Capítulo 92 - Lembranças
— E então? Conseguiu? Conseguiu?!
A voz animada de Sandra cortou o ar do refeitório, carregada de expectativa. Ela se inclinou sobre a mesa, os olhos brilhando de curiosidade.
— Er… sim. — respondeu Sira, hesitante. — Ele aceitou…
Mal terminou de falar, e Sandra ergueu os braços num gesto exagerado de comemoração.
— Yeh!!
Mirel, sempre mais reservada, apenas bateu palmas de leve, mantendo uma postura ereta. Mas o sorriso discreto no canto dos lábios deixava claro que estava satisfeita com a notícia.
Sira bufou, cruzando os braços em um gesto defensivo.
— Tá… tá… não fiquem tão animadas com isso. Não é como se fosse alguma coisa especial… a-além disso, ele é só um esquisitão de máscara! Eu nunca nem vi o rosto dele!
— Nossa menina está tão crescida… — disse Mirel, fingindo enxugar uma lágrima imaginária com um lenço.
— Hã?! — Sira a encarou incrédula.
— Agora é partir pra cima! — declarou Sandra, flexionando um dos braços em um gesto de força, o outro apoiado sobre ele, um sorriso determinado no rosto.
— Vocês… vocês ouviram o que eu acabei de falar…?
Sira desistiu de tentar argumentar. Não havia como vencer contra as duas.
O burburinho de conversas misturava-se ao tilintar de pratos e talheres, criando um fundo sonoro constante que permitia que falassem mais alto sem chamar atenção. Mesmo assim, Sira sentia um leve constrangimento ao discutir aquele assunto ali.
Por dias a fio, suas amigas insistiram para que ela falasse com o estranho homem mascarado. Cada encontro delas começava com Sandra ou Mirel sugerindo que ela o chamasse para sair. “Está sempre sozinho”, diziam. “Parece interessante.” “Aposto que ele só age de forma estranha porque ninguém se aproxima.”
No início, Sira ignorou os comentários. Depois, começou a revidar com argumentos. Por fim, com a paciência no limite, explodiu e fez um acordo: chamaria o homem para sair no festival do vilarejo, e se ele recusasse, as amigas finalmente a deixariam em paz.
Mas o inesperado aconteceu.
Ele aceitou.
E agora ela estava ali, jogada sobre a mesa, sem saber como lidar com aquilo.
— Eu pensei que ele iria dizer não… que problema vocês arrumaram pra mim… — murmurou, enterrando o rosto nos braços.
— Você não devia ver isso como um problema, mas como uma oportunidade. — disse Mirel com serenidade.
Sandra assentiu energicamente.
— Eu já imaginava que ele aceitaria. Você é muito bonita, Sira!
Sira ergueu o olhar, hesitante.
— Eu…?
As duas assentiram ao mesmo tempo, sorrindo.
Ela desviou o olhar, as bochechas esquentando um pouco.
Não queria admitir, mas uma parte dela começava a se perguntar se aquele encontro realmente seria tão ruim assim.
Sira passara a maior parte da vida sob a rígida tutela de seu avô, Markus. Para ele, a aparência era uma frivolidade sem valor; o que importava era a habilidade com a lâmina e o respeito às suas regras.
Em meio aos treinos árduos e à caçada incessante aos pecadores, ela jamais teve tempo ou razão para se preocupar com futilidades como roupas ou beleza. Mas agora, vivendo no pacato vilarejo de Icca, longe da vida de sangue e aço, essas preocupações começaram a surgir de forma sutil, quase imperceptível.
No início, foi uma questão de respeito à família Ivoguin, que a acolhera como uma das suas. “Não quero ser vista como uma garota mal arrumada… isso pode refletir mal na casa que me recebeu”, pensara. Mas, com o passar dos dias, a questão deixou de ser um mero dever e tornou-se algo mais pessoal. Cada vez que se olhava no espelho antes de sair, perguntava-se: “Será que estou bem desse jeito?”. Era uma pergunta incômoda, mas que voltava insistentemente à sua mente.
Com o tempo, começou a aprender. Pursena e Ariane, ao perceberem seu interesse, ficaram radiantes, quase eufóricas. Quando Sira, com certa hesitação, pediu ajuda para “ficar mais feminina”, elas reagiram como se um milagre houvesse acontecido.
Seus olhos brilharam, as mãos voaram à boca em pura animação. A transformação foi sutil, mas notável. Cuidar dos cabelos tornou-se parte da rotina, vestir-se bem não era mais uma obrigação, mas uma escolha. Não que ela houvesse abandonado suas roupas de treino – a facilidade de movimento ainda era essencial –, mas agora não se sentia desconfortável ao vestir um vestido ou um traje mais refinado.
Mas havia um problema.
— Se eu pedir ajuda para a Pursena e Ariane para me arrumar de novo, elas vão querer saber o porquê e podem acabar suspeitando que vou sair com alguém… — reclamou Sira, cruzando os braços.
Mirel arqueou uma sobrancelha, como se a preocupação de Sira fosse um completo mistério.
— E qual é o problema? — perguntou, como se aquilo não fizesse o menor sentido.
Sira hesitou, desviando o olhar.
— É vergonhoso! Esse tipo de coisa… hm…
Mirel suspirou, balançando a cabeça com um sorriso resignado.
— Ai, ai. — murmurou. — Que tal assim: no dia do encontro, passe na minha casa bem cedo. Eu vou ter que me arrumar de qualquer jeito, então aproveito e dou um jeito em você.
A expressão de Sira se fechou. “Dou um jeito em você”? A frase soava quase como um insulto. Não era como se fosse completamente inepta quando se tratava de aparência! Lançou um olhar de carranca para Mirel, mas, no fim, cedeu.
— Tudo bem, eu aceito. — disse, num tom de quase resignação.
— Você vai se arrumar também no dia do evento, Mirel? — perguntou Sandra, inclinando-se sobre a mesa com curiosidade.
Mirel sorriu, um brilho divertido nos olhos.
— Sim, felizmente consegui um par para ir comigo no evento.
Sira e Sandra entreolharam-se, boquiabertas. Não esperavam aquela revelação.
— Onde?! Quando?! — exclamou Sandra, animada.
Mirel suspirou teatralmente, como se estivesse prestes a contar uma história de grandes feitos.
— Foi há pouco tempo. Nos conhecemos quando eu acompanhava minha mãe em uma das idas às lojas do vilarejo. Ele é um cavaleiro formidável, com um sorriso reluzente e modos impecáveis. Minha mãe quase se apaixonou por ele no meu lugar! Lembro dela suspirando e murmurando: “Ah, se eu fosse vinte anos mais nova…”. — Mirel deu um risinho presunçoso, claramente satisfeita com a lembrança.
— Qual o nome dele? — perguntou Sira, intrigada.
— Lorenzo. Pelo que descobri durante nossa conversa, ele é um nobre em busca de um lugar para construir seus novos negócios. O primeiro filho de um dos nobres de Camelot.
Sandra arregalou os olhos, maravilhada.
— Ohh… Camelot, é? Ouvi dizer que os nobres de lá são incrivelmente belos!
Mirel sorriu ainda mais.
— E você está corretíssima. Pelo menos, meu amado é dolorosamente lindo. As jovens que estavam na loja morreram de inveja enquanto ele dava atenção apenas para mim.
Sira observou Mirel por um instante, analisando sua expressão. Ela parecia genuinamente encantada, mas também ciente do impacto de suas palavras. Mirel sempre teve um ar de confiança inabalável, mas dessa vez, havia um brilho diferente em seus olhos. Um lampejo de satisfação, talvez até mesmo… felicidade?
Sandra ainda olhava para Mirel como se não conseguisse acreditar na história. Sira, por sua vez, apenas suspirou, balançando a cabeça.
Sira já havia cruzado o vasto território de Camelot várias vezes durante suas viagens com Markus, mas nunca tivera a oportunidade de adentrar a capital do reino.
Os dois costumavam parar em pequenos vilarejos, descansar nas tavernas acolhedoras e seguir com sua busca pelos pecadores que estavam por aquelas regiões. No entanto, nunca haviam se aventurado nas ruas movimentadas e nas imponentes muralhas da cidade que os rumores sempre diziam ser a maior de todas.
Camelot era um reino grandioso. Sua capital, um verdadeiro monumento de pedra e arquitetura, dominava a paisagem, com torres que tocavam as nuvens e praças que abrigavam mercados e nobres de várias terras. Não que isso fosse motivo para orgulho.
Uma cidade gigantesca era, sem dúvida, difícil de administrar, e o peso de sua grandeza poderia esmagar os mais despreparados. No entanto, isso também dizia muito sobre a habilidade do rei, cuja sabedoria era indiscutível, mantendo a ordem com mãos firmes. Mas Sira não sabia ao certo como o governo de Camelot funcionava por dentro.
Sabia que o reino era muito mais do que aquilo que os olhos viam.
No entanto, qualquer observador atento sabia que Camelot não era imune às intrigas e conspirações que assolavam qualquer grande reino. A corte, com sua opulência e traições veladas, estava cheia de indivíduos que, em busca de poder, poderiam manobrar por trás das cortinas do trono.
O próprio rei, com toda a sua sabedoria, não estava isento de perigos que poderiam surgir de dentro de suas próprias fileiras. Afinal, um reino não se sustentava apenas pela força de suas muralhas, mas pelas mentes que o governavam — e Camelot, com seus nobres e seus misteriosos jogos de poder, não era exceção.
Em comparação com o reino Grão-Vermelho, Camelot parecia estar em uma posição mais frágil. Grão-Vermelho era independente em muitos aspectos, com seu exército próprio e uma guilda de aventureiros que, ao contrário de Camelot, estava intrinsecamente ligada ao destino do reino. Nos momentos de crise, os aventureiros não podiam simplesmente fugir para outro lugar, como era o caso de Camelot, onde as guildas operavam quase como forças externas, sem obrigação de lealdade ao reino, a não ser por interesse pessoal.
— E quando vamos conhecê-lo? — perguntou Sandra, interrompendo o pensamento de Sira.
A pergunta foi feita com uma inocência que escondia um tom de curiosidade e um pouco de travessura. Mirel, com seu sorriso malicioso, olhou para a amiga e respondeu, brincando:
— Se tudo correr bem no dia do evento, podem conhecê-lo durante o evento, ou talvez depois. Nunca se sabe o que pode acontecer durante a noite, não é mesmo?
A risada que se seguiu entre as duas mulheres era evidente, mas Sira, com o semblante sério, suspirou. Ela já conhecia bem esse tipo de conversa e o tom irônico que acompanhava.
Seus pensamentos estavam longe dali, no turbilhão de incertezas que o futuro lhe reservava. As mulheres continuaram a zombar e a brincar entre si, mas a mente de Sira permanecia distante, absorvida pela expectativa do que estava por vir.
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