que a conversa tomaria.

    — Sim. — Respondeu Markus, a mente já se preparando para o que viria.

    — Quanto você sabe dos Pecadores? — Ivoguin questionou, os olhos agora fixos em Markus, como se estivesse à espera de uma revelação.

    A pergunta foi como um golpe no peito de Markus. Ele sabia que não poderia falar abertamente sobre aquilo. O passado, com suas sombras e segredos, jamais deveria ser trazido à tona. 

    Ele franziu a testa e encarou Ivoguin com uma expressão severa, tentando esconder a inquietação que a pergunta lhe causava.

    — Não é para se meter nisso, entendeu? Nunca! Você tem uma família, você sabe disso. — Markus falou com firmeza, sua voz grave, quase uma ordem.

    Ivoguin permaneceu em silêncio por um momento, o peso das palavras de Markus caindo sobre ele como uma pedra. Ele sabia o que estava em jogo, sabia o que Markus queria dizer, mas a curiosidade ainda ardia dentro dele.

    — Eu sei… — disse Ivoguin, com uma expressão melancólica. — Me desculpe… Eu não vou me meter.

    Markus balançou a cabeça, um leve suspiro escapando de seus lábios.

    — Ótimo. Sua esposa e filhos precisam de você, mais do que eu. Eu sou do tipo de cara que sabe se virar sozinho.

    Ivoguin deu uma risada, quebrando a tensão do momento, e comentou com sarcasmo:

    — Acabou de levar um soco no nariz e fica aí se vangloriando. — Ele riu, e Markus, ainda com o sangue escorrendo, não pôde deixar de sorrir, mesmo que de forma contida.

    O silêncio se instalou entre eles por um momento, enquanto Ivoguin se sentava no chão, com sua roupa agora empoeirada e suja, mas ele pouco se importava com isso. Olhou diretamente para Markus, que, agora mais calmo, começou a falar novamente.

    — É uma organização extremamente cuidadosa, Ivoguin. Pode até parecer que eles agem conforme seus próprios desejos, mas não é apenas isso. — Markus falou com a voz mais calma, refletindo sobre o que havia aprendido.

    Ivoguin, atento, se inclinou levemente, como se estivesse absorvendo cada palavra.

    — Como assim? — Ele perguntou, mais curioso agora.

    Markus passou a mão pela testa, o semblante sério, como se lembrasse de momentos distantes, de perigos que ele preferia esquecer.

    — Dentro da organização dos Pecadores, existem aqueles que agem apenas por prazer, pela destruição. Mas há também aqueles com um objetivo claro. Não é apenas um bando de lunáticos, há algo maior em jogo. Nos cinco anos que passei investigando enquanto treinava e ensinava Sira, e mais os outros cinco anos de exploração em busca de respostas, encontrei apenas alguns poucos desses lunáticos. Mas cada encontro me trouxe mais dúvidas do que certezas. — Ele pausou por um instante, como se ponderasse a magnitude do que estava dizendo.

    Ivoguin ficou em silêncio, absorvendo as palavras de Markus.

    — Então você confrontou alguns deles? — Ivoguin perguntou, com um tom sério.

    Markus olhou para ele, como se as lembranças dos encontros o incomodassem, e assentiu.

    — Sim, poucos. No máximo tive uns onze encontros com eles, nesses dez anos. E, mesmo assim, eu não tenho tanta informação. O que sei é… insuficiente.

    Os Pecadores, embora muitos acreditem no contrário, não são uma organização desordenada ou sem estrutura. Ao contrário, são guiados por uma hierarquia implacável, com seus líderes mais poderosos conhecidos como os Conselheiros. 

    Estes homens e mulheres são os pilares da organização, os que comandam as sombras e decidem os destinos daqueles que se atrevem a cruzar seu caminho. 

    Cada Conselheiro é normalmente acompanhado por um vice-conselheiro, alguém designado a tomar seu lugar caso o primeiro caia. Esses vice-conselheiros são como sombras do Conselheiro original, sempre prontos para agir com precisão, tomando o controle da organização de forma a garantir sua continuidade e poder.

    Embora a maior parte da atuação dos Pecadores seja centrada em roubos de relíquias antigas — e segredos de civilizações perdidas —, não se limitam a esse tipo de operação. 

    A organização tem profundas conexões com atividades ilícitas como assassinatos e sequestros, sendo este último um dos seus maiores e mais sombrios feitos. Há alguns anos, um evento horrível abalou o continente: crianças de todas as partes foram desaparecendo sem explicação, tiradas de suas famílias em um golpe sombrio e cruel.

    Só mais tarde, após uma ousada invasão a uma de suas bases secretas, a verdade sobre o destino dessas crianças foi revelada. Descobriu-se que elas estavam sendo usadas em um experimento macabro, destinado a criar uma arma de poder inimaginável. 

    Esses jovens, arrancados de suas vidas e jogados em um pesadelo de sofrimento, eram parte de uma cruel tentativa de forjar algo que poderia mudar o curso da história. Porém, graças aos esforços valentes dos Cavaleiros Sagrados do Reino dos Elfos, ao lado de Richard Ravens, a base foi destruída, e o experimento interrompido. O preço foi alto, mas a vida das crianças foi salva.

    Isso ocorreu há oito anos, e desde então, a presença dos Pecadores em grande escala diminuiu consideravelmente. O ataque a essa base, embora um golpe significativo contra a organização, não foi o fim definitivo dos Pecadores. 

    A sombra deles ainda paira sobre o continente, mas suas operações tornaram-se mais secretas, mais insidiosas. 

    Fora os Conselheiros e seus vice-conselheiros, os outros membros da organização são conhecidos apenas como peões. Não há cargos hierárquicos entre eles. 

    A grande maioria dos peões é composta por almas sombrias, pessoas sedentas por poder, por violência, por dor. Eles são indivíduos que, por seus atos, seriam punidos pelas leis do país, mas encontram uma aceitação dentro dos Pecadores, onde suas inclinações mais nefastas podem ser alimentadas sem medo de represálias. 

    Para muitos desses peões, os Pecadores oferecem um refúgio perfeito, onde a dor é uma moeda e a morte uma ferramenta. São aqueles que buscam poder na forma de tortura, de assassinatos, ou simplesmente do sofrimento alheio.

    Esses peões são, na maioria das vezes, pessoas comuns, mas com corações corrompidos. Muitos deles possuiriam dificuldades para agir fora da proteção da organização, mas, sob o manto da impunidade oferecida pelos Pecadores, eles encontram uma liberdade macabra para viver seus desejos mais sombrios. 

    São os braços executores dos Conselheiros, e é através deles que as ordens mais cruéis são cumpridas.

    — Você conseguiu muita informação, na verdade… — disse Ivoguin, cruzando os braços e inclinando a cabeça, surpreso com o que acabara de ouvir. — Foi bem mais do que já ouvi até mesmo dos Cavaleiros Sagrados de Grão-Vermelho. Nunca imaginei que alguém conseguisse ir tão fundo nas sombras dessa organização.

    Markus permaneceu imóvel por um instante, os olhos fixos no chão, mas seu semblante trazia uma determinação perigosa, como uma lâmina recém-afiada prestes a cortar. Quando falou, sua voz era grave, carregada de um ódio frio que parecia ferver sob controle.

    — Ainda assim, não é o suficiente. Os Pecadores não são apenas um monte de desgraçados sem rumo. Eles possuem líderes… Conselheiros, eles os chamam. Para acabar com essa maldita organização, preciso matá-los. Todos eles. E seus vice-conselheiros também. Não pode haver lacunas, não pode sobrar espaço para ninguém pegar o controle de novo.

    Ivoguin observou o amigo atentamente, vendo a dor oculta nas palavras dele, uma mistura de fúria e pesar. 

    — Eu entendo o que isso significa para você. Sei que está decidido. — Seus olhos endureceram enquanto ele falava, mas sua voz manteve a calma. — Não posso te ajudar nisso. Contudo, há algo que posso fazer por você, Markus. Algo que prometo cumprir, custe o que custar. Vou proteger Sira. Vou cuidar dela como se fosse minha própria filha. Você pode ter certeza disso.

    Por um momento, a máscara rígida de Markus cedeu, e um sorriso breve, mas genuíno, cruzou seu rosto. Era um sorriso cheio de gratidão, um raro vislumbre de esperança em um homem acostumado à escuridão.

    — Tudo bem. — Ele assentiu, o tom mais suave, quase vulnerável. — Estou contando com isso, Ivoguin. Não vou olhar para trás, mas saber que ela está segura me dá força para seguir em frente.

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