Índice de Capítulo

    A Ponto Escuro havia cumprido sua missão. A fortaleza da Avat estava tomada, seus membros capturados ou mortos. No entanto, enquanto as chamas do combate ainda tremulavam em brasas e o cheiro de sangue impregnava o ar, muitos membros da facção inimiga fugiram. 

    Alguns, tomados pelo puro instinto de sobrevivência, desapareceram entre as árvores da densa floresta. Outros, no entanto, permaneceram—não por coragem, mas por medo. 

    O Troll Vermelho, a ideia de ser caçado por ele na mata os aterrorizava mais do que a captura pela Ponto Escuro.

    Agora, a companhia marchava de volta ao Reino Grão-Vermelho. Mas o retorno era diferente da ida. O peso da batalha os acompanhava.

    As carruagens estavam lotadas de feridos. Soldados gemiam baixinho, seus corpos enfaixados, suas armaduras amassadas e cobertas de sangue seco. 

    Alguns nunca mais segurariam uma espada, suas pernas amputadas durante a carnificina. Outros, apesar dos ferimentos, ainda poderiam lutar sob o comando de Douglas, desde que recebessem o tempo necessário para se recuperar.

    Douglas observava tudo em silêncio. Seu olhar cansado percorria as fileiras de guerreiros que ainda marchavam. Ele sabia que, se não fosse por Axis, ninguém ali estaria vivo. A guerreira havia chegado no último instante, e sua intervenção mudara o rumo do combate. Se não fosse por ela, até mesmo Bruce teria caído para sempre naquele campo de batalha.

    O lagarto guerreiro ainda dormia. Exausto, ferido, mas vivo.

    Os dias se passaram e, por fim, Bruce despertou.

    Seu corpo pesava como se estivesse feito de pedra. A dor atravessava seus músculos como lâminas invisíveis, mas a primeira coisa que lhe veio à mente não foi a si mesmo—foi Shayax.

    Com um esforço que desafiava o bom senso, ele se ergueu. O mundo girou ao seu redor, e ele quase tombou de volta ao chão, mas ignorou a tontura e os protestos de seus próprios membros. Ele precisava ver Shayax. Precisava ter certeza.

    Os soldados tentaram impedi-lo.

    — Bruce, você precisa descansar! — um deles insistiu, segurando-o pelo ombro.

    Mas Bruce já avançava, desviando-se, tropeçando, empurrando quem tentasse segurá-lo. Seu desespero chamou atenção, e em pouco tempo uma pequena confusão se formou no meio da marcha. 

    Alguns tentavam impedi-lo, outros apenas observavam em silêncio. Não havia mais aqueles olhares de desconfiança que antes o acompanhavam. Eles o haviam visto lutar. Haviam visto seu sacrifício. E isso era suficiente para garantir seu respeito.

    Douglas se aproximou, sua expressão firme, mas sem qualquer traço de hostilidade. Levantou as mãos num gesto apaziguador.

    — Bruce, se acalme.

    — Ah… o que… cadê o… onde está Shayax…? — a voz do lagarto guerreiro saiu trêmula, quase sem fôlego. Seu olhar saltava de um rosto para outro, buscando a resposta antes mesmo que ela fosse dita. Seu corpo ameaçava ceder, mas sua vontade o mantinha de pé.

    Douglas pousou uma mão firme sobre o ombro dele.

    — Ele está vivo, Bruce. Está bem. — disse, sua voz carregada de cansaço, mas também de alívio. — Está descansando em uma das carruagens. Você deveria estar fazendo o mesmo.

    As palavras eram simples, mas carregavam um peso enorme. O corpo de Bruce, que até então se movia apenas pela força da preocupação, relaxou ligeiramente. Shayax estava vivo.

    Só então a dor o alcançou de verdade. Seus músculos queimavam, sua visão tremia, e por um instante ele sentiu que cairia ali mesmo. Mas antes que pudesse ceder, uma última certeza preencheu sua mente.

    Eles haviam sobrevivido.

    E por agora, isso era o suficiente.

    Depois que Douglas terminou de explicar a situação, Bruce enfim se acalmou. Seus olhos, antes tomados pela inquietação, suavizaram-se, ainda que o peso do cansaço não tivesse desaparecido. Sem resistência, deixou-se ser conduzido de volta à carruagem, onde o balançar da estrada castigava ainda mais seu corpo debilitado.

    A dor não passava.

    Mesmo após dias desde o combate, seu corpo ainda ardia, músculos tensos como se a qualquer momento fossem se despedaçar. Cada respiração pesada parecia rasgar por dentro, e mesmo o mais leve movimento fazia seus ossos protestarem. Bruce já conhecia essa dor.

    O fluxo…

    Uma técnica poderosa, capaz de levar um guerreiro além de seus próprios limites. Mas um guerreiro que ousasse abusar de seu poder pagava um preço severo. E Bruce havia passado de seu limite.

    Durante os treinamentos, ele já havia sentido um resquício desse sofrimento, mas dessa vez era diferente. Muito pior. Seu corpo não apenas estava esgotado—estava ferido, golpeado, castigado pelo combate contra o Troll Vermelho. 

    Mesmo que nenhum dos ferimentos fosse mortal, cada um contribuía para transformar seu corpo em um campo de dor constante.

    Ele se forçou a abrir os olhos e olhou para fora da carruagem.

    Lá estava Douglas, andando ao lado de Berco e Axis, discutindo algo em meio ao barulho monótono da marcha. O olhar de Douglas era sério, focado. Berco parecia pensativo, enquanto Axis mantinha sua expressão fria e inexpressiva, como se estivesse ali, mas sua mente vagasse por outros lugares.

    A moral dos soldados da Ponto Escuro não estava alta.

    Mesmo tendo vencido, o gosto amargo da batalha ainda pairava sobre eles. Bruce fechou os olhos.

    E então, sem perceber, adormeceu.

    ⧫⧫⧫

    A viagem prosseguia, e o destino finalmente se aproximava. Apenas mais um dia e algumas horas separavam a Ponto Escuro do Reino Grão-Vermelho, onde finalmente poderiam descansar de verdade.

    Bruce já conseguia se mover melhor. Ainda sentia dores pelo corpo, mas ao menos conseguia andar sem parecer que cada passo o mataria um pouco mais. Sua mente também estava mais clara, embora o peso da batalha ainda não tivesse se dissipado por completo.

    Shayax também havia despertado.

    O lagarto estava debilitado, mas a regeneração natural de sua raça o ajudava a se recuperar rapidamente. Se fosse humano, certamente jamais voltaria a andar—isso se tivesse sobrevivido ao golpe brutal do Troll Vermelho.

    Bruce o visitara algumas vezes, observando como seu amigo se esforçava para mover o corpo novamente. A cada pequeno progresso, algo dentro de Bruce se aliviava. Eles sobreviveram. E isso era o mais importante.

    Mas algo ainda o incomodava.

    Ele precisava falar com Axis.

    Encontrou-a em meio às tropas, a armadura prateada reluzindo sob a luz do sol poente. A guerreira mantinha a mesma expressão impassível de sempre, como se nada no mundo pudesse realmente afetá-la.

    Bruce se aproximou.

    — Axis, posso falar com você um minuto?

    A paladina voltou-se para ele, arqueando uma sobrancelha.

    — Hm? Ah… não. — Respondeu de forma vaga, antes de se corrigir. — Digo, sim. Sobre o que quer falar?

    Bruce hesitou por um momento. Axis não parecia exatamente incomodada, mas também não demonstrava entusiasmo para conversar. Seu rosto era uma parede intransponível—frio, neutro, indecifrável. Bruce desistiu de tentar interpretar qualquer coisa e foi direto ao ponto.

    — Obrigado por ter me salvado naquele dia.

    Axis permaneceu em silêncio, apenas ouvindo.

    — Se não fosse por você… eu teria morrido ali. Sério, muito obrigado. — As palavras saíram firmes. Ele não queria que aquilo soasse como um agradecimento forçado ou sem peso. Ele realmente devia sua vida a ela.

    Por um momento, Axis apenas o encarou, como se analisasse cada palavra. Então, suspirou levemente.

    — Não há por que me agradecer.

    Bruce franziu a testa.

    — Eu não ataquei o troll para salvar você, nem ninguém da Ponto Escuro. — continuou ela. — Como eu disse naquele dia, foi pura coincidência. Eu estava caçando algumas feras mágicas para meu próprio treinamento e acabei avistando o Troll Vermelho de longe.

    Ela cruzou os braços, sua expressão permanecendo inalterada.

    — Mas pensei que ele fosse mais forte…

    Ela franziu ligeiramente a testa e levou a mão ao queixo.

    — Será que ele estava fraco porque não teve a oportunidade de se auto-incendiar?

    Bruce piscou, confuso.

    — Como?

    Axis desviou o olhar para o horizonte, pensativa.

    — Um antigo amigo, certa vez me disse, que trolls vermelhos possuem a habilidade de incendiar seus próprios corpos para aumentar seu poder. Mas aquele que enfrentamos… não fez isso.

    Bruce sentiu o sangue ferver.

    Então estavam lutando contra um troll enfraquecido?

    Aquela criatura era ainda mais poderosa do que o que haviam enfrentado?

    Se fosse verdade… então o que isso dizia sobre ele?

    Sou fraco.

    A frase se repetiu em sua mente.

    Ridiculamente fraco.

    Seu punho se fechou. A dor voltou a latejar em seus músculos, mas, dessa vez, ele não tinha certeza se era causada apenas pelos ferimentos.

    — Perdoe-me, Axis. Posso fazer-lhe algumas perguntas? — Bruce inclinou-se levemente em um gesto respeitoso, seu olhar fixo nos olhos da paladina prateada. Ela apenas assentiu com um leve movimento de cabeça, sinalizando que ele prosseguisse.

    — Aquele frio intenso que senti durante a luta, e o gelo que surgiu do nada… isso foi obra de seu feitiço, não foi? Um poder de afinidade com o gelo?

    Axis cruzou os braços, sua expressão permanecendo serena, quase indiferente.

    — Sim, exatamente. É minha afinidade. — Respondeu com simplicidade, como se fosse um detalhe insignificante.

    — E… quantos mais possuem um poder assim? Quero dizer, afinidades tão fortes quanto a sua?

    Ela pareceu ponderar, os olhos distantes como se vasculhassem memórias há muito enterradas. Após alguns momentos, respondeu com uma leve hesitação:

    — Não muitos. — Seus lábios se apertaram, formando uma linha pensativa. — Deixe-me pensar… havia um cara de gelo de renome… ah, não, ele morreu há anos. Talvez… não, aquele também pereceu. — Axis soltou um suspiro curto, balançando a cabeça, como quem abandona uma busca inútil.

    Bruce não conseguiu conter um sorriso nervoso. Por um momento, a poderosa paladina, que ele admirou, parecia mais uma pessoa comum, envolta em devaneios e hesitações. Era quase reconfortante.

    — Não precisa se preocupar em lembrar. Só de saber que é algo tão raro já é uma resposta suficiente. — Ele então inclinou levemente a cabeça, reunindo coragem para a próxima pergunta. — Antes de você aparecer, meu amigo Shayax estava prestes a ser atacado pelo troll vermelho. Mas algo estranho aconteceu. De repente, fui jogado para onde ele estava, e ele para onde eu estava, como se trocássemos de lugar. Isso… isso também era parte das habilidades do troll?

    Axis ergueu uma sobrancelha, finalmente exibindo uma expressão de surpresa genuína.

    — Troca de lugar? — Murmurou, como se provasse as palavras. — Nunca ouvi falar de trolls com esse tipo de habilidade.

    — Nem eu. Por isso achei tão estranho… — Bruce desviou o olhar, franzindo a testa. — O troll parecia tão focado em matar Shayax. Não faria sentido ele usar uma habilidade dessas sem motivo. Será que… será que é outra coisa?

    Axis tocou o queixo com um dedo, sua armadura refletindo a luz pálida do fim da tarde.

    — Talvez… se fosse para adivinhar, diria que é efeito de uma bênção.

    A palavra causou um leve sobressalto em Bruce. Ele cruzou os braços, pensativo, enquanto tentava vasculhar o conhecimento que acumulava durante as leituras na base da Ponto Escuro.

    — Bênção… Sim, lembro de ter lido algo a respeito. Tinha algo a ver com arcanjos, não tinha? — Ele franziu a testa, esforçando-se para lembrar, mas as palavras pareciam escorregar de sua mente. — Não consigo lembrar de muitos detalhes…

    Axis deu de ombros.

    — Algo assim, creio eu. — Sua voz parecia desinteressada, como se o tema não a impressionasse. — Tenho algumas bênçãos também, mas… nunca me preocupei em aprender muito sobre sua história. Se quiser, posso te ajudar com…

    Antes que pudesse continuar, passos rápidos se aproximaram, seguidos por uma voz firme.

    — Axis. — Berco interrompeu, a postura rígida e o tom reprovador. — Estamos do lado de fora do reino, cercados por pessoas. Esse tipo de conversa… não seria apropriado, concorda?

    Axis piscou algumas vezes, confusa.

    — Não seria…?

    — Certamente que não. — Berco cruzou os braços, olhando-a com severidade. — Você não deveria falar sobre bênçãos ou demonstrar seus poderes abertamente. Não percebe o risco que isso representa? Seus poderes são como cartas na manga. Quanto menos os outros souberem, mais perigosa você será em combate.

    Axis arregalou os olhos levemente, inclinando a cabeça como uma criança que acaba de aprender algo importante.

    — Ohhh… — Murmurou, seus lábios formando um pequeno “O”.

    Berco suspirou profundamente, enquanto Bruce apenas observava, sentindo-se uma vez mais o mais despreparado de todos ali. Cada resposta trazia mais perguntas, mas algo era certo: o mundo em que viviam era vasto, perigoso e cheio de mistérios ainda além de sua compreensão.

    Axis encolheu os ombros como uma criança que acabara de levar uma bronca e murmurou:

    — Entendi, me desculpe. Acho que passei da linha.

    — Não precisa se desculpar, apenas tome mais cuidado no futuro. Você também, Bruce. — Berco lançou um olhar firme a ele, cuja expressão era de pura confusão.

    — Eu? — Bruce apontou para si mesmo, piscando algumas vezes como se não tivesse entendido o motivo da repreensão.

    — Sim, você. — Berco suspirou, como quem carrega o peso de ter que explicar o óbvio. — Escutem, ambos. Acho que já falei mais do que devia, mas vou esclarecer uma última vez. Assim que terminarmos esta conversa, o assunto estará encerrado até que cheguemos ao reino. Estamos entendidos?

    Bruce assentiu rapidamente, suas feições adquirindo uma seriedade incomum.

    — Certo, entendido. Se puder me dar uma luz sobre isso, fico feliz só de ouvir.

    Axis, que mantinha uma postura um tanto abatida, também balançou a cabeça em sinal de concordância.

    — Muito bem. — Berco respirou fundo, fechando os olhos por um momento antes de abri-los com determinação. Quando começou a falar, sua voz carregava um tom grave, quase solene. — Há muito, muito tempo, quando os arcanjos caminhavam entre os vivos, eles deixaram sua marca na humanidade. Dons que transcenderam gerações, habilidades singulares que os mortais chamaram de “bênçãos”.

    Ele fez uma pausa, como se o peso daquelas palavras exigisse um momento de reflexão.

    — Essa é uma passagem antiga de um livro chamado Passados Distantes. É um manuscrito raro, mas acessível para quem busca compreender os eventos que moldaram nosso mundo. Recomendo fortemente que leiam.

    Bruce assentiu, absorvendo as palavras como se fossem um mapa para um território desconhecido.

    — Obrigado pela recomendação.

    — Obrigada também — murmurou Axis, que parecia genuinamente interessada, embora com um toque de hesitação.

    Berco, contudo, arqueou uma sobrancelha, sua expressão tornando-se mais severa.

    — Você é uma paladina, Axis. Esse tipo de leitura deveria ser obrigatório para alguém na sua posição.

    Axis desviou o olhar, claramente desconfortável.

    — Normalmente estou caçando monstros. Não sobra muito tempo para livros…

    Berco cruzou os braços, sua voz endurecendo.

    — Esse hábito de caçar monstros em territórios que não pertencem ao seu reino é algo que discutiremos ao chegar no reino.

    Axis engoliu em seco. Bruce percebeu uma gota de suor escorrer pela lateral de seu rosto, um raro momento em que a autoconfiança da paladina parecia vacilar.

    — Continuando — Berco retomou o tom solene —, os arcanjos eram vistos como entidades divinas. Se eram de fato deuses ou não, não podemos afirmar com certeza, mas os registros antigos falam de seus feitos como algo além da compreensão humana. Eles concediam poderes únicos, que escapavam às regras naturais da gama e transcendiam as teorias conhecidas.

    Bruce arregalou os olhos, impressionado.

    — Então… as bênçãos são como… magia, mas em um nível muito mais alto?

    — Não exatamente — respondeu Berco, balançando a cabeça. — O mais importante é entender que as bênçãos não seguem as mesmas leis que governam a manipulação de gama. Elas operam em suas próprias regras, como se viessem de outro plano de existência.

    Axis, até então em silêncio, inclinou a cabeça levemente, refletindo.

    — Nunca pensei nas bênçãos dessa forma. É assustador e fascinante ao mesmo tempo.

    Berco mordeu a língua para evitar um comentário ácido. Ele preferiu manter o foco na explicação.

    — Algo aconteceu há muito tempo, algo que alterou o equilíbrio do mundo. Vocês já ouviram falar da Deriva Continental?

    Bruce franziu a testa, confuso, enquanto Axis inclinava a cabeça, parecendo esforçar-se para lembrar algo. Após alguns segundos, ela disse:

    — É aquela teoria sobre a mudança do continente, certo?

    A surpresa nos olhos de Berco era palpável, mas ele disfarçou rapidamente.

    — Exatamente. Não esperava que você soubesse disso, Axis.

    Ela sorriu sem graça, enquanto Bruce olhava de um para o outro, sentindo-se um pouco perdido.

    — E como isso se conecta com as bênçãos?

    Berco fez uma pausa, lançando um olhar sério para os dois.

    — A teoria da deriva continental sugere que o mundo como o conhecemos já foi um único pedaço de terra, uma vasta massa conectada. Com o passar do tempo, essas terras começaram a se separar e se mover, moldando os continentes. Hoje, tudo o que resta é este único continente isolado. Mas o mais intrigante é que algo aconteceu para que essa separação fosse abrupta, diferente do movimento natural.

    Axis inclinou a cabeça, mostrando um interesse crescente, enquanto Bruce cruzava os braços, franzindo a testa.

    — Essa teoria é apenas o começo. — Berco continuou, com a voz grave. — Em Passados Distantes, há relatos de raças e civilizações que não existem mais. Avanços tecnológicos que desafiam nossa compreensão atual, e registros de guerras tão devastadoras que parecem apagadas da memória do mundo. Não sabemos o que exatamente ocorreu, mas as histórias indicam que tudo isso culminou em um evento catastrófico.

    Bruce interrompeu com curiosidade evidente.

    — Mas se o mundo era tão grande, por que simplesmente não exploramos o resto? Quero dizer, humanos não construíram barcos? Eu mesmo já vi navios nas praias próximas da floresta onde vivia.

    Berco fez uma pausa, lançando um olhar quase paternal para Bruce antes de responder:

    — Não é tão simples assim. É verdade que tentamos navegar além das águas que cercam o continente. Barcos foram construídos, armadas inteiras lançadas ao mar. Mas existe algo lá fora… algo que não nos deixa ir longe demais.

    Bruce arregalou os olhos, confuso.

    — Algo? Que tipo de algo?

    — Uma criatura que chamamos de Profundorus. — Berco respondeu, com uma nota de gravidade na voz. — Não sabemos como ela é. Tudo o que sabemos é que, quando uma embarcação ultrapassa certo limite no oceano, ela é destruída. Não por monstros menores ou tempestades, mas por disparos que parecem canhões de água, tão poderosos que pulverizam qualquer embarcação em segundos.

    Axis abriu a boca, surpresa.

    — Disparos? Como isso é possível?

    Berco balançou a cabeça lentamente.

    — Não sabemos. Após incontáveis tentativas fracassadas, os reinos desistiram de explorar além das águas. Foi uma perda tão grande em vidas e recursos que decidimos nos resignar à ideia de que este continente é tudo o que nos resta.

    O silêncio que se seguiu era pesado. Bruce parecia absorto, processando o que acabara de ouvir. Para alguém que sempre pensou que o mundo era vasto e cheio de possibilidades, aquilo era ao mesmo tempo fascinante e aterrorizante.

    — Certo, — Berco finalmente quebrou o silêncio, ajustando sua postura. — Eu me desviei um pouco do assunto, mas isso era necessário para que compreendessem o que vou dizer a seguir.

    Sua expressão endureceu.

    — Há muito tempo, antes do evento que mudou tudo, os arcanjos viviam entre os mortais. Eles eram seres de poder inimaginável, criaturas divinas capazes de feitos que nem os melhores humanos da época poderiam sonhar em replicar. No entanto, algo aconteceu. Um evento cataclísmico. Eles foram exterminados.

    Bruce não conseguiu se conter.

    — Os arcanjos foram exterminados? Como?! Eles não eram… tipo, invencíveis?

    Berco suspirou, com um olhar pesaroso.

    — Não sabemos os detalhes. O que sabemos é que sua destruição foi tão colossal que abalou o mundo inteiro. É provável que tenha sido isso que causou a deriva continental. Antes de desaparecerem, porém, os arcanjos deixaram então as “suas marcas”. Suas bênçãos.

    Axis inclinou-se, interessada.

    — Suas bênçãos?

    — Sim. — Berco assentiu. — Esses dons são habilidades que não seguem as regras comuns da magia ou da manipulação de gama. Eles são… excepcionais. Poderes que rompem com as leis naturais deste plano de existência. E, ao contrário do que muitos textos antigos dizem, essas bênçãos não foram concedidas apenas aos humanos. Elfos, homens-lagartos, elfos negros… todas as raças podiam receber essas dádivas.

    Axis franziu o cenho.

    — Então por que as histórias sempre dizem que os humanos foram escolhidos?

    Berco deu de ombros, com um sorriso amargo.

    — Provavelmente preconceito. Os humanos, ao que parece, sempre gostaram de se colocar no centro das narrativas. Mas lembrem-se disto: as bênçãos não são apenas um presente. Elas carregam responsabilidades, fardos. Quem as possui não está apenas vivendo com poder, mas com um pedaço do legado dos arcanjos.

    O peso de suas palavras pairou no ar. Era uma verdade difícil de ignorar.

    Bruce ergueu a mão com um gesto firme, chamando a atenção de Berco.

    — Posso perguntar algo?

    — Sim, estás livre para perguntar. Mas saiba que, se for algo para o qual ainda não possuo resposta, me absterei de respondê-lo.

    Bruce assentiu, aceitando os termos.

    — Tudo bem. O que quero saber é por que nunca ouvi falar… ou melhor, por que nenhum homem-lagarto jamais ouviu falar de alguém da nossa raça que possuísse uma bênção?

    Berco esboçou um sorriso contido, um brilho sagaz nos olhos, como se já esperasse aquela pergunta.

    — As bênçãos, apesar de transcenderem as leis comuns da magia, ainda assim precisam ser armazenadas em um receptáculo dentro do corpo. Tens ideia de onde elas residem? — Ele lançou o questionamento, incitando-os a responder.

    Axis, levou um dedo ao queixo, refletindo.

    — No cérebro? — perguntou, sua voz carregada de dúvida.

    Berco negou com um leve balançar de cabeça.

    — Errado.

    — No núcleo de gama! — exclamou Bruce, seus olhos brilhando com a súbita compreensão.

    O homem de vestes escuras sorriu com satisfação.

    — Bingo. Acertaste em cheio. As bênçãos são armazenadas no núcleo de gama de seu portador. Mas os homens-lagartos… — ele fez uma pausa. — Vocês sequer sabiam da existência de um núcleo dentro de seus corpos. Nunca compreenderam a gama ou como manipulá-la. Assim, qualquer homem-lagarto que tenha sido agraciado por uma bênção teve seu poder restringido pela própria ignorância. A bênção, por assim dizer, foi selada junto com seu núcleo de gama.

    Axis arregalou os olhos ligeiramente. Era uma revelação inesperada.

    Berco prosseguiu, sua voz carregada de um tom solene.

    — Entretanto, aqueles que viajaram ao Reino Grão-Vermelho e se submeteram a um treinamento árduo começaram a entender a gama e seus princípios. Com esse conhecimento, removeram esse selo. Então, é possível até que alguns de vocês despertem bênçãos, assim como ocorre com os humanos e os elfos. — Enquanto falava, seus olhos se voltaram para Bruce, mantendo-o sob um olhar avaliador.

    O homem-lagarto enrijeceu-se levemente. A mensagem não dita foi clara. Talvez… talvez ele próprio tivesse despertado sua bênção naquele momento de puro desespero. Um poder único, só seu. O pensamento fez seu sangue ferver de empolgação. Ele queria descobrir mais, compreender o que poderia fazer, testar os limites desse novo dom.

    Berco, por sua vez, relaxou os ombros, encerrando o assunto com uma leve mudança de tom.

    — Basicamente, essa é a história que podias desejar ouvir. Não sou um estudioso formado, apenas um curioso que se dedica a aprender sempre que pode. Quando temos tempo, é bom reservar algumas horas para adquirir conhecimento sobre o mundo ao nosso redor.

    Bruce deixou escapar um riso satisfeito.

    — Valeu, Berco! Isso me ajudou muito. Vou usar as informações que me deu e seguir em busca de mais respostas.

    Berco sorriu de lado.

    — Certo. Mas parece que esqueceste algo. — Ele enfiou a mão dentro de seu manto e retirou um par de lâminas curtas, entregando-as a Bruce.

    O homem-lagarto arregalou os olhos. Como pôde ter se esquecido de suas armas?! Pegou as adagas, sentindo o peso familiar e reconfortante em suas mãos.

    — Acredito que estava tão atordoado com tudo que aconteceu que nem percebeu que andava desarmado o tempo todo. Ora, ora, estás ficando desatento, Bruce. — Berco soltou uma risada breve antes de se afastar, ainda se divertindo com a distração do outro.

    Bruce olhou para suas lâminas, uma expressão mista de alívio e gratidão. Berco não apenas as recuperara, como também as guardara para ele. Faria uma nota mental de agradecê-lo apropriadamente depois.

    Axis, ao lado, soltou um suspiro, cruzando os braços enquanto mirava o céu.

    — Acho que eu preciso estudar mais… — murmurou.

    Bruce riu, girando as adagas entre os dedos.

    — Eu também…

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota