Capítulo 8 – Sombra
Um edifício sombrio e robusto, guardado por dois elfos negros de porte intimidador, se erguia nas profundezas de Infra. Os homens postados à entrada tinham expressões duras, o tipo que fazia qualquer um pensar duas vezes antes de se aproximar.
Suas roupas eram práticas — leves, resistentes e perfeitas para movimentos rápidos. Cada um trazia uma espada curta embainhada ao lado, claramente prontos para qualquer problema. Não usavam armaduras pesadas; em Infra, mobilidade e rapidez valiam mais do que blindagem.
A porta que protegiam com tamanha atenção se abriu com um rangido discreto. Um outro elfo negro surgiu no batente, diferente deles. Este estava impecavelmente vestido, com trajes elegantes que destoavam do ambiente brutal ao redor.
Sua postura era séria, e seus olhos fixaram nos dois homens com um olhar frio e calculista. Quando falou, sua voz grossa cortou o ar, carregada de autoridade.
— O carregamento sai hoje à noite. Fiquem atentos durante o transporte, principalmente ao cruzar os limites de Infra. Não quero problemas dessa vez.
Os dois assentiram, atentos. A tensão na voz do homem não era algo que podiam ignorar. Ele continuou, direto:
— Vamos usar a rota número três. Não se afastem muito do trajeto, e pelo amor de qualquer coisa que vocês respeitem, fiquem longe demais de Abelium. Prestem atenção nas marcações. Entenderam?
Um dos guardas, mais confiante que o necessário, deixou escapar um sorriso de desdém.
— Relaxa, chefe. Não vai dar merda igual da última vez.
O homem elegante inclinou levemente a cabeça, os olhos estreitos cravando-se no guarda.
— Ah, a última vez.
Havia algo no tom dele, um fio de ameaça velada, que fez o sorriso do guarda murchar ligeiramente. Se ele quisesse continuar com a audácia, era melhor pensar duas vezes.
O chefe daqueles dois guardas, Dante Pyssaliar, se perdeu brevemente em seus pensamentos, sua voz saindo em um murmúrio quase inaudível. Era difícil esquecer a última vez que uma de suas caravanas foi interceptada no caminho.
Ele ainda podia sentir o gosto amargo da perda, o desgosto pelo fracasso. A imagem da criatura que surgiu nas florestas de Abelium para devorar homens e mercadorias permanecia vívida em sua mente. Um desastre caro.
E caro, para ele, significava mais do que o ouro perdido. Dante lidava com tráfego de elfos.
Do lado de fora do território dos elfos, havia sempre um mercado sombrio pulsando, sustentado pelo apetite dos humanos por seres de outras raças. Elfos e elfos negros eram mercadorias valiosas, procurados por razões tão variadas quanto sórdidas. Fetiches exóticos. Caprichos estéticos.
Desejos por servos que simbolizassem status. Mesmo que a escravidão fosse proibida por lei — tanto de humanos quanto de elfos — isso nunca significou que não acontecesse.
Entre humanos, a punição por escravizar elfos ou elfos negros era, na melhor das hipóteses, uma formalidade. Enquanto a escravização de humanos podia levar a sentenças severas, os elfos eram vistos como inferiores, uma raça de segundo plano.
Para os que eram pegos, o castigo nunca era proporcional ao crime. Era uma realidade cruel, mas a conveniência e o preconceito eram ferramentas poderosas.
Isso também significava que, para aqueles dispostos a arriscar, havia muito dinheiro a ser feito. A dificuldade estava na logística. Nem humanos podiam entrar nos reinos élficos sem permissão, nem os elfos podiam sair de lá sem autorização.
Qualquer violação aberta dessas regras poderia inflamar tensões diplomáticas. Os reinos humanos não estavam dispostos a arriscar um conflito com os elfos — ou ao menos era isso que declaravam oficialmente.
Foi nessa lacuna que homens como Dante prosperaram. Ele e outros elfos negros, há muito desiludidos com qualquer conceito de solidariedade racial, encontraram uma maneira de lucrar com o apetite insaciável dos humanos.
Dante sequestrava elfos negros, homens e mulheres, transportando-os cuidadosamente para as bordas do território élfico, onde eram vendidos a intermediários humanos por preços exorbitantes. Era um esquema meticulosamente planejado.
Os humanos conseguiam o que queriam sem infringir os tratados territoriais. Dante enchia seus bolsos de ouro enquanto entregava mercadorias valiosas que, para ele, eram apenas números e contratos. A lei? Apenas uma ilusão para quem não sabia como dobrá-la.
Dante atravessou o corredor estreito de seu edifício, cada passo ressoando nas tábuas gastas pelo tempo. Como a maioria das construções em Infra, o lugar era um mosaico de sujeira e decadência. Nenhuma limpeza durava mais que algumas horas, e a escuridão parecia ter feito morada ali, interrompida apenas pelas chamas tremeluzentes de velas espalhadas ao acaso.
Ele torceu o nariz ao passar por uma pilha de restos deixados no canto — uma visão tão comum que mal valia o esforço de reagir.
Ao chegar ao escritório, um espaço apertado e desorganizado, encontrou um de seus homens parado ao lado da escrivaninha, como esperado. O subordinado, sem precisar de instruções, começou a arrastar o móvel, o som do atrito entre a madeira e o chão ecoando como um grito abafado.
Quando a mesa foi encostada na parede, revelou-se um alçapão trancado com cadeado. Dante pegou a chave de seu bolso e abriu o acesso com um movimento preciso. O pesado alçapão rangeu enquanto era erguido, e uma escadaria sinuosa feita de pedra suja surgiu diante dele, mergulhando na escuridão.
Ele esticou a mão para pegar uma lâmpada a óleo que repousava sobre uma tigela de metal próxima. Acendeu o pavio e começou a descida. Cada degrau parecia ecoar a história de anos de segredos e crueldades, o ar ficando mais úmido e denso conforme ele avançava.
No final, um corredor estreito o aguardava, as paredes adornadas com manchas escuras e irregulares — sangue seco, memória de mercadorias rebeldes que tentaram lutar por suas vidas. Dante observou os respingos com um olhar irritado, mais incomodado pela falta de ordem do que pelo ato em si. Ele sabia que era inútil tentar manter aquele espaço limpo; os próximos desobedientes logo se encarregariam de sujá-lo novamente.
— De dez trazidos, ao menos dois sempre lutam — ele murmurou para si mesmo enquanto caminhava. Já era parte do processo. Uma surra controlada — o suficiente para quebrar o espírito sem estragar o corpo. Um equilíbrio necessário, afinal, mercadorias muito danificadas perdiam valor.
Finalmente, ele chegou a uma porta de madeira reforçada com placas de ferro. Dante puxou outra chave de seu bolso e destrancou o cadeado com a mesma eficiência fria de antes.
A porta se abriu com um rangido pesado, revelando uma sala ampla dividida em celas de ferro. Atrás das grades, elfos negros amontoavam-se, os rostos vazios de esperança. Alguns choravam baixinho, outros apenas encaravam o chão com olhos que haviam perdido qualquer brilho.
Dante deu um passo à frente, observando sua “coleção” com um misto de apatia e avaliação profissional.
Dante caminhava pelo corredor, o peso de sua presença pairando sobre os ocupantes das celas. Seu rosto exibia a mesma expressão impenetrável de sempre, uma máscara de indiferença.
Atrás das grades, os elfos negros o encaravam — alguns com medo, outros com uma tristeza profunda. Havia ainda aqueles que pareciam implorar em silêncio, os olhos suplicantes clamando por uma piedade que ele não possuía.
Ele apenas continuava andando, alheio a qualquer emoção que pudesse emergir dali. E, de fato, era.
Para Dante, eles não eram mais que mercadoria. Homens, mulheres e crianças.
Os mais velhos, contudo, não tinham utilidade; eram má vendagem e não valiam o esforço de serem capturados. As celas estavam repletas de jovens em sua maioria, elfos negros trajando as mesmas roupas rasgadas e imundas que vestiam quando foram trazidos para ali.
O cheiro do lugar era nauseante. Sem instalações para higiene, os prisioneiros faziam suas necessidades ali mesmo, nos cantos das celas, onde também dormiam e comiam. O fedor de urina, fezes e desespero impregnava o ar, mas ninguém parecia notar — ou, como Dante, havia aprendido a ignorar.
Adiante, sua atenção foi capturada por uma cena que até mesmo naquele ambiente se destacava pela brutalidade. Um elfo negro de cabelos curtos e grisalhos estava de pé ao lado de uma maca ensanguentada. Usava um pano enrolado no rosto, provavelmente tentando atenuar o cheiro do lugar e proteger-se de respingos de sangue.
À sua frente, uma criança elfo negro estava deitada na maca, completamente imobilizada. Correias de couro prendiam seus braços, pernas e até o pescoço, impedindo qualquer movimento. Um pano enfiado à força na boca abafava seus gritos de agonia.
O homem grisalho segurava um bisturi em cada mão, ambos manchados de vermelho. Ao ouvir os passos de Dante, ele se virou, sua expressão calma, como se estivesse realizando uma tarefa qualquer.
O chão ao redor estava encharcado de sangue, e a mesa onde o menino repousava era um espetáculo grotesco de carne, sangue e aço. Dante parou a poucos passos, seu olhar frio analisando a cena. Foi então que ele notou o que faltava — o braço esquerdo do garoto havia sido amputado.
O cheiro de sangue fresco misturava-se ao fedor habitual do lugar, criando uma atmosfera sufocante. Dante inalou profundamente, o rosto inalterado. Para ele, aquilo era apenas mais um detalhe em um negócio que não deixava espaço para moralidades.
— Hick, não está exagerando com a bagunça no chão? — Dante quebrou o silêncio, sua voz tranquila e casual, enquanto encostava na parede próxima.
Hick, ainda focado em sua “obra”, não se deu ao trabalho de olhar para o chefe. Um sorriso torto surgiu sob o pano que cobria parte de seu rosto.
— Ah, você sabe como é esse tipo de serviço, meu caro. Nunca dá pra manter tudo limpo. — Ele respondeu com leveza, movendo o bisturi dentro do que restava do ombro do garoto.
O menino na maca soltou um som abafado de dor, o corpo inteiro se contorcendo contra as correias. Lágrimas rolavam pelo rosto sujo enquanto ele tremia, impotente. Hick, por sua vez, parecia alheio ao sofrimento, examinando a carne exposta com precisão metódica.
Dante observou por um momento, os olhos percorrendo a cena sem qualquer traço de emoção. Então, arqueou uma sobrancelha.
— E isso aí realmente vai render alguma coisa? — Ele perguntou, quase em tom de tédio. — Os últimos dois que você matou fazendo essas suas… pesquisas… iam nos render uma boa grana. E mesmo assim, eu cedi eles pra você porque disse que era um investimento a longo prazo. Então? Cadê o retorno?
Hick finalmente parou, girando o bisturi na mão como se estivesse saboreando a pergunta. Sem pressa, ele ergueu os olhos para Dante.
— Paciência, meu amigo. Ciência não é uma linha de produção. — Ele fez uma pausa, voltando sua atenção ao menino e mexendo novamente na ferida, arrancando outro gemido de dor abafado. — Mas quando der certo… ah, você verá. O retorno será monstruoso.
— Monstruoso, é? — Dante repetiu, a incredulidade evidente em seu tom enquanto cruzava os braços.
Hick inclinou a cabeça, o brilho maníaco em seus olhos não diminuindo nem um pouco.
— O corpo… não, a obra de arte que é o corpo das criaturas vivas. Elfos, elfos negros, humanos, homens-lagarto… Biologicamente falando, cada um de nós possui características únicas e fascinantes. Humanos, por exemplo, têm essa maldita facilidade de procriar. Já os elfos e elfos negros, ah, os sentidos aguçados deles são coisa de outro mundo! E os homens-lagarto? Aquela regeneração absurda. Lembro bem de ter visto um deles regenerar um braço inteiro, Dante. Inteiro. Foi arrancado e… pronto, lá estava ele de volta em poucos dias.
— Certo, certo. Corta o papo de cientista maluco. Vai direto ao ponto. — Dante revirou os olhos, impaciente. — Você já falou antes o que queria com isso, mas acha mesmo que essa sua ideia maluca de… combinação é possível?
Hick deu um passo à frente, o entusiasmo vibrando em cada palavra.
— Mas é claro! Imagine só, Dante. Um mundo onde nós, elfos negros, pudéssemos ter a regeneração dos homens-lagarto. Hein? Ou, quem sabe, a capacidade reprodutiva dos humanos! É uma pena que raças diferentes não possam ter filhos entre si… Mas, com a ciência, podemos superar essas barreiras. Podemos juntar o melhor de cada raça! Não seria magnífico?
Dante estreitou os olhos, ponderando.
— Er… hm… Acho que sim? Não sei onde você quer chegar com isso, mas se isso der dinheiro, não vou me importar.
Hick riu, agitando o bisturi manchado de sangue no ar como se fosse uma varinha mágica.
— Pode ficar tranquilo. Quando as pesquisas derem resultado, imagina o mercado! Elfos das grandes cidades comprando remédios para engravidar com mais facilidade. Ou melhor, a Ordem dos Cavaleiros Sagrados do reino… Você acha que eles não pagariam fortunas para dar a seus soldados a regeneração dos homens-lagarto? Vamos ficar ricos, Dante. Ricos.
Apesar de achar Hick um lunático, Dante não podia negar que as ideias do homem tinham lógica. E mais do que isso, eram exatamente o tipo de pensamento fora da curva que ele precisava para se mover neste mundo de merda. Infra já tinha um “dono”.
Salazar, o intocável. O homem que todos temiam e respeitavam. Se Dante quisesse desafiar esse reinado e tomar a cidade para si, precisaria de algo à altura.
E, talvez, só talvez, as ideias malucas de Hick fossem o que ele precisava para escalar até o topo. Dominando Infra, Dante sabia que poderia ir além, talvez até expandir sua influência pelas cidades do reino dos elfos.
Esses pensamentos o mantinham animado, mesmo enquanto escutava os devaneios de Hick. Afinal, às vezes, os maiores saltos no poder começavam com um plano maluco e um toque de ambição.
Um som de passos apressados e pesados ecoou do corredor, cortando o silêncio abafado da sala. A porta se abriu com um estrondo, revelando um dos homens de Dante, um elfo negro que entrou ofegante, o peito subindo e descendo enquanto sugava enormes goladas de ar.
Com a mesma urgência com que entrou, ele bateu a porta atrás de si, fechando-a com tanta força que o ruído fez os elfos negros nas celas se encolherem de medo. Algo estava terrivelmente errado.
Ele segurava a espada com as duas mãos, os dedos quase cravados no cabo, como se a própria vida dependesse disso. Seu olhar frenético varreu a sala antes de pousar em Dante, que o encarava com os olhos semicerrados, a irritação evidente.
— Que porra é essa? — Dante rosnou, sua voz cortante como uma lâmina.
Interrupções como essa não eram apenas inconvenientes — eram inaceitáveis. Aqui, no santuário silencioso onde Hick realizava suas pesquisas, qualquer distúrbio poderia atrapalhar o trabalho delicado com bisturis e sangue.
— U-uma sombra! — gaguejou o elfo, a voz trêmula e falhada como se ele lutasse para formar as palavras.
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