Capítulo 78 - O Treino dos Homens-Lagartos
O Reino Grão-Vermelho, posicionado próximo à extremidade do continente, é uma das maiores potências da região. Esse vasto reino construiu sua força alicerçada em um exército de cavaleiros sagrados e na eficiência de organizações internas de ex-mercenários contratados.
Embora aventureiros e homens de exércitos privados de nobres também contribuem em momentos específicos, a coroa não precisa depender exclusivamente deles para resolver seus problemas. A estrutura sólida das forças internas é mais do que suficiente para lidar com a maioria das ameaças.
Ainda assim, para manter o fluxo constante de visitantes de vilarejos e incentivar a movimentação dentro de suas fronteiras, o reino optou por permitir a presença de aventureiros. Excluir completamente a guilda de aventureiros seria um golpe significativo para a economia e a circulação de pessoas, especialmente considerando que muitos aldeões veem na profissão de aventureiro uma oportunidade para mudar suas vidas.
Mas, ao contrário dos outros dois reinos do continente, o Reino Grão-Vermelho segue uma política distinta quanto à relação com as guildas e outras organizações voltadas à caça de monstros, exploração de áreas desconhecidas e trabalhos gerais. Enquanto os demais reinos respeitam a autonomia dessas guildas, mantendo-as distantes da política e da esfera militar, o Reino Grão-Vermelho tomou uma abordagem oposta: absorveu completamente a guilda de aventureiros em sua estrutura de comando.
Sob as leis do Grão-Vermelho, a coroa tem autoridade para requisitar o apoio dos aventureiros em situações de crise, como guerras ou ataques massivos de monstros. Essa integração forçada deu ao reino uma vantagem estratégica esmagadora sobre seus vizinhos, consolidando sua posição como uma das maiores potências do continente. Além disso, as organizações militares do reino, exceto pelos cavaleiros sagrados, operam de maneira muito mais ativa e proativa.
Os cavaleiros sagrados, por sua vez, têm um papel específico: proteger o reino e seus habitantes. Sua vida, no entanto, é bastante segura e previsível. Eles patrulham diariamente, recebem um salário fixo e são treinados apenas no básico para manter a ordem. Diferentemente dos soldados que vivem na linha de frente, a maioria dos cavaleiros sagrados carece de experiência em situações de vida ou morte. Por viverem confortavelmente dentro das muralhas do reino, muitos nunca enfrentaram desafios reais, o que coloca em questão a eficiência prática dessa elite protegida.
As duas maiores organizações sob o domínio do Reino Grão-Vermelho desempenham papéis cruciais na manutenção de sua força: a Guilda de Aventureiros e uma organização interna conhecida como Ponto Escuro. Enquanto a guilda opera de forma mais visível, a Ponto Escuro age nas sombras, composta por antigos mercenários cujas missões raramente chegam ao conhecimento público. Ambas, no entanto, compartilham uma característica em comum: suas operações semanais frequentemente resultam em baixas consideráveis.
Essa alta taxa de mortalidade contribui para um contingente menor de membros em comparação a outras forças do reino. Ainda assim, a qualidade compensa a quantidade.
Os sobreviventes dessas organizações são extremamente habilidosos, resultado de uma experiência acumulada em missões de altíssimo risco, onde a morte é uma possibilidade constante. No final, tanto a Guilda de Aventureiros quanto a Ponto Escuro emergem como forças formidáveis, compostas por indivíduos que aprenderam a sobreviver em meio à adversidade.
Mesmo ao piscar os olhos várias vezes, Bruce ainda lutava para acreditar na visão grandiosa que se estendia diante dele. Os outros homens-lagartos, igualmente impressionados, mal conseguiam conter os murmúrios de admiração enquanto caminhavam pelo lugar. O reino dos humanos, finalmente alcançado após tantos dias de viagem, era imenso e deslumbrante.
O contraste com as florestas densas e os pântanos de onde vinham era gritante. Ali, quase não havia árvores — algo que Bruce notou com um misto de estranheza e curiosidade. Em vez disso, uma infinidade de construções erguiam-se em linhas ordenadas, com telhados vermelhos e paredes brancas refletindo a luz do sol.
O céu acima parecia mais vasto, livre de folhas que bloqueassem a visão. Era como se tudo no reino humano fosse projetado para exibir sua grandiosidade, mesmo nas coisas mais simples.
As ruas, feitas de pedras brancas perfeitamente encaixadas, brilhavam sob a luz do dia. Carruagens e carroças cruzavam o caminho central, enquanto pedestres, vestidos com roupas finas, caminhavam pelas calçadas que ladeavam a estrada.
O cheiro de pão fresco e carne assada misturava-se ao aroma de flores que decoravam algumas janelas, criando uma atmosfera quase irreal para os visitantes reptilianos.
A comitiva da Ponto Escuro marchava em formação ordenada, atraindo inevitavelmente os olhares dos moradores. Alguns humanos observavam com fascínio, os olhos brilhando de curiosidade; outros, no entanto, recuavam, temerosos, agarrando crianças pequenas ou afastando-se da calçada.
Havia ainda aqueles cujas expressões eram tingidas de desdém, como se a simples presença dos homens-lagartos fosse uma afronta ao que consideravam “civilização”.
Bruce tentava ignorar esses olhares, mas sentia a tensão no ar, quase palpável. Eles nos veem como monstros, pensou. Porém, não tinha tempo para desviar sua atenção. Precisavam alcançar a base da guilda antes que o sol começasse a baixar.
Após algum tempo de marcha, atravessaram um portão maciço, protegido por sentinelas que ostentavam as insígnias da Ponto Escuro. Os guardas os saudaram com um aceno rápido antes de liberar a passagem. Além do portão, a atmosfera mudou. O pátio da base era tão vasto quanto as ruas lá fora, mas transmitia um ar de propósito.
Bruce observou os arredores com atenção. Havia espaços designados para treinamento, tanto ao ar livre quanto em áreas cobertas. No canto do pátio, viu arqueiros humanos ajustando suas posturas enquanto disparavam flechas contra alvos distantes.
Guerreiros com armaduras leves trocavam golpes de madeira em duelos rápidos, enquanto outros testavam a resistência de escudos em uma simulação de combate. Era um lugar feito para a guerra, onde cada movimento parecia ensaiado e eficiente.
Ao caminhar em direção aos aposentos designados, Bruce não pôde deixar de sentir um peso crescente sobre seus ombros. O número de pessoas naquele lugar era impressionante. Estimou, em pensamento, que os soldados humanos presentes na base superavam em muito a quantidade de guerreiros de sua própria raça. A disparidade era inegável e esmagadora.
Preciso ficar mais forte, decidiu, com uma determinação ardendo em seus olhos reptilianos. Ele sabia que não havia espaço para fraquezas ali. Enquanto seus companheiros iam se acomodando, Bruce mentalizou sua próxima meta: não apenas sobreviver naquele mundo estranho, mas prosperar.
Ele olhou uma última vez para o pátio, onde os sons de espadas colidindo ecoavam ao vento. Para Bruce, aquela era mais do que uma base — era um campo de prova, um lugar que o testaria em cada passo dado. E ele estava disposto a encarar tudo, com garras e escamas, se fosse necessário.
⧫⧫⧫
A rotina começava a pesar sobre Bruce. Três semanas haviam se passado desde sua chegada ao reino dos humanos, e a base da Ponto Escuro permanecia como o único lugar que ele conhecia.
As muralhas altas, feitas de pedra cinzenta, pareciam mais uma jaula do que um refúgio. Bruce sabia que os humanos queriam mantê-los confinados, e Douglas, o líder que os havia trazido até ali, deixara claro: nenhum dos homens-lagartos tinha permissão para sair da base ou participar de missões designadas aos mercenários.
Essa restrição não era apenas para ele, mas para todos os seus companheiros. A justificativa era a mesma — precisavam ser “educados” antes de interagir com o restante do reino. Era uma desculpa, pensava Bruce, para mantê-los sob controle.
Os dias seguiam um ritmo monótono e calculado, começando ao amanhecer. O cheiro de pão quente e mingau os guiava ao refeitório, onde sentavam-se lado a lado em longas mesas de madeira. O café da manhã era simples, mas farto, ainda que os homens-lagartos sentissem falta de sabores mais naturais e menos temperados.
Após a refeição, eram conduzidos a uma sala ampla com fileiras de cadeiras de madeira dispostas com precisão militar. Para Bruce, aquilo era uma armadilha desconfortável. “Academia” ou “escola”, como os humanos chamavam, tornou-se parte de sua nova realidade.
Na frente da sala, uma humana fêmea — a professora — os instruía com voz firme, mas não hostil. Ela ensinava sobre as leis humanas, as regras do reino, e conceitos gerais que pareciam ser fundamentais para sobreviver naquele mundo.
O início foi árduo. Os homens-lagartos, acostumados a aprender pela prática e pela experiência direta, sentiram-se frustrados com as palavras complicadas e os longos discursos.
No entanto, aos poucos, começaram a se interessar. Bruce percebeu que as lições eram valiosas, trazendo uma perspectiva que antes ele não tinha — a complexidade dos humanos não estava apenas em suas construções ou armas, mas também em suas ideias e organização. Apesar disso, ele não podia evitar pensar em como preferiria gastar aquele tempo treinando ou aprimorando sua manipulação de gama.
A tarde, no entanto, trazia um alívio. Depois do almoço, eram levados ao pátio de treino, um espaço amplo com céu aberto. Ali, recebiam instruções práticas de combate, tanto contra humanos quanto contra feras mágicas. Bruce percebeu que os humanos eram mestres na arte da conquista.
Suas batalhas contra criaturas de todos os cantos do continente lhes deram um conhecimento vasto, que agora compartilhavam com os homens-lagartos.
No meio do treinamento, armaduras foram trazidas para eles. Cada peça tinha o emblema da Ponto Escuro gravado, e os humanos as apresentaram como um símbolo de integração ao grupo. No entanto, a recepção foi dividida.
Alguns homens-lagartos se recusaram a usá-las, argumentando que o peso das armaduras limitava sua agilidade. Outros, intrigados pela oportunidade de adaptar seu estilo de combate, começaram a experimentar o equipamento.
Bruce foi firme em sua decisão. Ele recusou a armadura sem hesitar. Para ele, as armaduras eram como prisões para o corpo, restringindo a liberdade de movimento que tanto valorizava.
O que ele buscava não era a força bruta ou a defesa robusta — era velocidade. Ele queria ser mais rápido, mais ágil, capaz de desviar e atacar antes mesmo que seu oponente percebesse.
A rotina dos homens-lagartos era rigorosa, mas Bruce tinha um motivo especial para aguardar o cair da noite. Era quando a aula de Manipulação de Gama acontecia. A princípio, o treinamento fora frustrante, quase entediante.
Durante toda a primeira semana, os instrutores humanos apenas explicaram os fundamentos teóricos dessa energia misteriosa. Para Bruce, essas lições iniciais eram como revisitar um livro já lido – especificamente, o que Douglas lhe entregara antes de sua chegada à base.
Ainda assim, ele encontrou valor ali, pois pôde sanar dúvidas e compreender melhor os termos e conceitos que antes pareciam nebulosos.
A terceira semana trouxe uma virada. Finalmente, a prática começou. No início, a tarefa parecia enganosamente simples: sentar-se no chão e tentar sentir a Gama dentro do próprio corpo. Mas o esforço necessário para acessar essa energia era imenso.
Muitos homens-lagartos descobriam que seus próprios corpos haviam se habituado a ignorar essa força. Era como se tivessem selado a Gama instintivamente.
Bruce, no entanto, destacou-se. No terceiro dia, ele finalmente conseguiu tocar a energia em seu interior, sentindo-a como um rio escondido fluindo sob uma camada de pedra. Foi o décimo terceiro a alcançar esse marco, algo que ele considerou um progresso decente, embora estivesse determinado a ser mais rápido. Shayax, por sua vez, demorou um pouco mais, sendo o vigésimo primeiro a conseguir.
Quase ao final daquela semana, durante uma tarde ensolarada no pátio de treino, a instrutora humana aproximou-se do grupo. Sua postura era firme, a presença dela transmitia autoridade sem esforço.
— A partir de amanhã — disse ela, com a voz clara que ressoava mesmo entre os ruídos distantes das espadas em treino —, vocês começarão a aprender a primeira técnica de nível básico: o Fluxo. Será essencial para qualquer batalha que enfrentarem no futuro. Por isso, descansem bem hoje. Amanhã, o dia inteiro será dedicado a dominar essa técnica.
Bruce sentiu um sorriso escapar de seus lábios. Era exatamente o que ele esperava ouvir. O Fluxo era mencionado vagamente no livro que Douglas lhe dera, mas nenhuma explicação parecia suficiente para ativá-lo. Ele já havia tentado várias vezes, frustrando-se ao fracassar todas.
Aqueles fracassos, ele percebeu, eram inevitáveis. A prática e o conhecimento que adquirira nas semanas anteriores haviam lançado luz sobre um fato crucial: certas técnicas exigem uma base sólida antes que possam ser utilizadas com eficácia.
O Fluxo, por exemplo, não era apenas sobre acessar a Gama, mas sobre entender como administrá-la.
No âmago do Fluxo, o indivíduo altera o funcionamento de seu corpo ao manipular a Gama para ganhar força e velocidade descomunais. Contudo, a técnica exige um controle preciso e meticuloso. Qualquer erro na administração da energia poderia levar à chamada sobrecarga, uma falha devastadora onde o corpo simplesmente se destrói sob a pressão excessiva.
Para Bruce, era difícil acreditar que algo tão complexo pudesse ser considerado uma técnica básica. Mas ao ouvir a explicação da instrutora sobre o treinamento humano, as peças começaram a se encaixar.
Os humanos iniciavam suas crianças em academias desde cedo. Ali, eram ensinadas a compreender a Gama e outras técnicas fundamentais. O Fluxo, ao que parecia, era a culminação de várias dessas lições básicas. Uma criança humana, ao atingir 14 anos, enfrentava um teste final na academia, onde demonstrava seu domínio das habilidades ensinadas.
O uso do Fluxo era a prova definitiva de que estavam prontos para seguir como guerreiros.
Bruce não pôde evitar comparar isso com o próprio aprendizado. Para os humanos, o Fluxo era quase um rito de passagem. Para ele e seus companheiros, era uma montanha a escalar, uma tarefa imensa, mas necessária.
No entanto, quanto mais Bruce aprendia sobre o Fluxo, mais entendia porque os humanos o consideravam uma técnica básica.
Os humanos eram frágeis. Tão frágeis que, sem o auxílio de técnicas específicas, seriam incapazes de superar até mesmo um lobo ou um javali selvagem. Era quase absurdo imaginar uma raça inteira que dependia de um único princípio para não ser varrida da existência.
Contudo, essa vulnerabilidade foi o motivo pelo qual o Fluxo se tornou uma técnica essencial e profundamente enraizada na cultura humana.
Bruce refletia sobre isso enquanto observava os companheiros humanos treinarem. Para eles, o Fluxo não era apenas uma habilidade; era uma necessidade intrínseca, o pilar que sustentava sua sobrevivência em um mundo hostil.
Desde o momento em que uma criança humana ingressava na academia aos cinco anos de idade, sua formação era voltada para superar as limitações naturais de sua espécie. O objetivo? Prepará-la para enfrentar adversários que, em força ou velocidade, ultrapassavam os limites de suas capacidades inatas.
Aos quatorze, quando completavam sua formação, o Fluxo já não era apenas uma técnica, mas parte de sua identidade como guerreiros.
Essa percepção era um tanto desconcertante para Bruce, que sempre julgara as diferenças entre raças sob outra perspectiva. Ele tinha lido em um dos livros de Douglas sobre o período de aprendizado humano.
Ao longo de quase uma década de treino meticuloso, os jovens dominavam a Gama e, com ela, o Fluxo. A repetição constante e a adaptação ao longo dos anos faziam dessa habilidade algo relativamente simples para eles.
Eles têm que ser dependentes disso, pensava Bruce. Não é uma questão de escolha. É adaptação ou extinção.
Embora o Fluxo fosse considerado uma técnica “básica” pelos humanos, a realidade era muito mais complexa para outra raça. Para os homens-lagartos, que sequer tinham consciência da existência da Gama até pouco tempo atrás, aprender a manipular essa energia representava um desafio imenso.
Os corpos dos homens-lagartos eram como um solo árido e esquecido, incapaz de acolher a semente do Fluxo sem antes ser trabalhado com grande esforço.
Nas semanas que se seguiram, Bruce e os demais homens-lagartos enfrentaram uma curva de aprendizado brutal. A diferença era gritante; onde as crianças humanas começavam cedo e progrediam gradualmente, os homens-lagartos foram jogados de cabeça em um oceano desconhecido.
Bruce foi um dos primeiros entre sua raça a dominar o Fluxo, alcançando esse marco em vinte dias. Ele recordava o olhar de Shayax, seu amigo e companheiro de batalha, que demorou vinte e oito dias para atingir o mesmo objetivo.
Foi uma diferença pequena, pensou Bruce, mas ele sabia que cada dia extra era uma barreira mental tão pesada quanto física.
Os demais homens-lagartos levaram ainda mais tempo, alguns demorando mais de um mês para alcançar o controle pleno do Fluxo. Quando, ao fim de 42 dias, todos haviam dominado a técnica, o alívio foi imenso. Contudo, isso também trouxe uma nova compreensão para Bruce.
Por isso Douglas os treinou sem Fluxo naquela época, ele ponderava. Os humanos se tornaram tão dependentes dessa técnica que esqueceram como lutar sem ela. Mas também… quem pode culpá-los? Sem o Fluxo, não teriam sobrevivido por tanto tempo neste mundo.
Enquanto seus pulmões arfavam pelo esforço contínuo, Bruce não podia deixar de admirar a resiliência dos humanos. Eram fracos, sim, mas sua fraqueza os havia levado a criar ferramentas extraordinárias para compensá-la.
Ainda assim, a sensação de progresso enchia seu peito de orgulho. Os homens-lagartos haviam cruzado uma fronteira que antes parecia intransponível. O Fluxo, que antes era um mistério reservado aos humanos, agora fazia parte de seu arsenal.
E, para Bruce, isso era apenas o começo.

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