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    A luz tênue das velas tremulava entre as estantes da biblioteca de Icca, projetando sombras alongadas sobre os antigos tomos e pergaminhos. O cheiro de papel envelhecido se misturava ao aroma suave de madeira e cera derretida.

    Tiko folheava um livro em silêncio, imerso em seus estudos, enquanto a chuva ameaçava cair do lado de fora. Escolhera o interior da biblioteca justamente por isso— a umidade do ar não atrapalharia a leitura. Mas, para sua surpresa, aquela tarde reservava uma companhia inesperada.

    A jovem à sua frente parecia inquieta. Sentada com um livro aberto nas mãos, lançava olhares furtivos em sua direção, espiando-o por trás das páginas. De tempos em tempos, abaixava os olhos, hesitante, como se reunisse coragem para falar algo.

    Tiko percebeu. Claro que percebeu. A forma como ela o observava não era mero acaso. Um arrepio percorreu sua espinha.

    Ela está me vigiando?

    Será que faz parte dos Pecadores?

    Ou talvez… tenha descoberto que não sou humano?

    Pensamentos nebulosos tomaram sua mente, fazendo-o sentir um peso frio no peito. Seria prudente sair dali? Mas se se afastasse de forma abrupta, isso não levantaria ainda mais suspeitas? Já era visto como um estranho, um forasteiro solitário que residia nos limites do vilarejo, sempre oculto por sua máscara. O que poderia ser mais suspeito do que isso?

    Subitamente, a jovem fechou o livro com um estalo suave. Inspirou fundo e, antes que Tiko pudesse reagir, finalmente rompeu o silêncio.

    — Você quer dar uma volta comigo…?

    O tempo pareceu se esvair por um instante.

    — Hm?

    Tiko ergueu os olhos, encarando-a com uma expressão indecifrável. A garota desviou o olhar no mesmo instante, juntando as mãos atrás das costas, as bochechas tingidas de vermelho.

    Uma armadilha?

    Seu corpo enrijeceu sob a máscara. A voz dela não carregava hostilidade, nem desconfiança evidente. Apenas um nervosismo ingênuo, talvez até expectativa.

    — Ah… ehh… Tipo… vai ter um evento daqui a alguns dias e tudo mais… — Ela mexeu nos dedos, evitando encará-lo diretamente. — Então… queria saber se… não quer dar uma volta comigo.

    A biblioteca se tornou absurdamente silenciosa. O estalo da madeira rangendo sob os passos de algum visitante distante foi o único som além da respiração contida da garota.

    — Entendo… — murmurou Tiko.

    Mas sua mente estava longe de entender qualquer coisa.

    Se recusar, vai parecer suspeito? Se aceitar, corro algum risco? Por que ela está me chamando? Não faz sentido!”

    O fluxo de pensamentos fez com que ele a encarasse por um longo tempo, analisando-a com ainda mais intensidade.

    Ela notou.

    Seus olhos se arregalaram por um breve momento, e um rubor ainda mais intenso tomou conta de seu rosto. Inclinou-se levemente para trás, claramente desconfortável.

    O silêncio entre eles se alongou, carregado de significados indecifráveis.

    — Tudo bem. — disse Tiko, sua voz soando firme, mas sem emoção.

    A resposta foi simples, mas teve um efeito inesperado.

    — Hã?!

    A jovem arregalou os olhos, sua surpresa explodindo em um tom alto demais para o ambiente silencioso da biblioteca. No instante seguinte, ela prendeu a respiração, percebendo a quantidade de olhares que se voltaram para ela. Seu rosto já corado ficou ainda mais vermelho, e ela cobriu a boca com as mãos, envergonhada.

    Tiko observou tudo sem reação aparente.

    — S-Sério mesmo…? — sussurrou a garota, agora mais contida.

    — Sim. Por que não? — respondeu ele, dando de ombros. — Vai ser bom ter algo diferente para fazer além de treinar e estudar.

    Claro, a resposta não era totalmente sincera. No fundo, Tiko sabia que recusar poderia tornar sua posição ainda mais suspeita. Um homem que vive isolado, sempre usando uma máscara e evitando interações sociais? Qualquer comportamento anormal apenas reforçaria as dúvidas que talvez já existissem sobre ele. 

    Se fosse visto como uma figura comum, sem mistérios, suas chances de passar despercebido aumentariam.

    Além disso… talvez o evento lhe desse a oportunidade de conseguir algo útil. Estava precisando de roupas novas. Algo de sua escolha, e não vestimentas passadas adiante pelos Pecadores.

    Enquanto ponderava sobre suas motivações, não notou a jovem apertando o punho discretamente ao lado do corpo, como se comemorasse uma pequena vitória.

    — E-Então… a gente pode se encontrar aqui mesmo no dia do evento? — perguntou ela, a voz ainda carregada de um entusiasmo mal disfarçado.

    — Ah, sim. Tudo bem. — assentiu Tiko. — Quantas horas?

    — C-Cedo… 14h30?

    — Tudo bem.

    Ela pareceu aliviada.

    Tiko, por sua vez, calculou a situação. Não possuía um relógio consigo, e estimar o horário apenas pelo sol nem sempre era confiável. Felizmente, a biblioteca possuía uma relíquia mágica, um antigo relógio montado em um pedestal, visível através da grande janela próxima à entrada.

     Bastaria vir até ali mais cedo e verificar o horário. Simples o suficiente.

    A garota hesitou por um instante, como se quisesse dizer algo mais, mas no fim apenas se virou apressadamente, saindo sem olhar para trás.

    Tiko observou-a desaparecer entre as estantes antes de soltar um suspiro discreto. Finalmente, a paz voltava ao seu espaço.

    Virou a página do livro à sua frente e retomou a leitura, tentando afastar da mente a estranha sensação de que aquela pequena interação poderia alterar mais coisas do que imaginava.

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