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    Tiko ajeitou a postura sob a sombra acolhedora da antiga árvore de carvalho. O local era um refúgio improvável, escolhido depois de muito observar e evitar os olhares curiosos das garotas da biblioteca. 

    Sempre que ele entrava para buscar livros, podia ouvir os sussurros. Os cochichos sobre sua máscara e especulações sobre seu rosto incomodavam mais do que ele gostaria de admitir.

    Foi por isso que, com uma voz firme, mas calculadamente gentil, ele pediu à recepcionista para levar os livros para fora, prometendo devolvê-los após a leitura. A jovem, com um brilho súbito de entusiasmo nos olhos, concordou imediatamente, quase como se estivesse ansiosa para ajudá-lo.

    Ali, naquele canto sereno à beira do vilarejo de Icca, ele encontrou o que poderia chamar de paz. A sombra da árvore o protegia do calor da tarde, e a vista era algo que ele não esperava encontrar em um lugar tão remoto. 

    Ao longe, a montanha imponente erguia-se como um gigante adormecido, um lembrete constante da grandiosidade do mundo e, talvez, da pequenez de sua própria situação.

    Os meses haviam passado com a monotonia de um relógio quebrado. 

    A cada semana, Kurin surgia, silencioso e distante, entregando algumas moedas antes de desaparecer novamente. Não havia ordens, nem missões, apenas um vácuo que Tiko preenchia com treinos e estudos. Ainda assim, a inquietação o consumia.

    Era uma fera silenciosa, que ele mantinha sob controle apenas por saber que um dia, de alguma forma, teria que agir. Ele havia prometido a si mesmo: mais alguns meses de espera. Depois disso, fugiria, mesmo que significasse arriscar a própria vida. Ele não podia esquecer GolbZedh.

    Enquanto seus pensamentos vagavam, algo incomum chamou sua atenção. Um pequeno destacamento de cavaleiros sagrados adentrava o vilarejo. Diferentes dos soldados elfos que ele conhecia, esses homens ostentavam armaduras humanas, reluzentes sob o sol. Moviam-se com propósito, distribuindo panfletos entre os moradores.

    Tiko observou de longe, os olhos semicerrados sob a máscara. A reação dos aldeões não passou despercebida. Alguns pareciam confusos, enquanto outros, com expressões de choque, seguravam os papéis com mãos trêmulas. Algo estava errado.

    Fechando o livro que tinha em mãos, Tiko respirou fundo e se levantou. Ele ajeitou o capuz, escondendo ainda mais seu rosto, e caminhou de volta à biblioteca. 

    Entregou os volumes à recepcionista com um aceno breve e saiu em direção ao centro do vilarejo, atraído pela curiosidade e pela sensação crescente de que algo importante estava para acontecer.

    — Senhor, desculpe, o que está acontecendo? — A voz de Tiko era controlada, mas carregava um toque de tensão. Ele se aproximara de um dos cavaleiros sagrados com passos medidos, os olhos atentos à movimentação ao seu redor.

    Os cavaleiros sagrados, diferentemente de outras autoridades do reino dos elfos, não pareciam se importar com sua máscara. No reino humano, aventureiros mascarados eram uma visão comum, algo que trazia um raro alívio para Tiko, mesmo sendo um homem com preço pela cabeça.

    O cavaleiro, com armadura impecável em tons de vermelho e branco que cintilava sob o sol, voltou-se para ele. 

    — Ah, tome. É uma notícia urgente que está sendo espalhada por todo o continente. — A voz do homem era firme, mas carregava um tom de cansaço.

    Tiko aceitou o panfleto e agradeceu com um leve aceno antes de se afastar. Sentiu o peso das palavras antes mesmo de lê-las. Seus olhos deslizaram rapidamente pelas primeiras linhas, e o impacto veio como um golpe seco em seu peito.

    Isso… caramba…

    Ele inspirou profundamente, tentando processar o que lia. A notícia que ele já esperava havia meses finalmente se espalhava como fogo por campos secos: Richard Ravens, o primeiro e único Paladino do Reino dos Elfos, fora assassinado.

    O coração de Tiko bateu mais rápido. Finalmente, todos sabiam. Mas o alívio que ele poderia sentir logo foi esmagado por uma onda de raiva e incredulidade. Seus olhos voltaram às palavras no panfleto, lendo e relendo o trecho que o fazia ferver por dentro.

    “Os culpados pelo assassinato de Richard Ravens são Tiko, o Fugitivo, e GolbZedh.”

    Não… isso não está certo! 

    GolbZedh. O velho elfo que nada tinha a ver com batalhas ou estratégias. Apenas um homem marcado pelos anos e pela sabedoria, alguém que o acompanhara por acaso no fatídico evento. Por que ele também havia sido acusado? Era óbvio que GolbZedh seria um alvo conveniente, um bode expiatório para inflar a gravidade do crime.

    A mente de Tiko girava, buscando explicações. Talvez alguém o tivesse delatado. Jack… só podia ter sido ele. Se Jack havia falado, Tiko estava condenado. Ainda assim, a presença de GolbZedh na lista de culpados parecia uma crueldade injustificada.

    Ele continuou a leitura, mas a cada palavra, a ansiedade dentro dele crescia.

    “De agora em diante, GolbZedh, o prisioneiro, e Tiko, o fugitivo, por terem assassinado a sangue frio um honrado cavaleiro sagrado, foram alocados ao nível 10 de criminalidade. Ambos são inimigos de todo o continente.”

    O papel quase escapou de suas mãos. Nível 10. O mais alto grau de criminalidade possível. Não eram apenas procurados por um reino, mas por todos os reinos do continente. Ele sentiu o peso invisível de milhares de olhos caçadores voltados para ele.

    “Inimigos do continente inteiro.”

    Seu corpo enrijeceu, os dedos tremendo enquanto esmagavam o panfleto em um punho cerrado. Ele olhou ao redor. As pessoas no vilarejo continuavam a conversar, algumas com os olhos fixos nos papéis que agora manchavam o chão de suas vidas tranquilas. A tranquilidade que ele nunca mais teria.

    Uma parte do panfleto o fez engolir em seco. O desenho. Havia ali um esboço preciso de seu rosto mascarado e do semblante envelhecido de GolbZedh. Não havia escapatória. Seu rosto — ou o que deixava visível da máscara — agora era uma figura conhecida.

    Sua vida comum, aquela que ele perdera quando seus pais foram assassinados, agora estava tão distante quanto as estrelas no céu.

    Com um gesto brusco, ele amassou o panfleto, jogando-o ao chão. Seus olhos, agora semicerrados e frios, ergueram-se para o horizonte. A sombra da montanha distante parecia ainda mais pesada, como se o destino gravasse em pedra o caminho que ele seria forçado a trilhar.

    Mas uma coisa era certa: Tiko não desistiria. Não agora. Não enquanto GolbZedh ainda respirasse.

    Uma voz cortante surgiu por trás de Tiko, como um sussurro carregado de veneno. “Ficou irritadinho, é?” A frase soou com um tom debochado, familiar, uma marca registrada daquele que o visitava constantemente. 

    Não por amizade, mas por ser o seu carcereiro, seu algoz. Kurin, o homem que raramente se mostrava, preferindo sempre as sombras e o anonimato, se fazia presente novamente.

    Tiko, embora consciente da presença de Kurin, não se deu ao luxo de olhar para trás. Seu corpo estava tenso, como uma fera pronta para atacar, mas seus olhos permaneceram fixos no horizonte, ignorando o homem à sua retaguarda. 

    A raiva queimava dentro dele, mas também havia uma sensação incômoda de impotência. Como sempre, Kurin se divertia com isso.

    — Kurin… o mês ainda não chegou ao fim. O que faz aqui? — Tiko questionou, sua voz carregada de desprezo e impaciência. Não era uma saudação; era uma acusação.

    Kurin estava em trajes civis, como sempre fazia quando se misturava. Sua postura, no entanto, traía a natureza de um homem que carregava o peso de algo grande e sombrio. Ele estava ali com uma intenção, algo muito além do que uma simples visita.

    O sorriso de Kurin se alargou, mostrando uma satisfação que beirava a obsessão. 

    — Em breve começaremos a nossa maior brincadeira após tantos anos…

    A alegria nas palavras dele soava quase maníaca, um brilho perigoso tomando conta dos seus olhos.

    Tiko sentiu o incomodo aumentar, mas manteve a calma. 

    — Brincadeira? Do que está falando?

    — Calma, amigo. — A voz de Kurin era suave, mas havia uma frieza gelada por trás dela. — Não vamos estragar o show antes mesmo de ele começar. Só vim te dar um aviso, pois sei que a tensão está te consumindo. E, claro, você deve estar… ansioso, com tudo o que está prestes a acontecer.

    Kurin avançou um passo.

    — Os preparativos estão quase prontos… — ele continuou, sua voz agora sussurrante, cheia de expectativa. — Em breve, o mundo inteiro esquecerá a morte de Richard Ravens, tudo será ofuscado pelo que estamos prestes a fazer. Mas antes de tudo, há uma última coisa que deve ser feita.

    Tiko virou-se, agora encarando diretamente o homem que se deleitava com a angústia do outro. “Hm?” Ele ergueu uma sobrancelha, cético, mas com uma crescente sensação de que algo terrível estava por vir.

    — Temos que acabar com a concorrência. — O sorriso que se formou em seu rosto era malicioso, maníaco.

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