Prólogo
Duas sombras serpenteavam pela densa floresta. Uma imensa, de ombros largos e passos pesados; a outra, esguia e ágil como o vento, movendo-se com uma graça mortal.
Seus olhos se cruzavam enquanto corriam, trocando olhares cheios de desafio e um estranho senso de intimidade. Esse era o ritual deles: um treino noturno, um duelo de forças e habilidades que se repetia como uma dança antiga e feroz.
Bruce, o maior dos dois, foi o primeiro a atacar. Em um movimento fluido, lançou uma de suas adagas com precisão letal, mirando diretamente o rosto de sua adversária.
Ela, no entanto, desviou a lâmina com um único movimento de sua espada curta, a arma vibrando ao repelir o golpe. A adaga caiu ao chão, mas Bruce, em um piscar de olhos, a recolheu enquanto avançava com um salto poderoso. Ele mirou um golpe direto, feroz, mas ela já estava preparada.
A espada dela cortou o ar em um arco vertical, pronta para interceptar o avanço do oponente.
Bruce, no entanto, utilizou suas adagas para desviar o golpe e, num giro acrobático, desferiu um chute giratório no ar, as lâminas agora servindo como um suporte para seu corpo em movimento. A irmã não pôde evitar um pequeno sorriso. Ele estava melhorando.
Mas não o suficiente.
Ela inclinou o corpo para o lado, esquivando-se do golpe e, com um giro fluido, devolveu o ataque.
Sua espada avançou em direção a Bruce, que reagiu instintivamente, cruzando as adagas para bloquear o impacto. O choque do golpe ecoou por seu corpo, uma força tão poderosa que o lançou para trás, fazendo-o girar no ar antes de aterrissar pesadamente no chão.
Os músculos de Bruce vibravam com a força recebida, mas ele não conseguiu conter um sorriso orgulhoso. Ela era incrível. Sempre fora.
Sua irmã, uma das guerreiras mais formidáveis da tribo, era tanto sua inspiração quanto seu obstáculo.
Após a morte dos pais durante a Grande Guerra da Tribo dos Homens Lagarto, fora ela quem o criara, moldando-o à sua imagem: um guerreiro ágil, disciplinado, e sedento por vitória.
E ainda assim, ele jamais conseguira derrotá-la. Não por falta de tentativas. Cada golpe seu, cada estratégia elaborada, eram sempre antecipados por ela, que os combatia com uma precisão quase sobrenatural.
Ela o criara para lutar, mas nunca para vencê-la.
Bruce ajoelhou-se, sentindo seus braços tremendo devido ao impacto. Olhou para as adagas em suas mãos, simples e comuns, mas preciosas. Um presente de seus pais, um símbolo de amor e sobrevivência. “Eu quero que viva”, eles pareciam dizer.
E viver significava lutar. Significava continuar se levantando.
Sua irmã andava em círculos ao redor dele, girando a espada com facilidade, um sorriso brincando em seus lábios.
— É só isso, Bruce? Quer descansar? — provocou ela, zombeteira, os olhos cheios de desafio.
Bruce ergueu-se devagar, apesar da dor nos braços. Seu olhar encontrou o dela, firme como aço.
— Acha mesmo que isso é o suficiente pra me parar, irmã?
Ela riu, um som leve e cortante como o fio de sua lâmina.
— É assim que eu gosto.
E com isso, ela avançou novamente, rápida como um raio, enquanto Bruce se preparava para continuar a dança.
Ela avançou com a espada em uma mão, o movimento fluido e letal. Bruce reagiu por instinto, defletindo o golpe com uma de suas adagas. O som do metal rangendo ecoou pela floresta enquanto a lâmina da espada deslizou ao longo da adaga, lançando fagulhas no ar.
Sem perder o ritmo, sua irmã girou o corpo em um movimento perfeito, fechando o punho da mão livre e desferindo um soco giratório. O golpe não era para derrubar, mas para desestabilizar.
Bruce não teve escolha a não ser se agachar, desviando do soco enquanto preparava seu próprio ataque. Ele viu uma abertura — as pernas dela estavam ao seu alcance. Com ambas as adagas, ele avançou para um golpe certeiro, mirando cortá-las de uma só vez. Porém, antes que pudesse finalizar o movimento, suas lâminas cortaram apenas o vazio.
Ela já não estava ali.
Com um salto ágil, sua irmã saiu do alcance, girando no ar. Bruce percebeu tarde demais o que estava para acontecer.
O chute veio de cima, rápido e preciso, mirando a parte de trás de sua cabeça. Sentindo o perigo, Bruce levantou os braços em um reflexo desesperado, cruzando-os sobre a nuca para bloquear o impacto.
Não era um movimento elegante, mas foi o suficiente para evitar o pior.
Mesmo assim, o impacto o lançou para o lado. Ele rolou pelo chão como uma pedra lançada ao vento até bater as costas contra o tronco áspero de uma árvore.
O ar fugiu de seus pulmões enquanto ele tentava se recompor. Foi então que percebeu o quão encrencado estava. Sua irmã tinha calculado cada movimento. O chute não era apenas para atingir, mas para posicioná-lo onde ela queria. A árvore atrás dele reduzia suas opções de manobra.
Bruce tentou se levantar, mas ela já estava em cima dele.
A espada dela veio em um arco descendente, mirando seu estômago. Ele levantou uma adaga para bloquear, conseguindo aparar o golpe por uma fração de segundo.
O choque das lâminas reverberou por seu braço, mas antes que pudesse respirar aliviado, sentiu sua perna ser deslocada.
Com um movimento preciso do quadril, sua irmã chutou suavemente sua perna para o lado, forçando-o a perder o equilíbrio. Bruce tropeçou, quase caiu, mas de alguma forma conseguiu se manter de pé.
Não importava. Ela já tinha vencido.
Sua posição estava completamente comprometida. A espada veio novamente, agora direto para seu pescoço. Ele tentou reagir, mas sabia que era tarde demais. O metal parou a um fio de distância de sua pele.
— Acabou.
A voz dela era firme, cortante como a lâmina que segurava. Bruce ficou paralisado, apoiado em uma mão no chão, sua outra adaga pendendo inutilmente ao lado.
Ele estava à mercê dela. Se fosse um combate real, teria perdido a cabeça naquele instante.
— P–Perdi… — murmurou, com a voz rouca e pesada, sentindo o gosto amargo da derrota.
Sua irmã o encarava com o mesmo olhar afiado de sempre, mas havia um brilho sutil de satisfação em seus olhos. Mesmo na derrota, ele estava aprendendo.
E isso, ela sabia, era o verdadeiro propósito daquele treinamento.
A lâmina deixou o pescoço de Bruce. Sua irmã recuou com elegância, o aço deslizando suavemente para dentro da bainha. Bruce permaneceu no chão, os olhos fixos nela, o peito subindo e descendo enquanto ele recuperava o fôlego.
Fechou os olhos por um momento, tentando acalmar o coração disparado. Quando os abriu novamente, viu uma mão estendida na sua direção.
Era a dela, com aquele sorriso tranquilo que sempre carregava.
— Bora, levanta logo.
Ele hesitou por um segundo, depois segurou firme.
O som do impacto ecoou entre os dois, seguido pelo puxão que o trouxe de volta aos pés.
— Você tá melhorando, sabia? Só precisa aprender a ler os movimentos do adversário e… planejar. — O tom dela era firme, mas havia um toque de carinho ali. Bruce absorveu as palavras como fazia desde pequeno. Ela sempre sabia o que ele precisava ouvir, mesmo quando isso não era o que ele queria.
Planejar. Bruce nunca fora um estrategista. Ele confiava nos músculos, no instinto.
E, nisso, ele era imbatível.
Entre os Homens Lagartos, sua força física era quase lendária, fruto de anos de dedicação e treinamento incansável. Mas não bastava. Sua irmã provava isso toda vez que cruzavam lâminas.
Ela não era tão mais fraca que ele — na verdade, ninguém ousaria chamá-la de fraca. Seus golpes tinham a força de um furacão, capazes de lançar até os machos mais robustos para longe. Mas onde Bruce tinha força, ela tinha cérebro.
Cada movimento dela era calculado, pensado com a precisão de um mestre enxadrista. Conhecer Bruce desde o nascimento ajudava; ela sabia como ele pensava, suas manias, suas fraquezas. Era como lutar contra o reflexo no espelho.
Bruce era um diamante bruto. Com os anos de treinamento pesado sob a supervisão da irmã, ele já havia superado muitos dos guerreiros da tribo, machos ou fêmeas.
Mas isso não bastava para ele. Não enquanto não fosse o melhor. Esse desejo ardente, ele sabia, vinha dela. Era quase hereditário, como um traço de família. Ambos queriam ser os mais fortes, e nenhum dos dois descansaria enquanto esse objetivo não fosse alcançado.
— O que foi aquele soco giratório? Tá treinando pra virar pugilista agora? — Bruce agachou próximo ao rio, enfiando as mãos na água gelada e limpando o rosto.
— Mais opções nunca são demais, né? Você confia tanto nessas adagas que esquece de variar. — Ela cruzou os braços, um sorriso de canto. — Pelo menos tá começando a dar chutes agora.
— E você, socos.
Ambos riram. Ela se juntou a ele na beira do rio, agachando-se ao lado. Na superfície cristalina, os reflexos dos dois pareciam quase perfeitos.
— E então? Já pensou no que falei? — A mudança no tom foi sutil, mas suficiente para fazer Bruce franzir a testa.
— Ainda não… Não sei se tô pronto pra isso.
Ela suspirou, olhando fixamente para ele.
— Você acha mesmo que não tá?
Dias atrás, um grupo de humanos havia atravessado a floresta da Tribo dos Homens Lagartos.
Não foram hostis — ao contrário, vieram com palavras, não armas. O mensageiro, em sua armadura brilhante, tinha feito uma proposta: uma aliança.
“Enviem 100 de seus guerreiros para servirem ao nosso rei. Em troca, recompensaremos a tribo por cada façanha realizada.”
Era uma oferta simples e, ao mesmo tempo, complexa. Bruce sabia o peso daquilo. Para ele, era uma oportunidade de sair, explorar o mundo além das árvores densas da floresta. Conhecer o que os mais velhos chamavam de “o outro lado”. Mas havia a tribo.
Ele não podia simplesmente virar as costas e partir.
Naturalmente, todos sabiam que um Homem Lagarto equivalia à força de cinco humanos treinados. Seus corpos eram maiores, mais fortes e projetados para o combate.
Além disso, possuíam uma regeneração impressionante, superior à de qualquer humano. Um Homem Lagarto podia, inclusive, recuperar um membro decepado com o tempo.
Os rumores que se espalhavam entre as outras espécies diziam que a única maneira infalível de matá-los era destruindo seu coração. Desde que o órgão continuasse batendo, eles poderiam regenerar até a cabeça e o cérebro, voltando à vida como se nada tivesse acontecido.
Para Bruce, essa proposta dos humanos parecia uma oportunidade. Ele sonhava em sair da floresta, explorar o mundo além das árvores densas e ao mesmo tempo trazer benefícios para sua tribo.
A mentalidade coletiva dos Homens Lagartos fazia deles guerreiros altruístas — morrer pelo bem do grupo não era visto como sacrifício, mas como honra. Ainda assim, Bruce não estava confiante.
Deixar a tribo para trás não era uma decisão fácil. Se algo acontecesse enquanto ele estivesse fora, quantas vidas seriam perdidas? Quantas crianças ficariam sem proteção?
— Os humanos pediram 50 machos e 50 fêmeas. E a maioria dos voluntários são machos. Tá achando que, se você for, algo de ruim pode acontecer com a tribo, né? — A voz de sua irmã interrompeu seus pensamentos. Bruce virou-se para encará-la, surpreso. Era como se ela tivesse lido sua mente.
— É… também acho isso. A tribo não tem tantos guerreiros assim. Mandar uma boa parte deles para trabalhar para os humanos vai enfraquecer nossa defesa.
— Não tá errado. — Ela cruzou os braços, pensativa.
A tribo dos Homens Lagartos contava com 825 membros. Desses, 112 eram crianças, 320 eram machos e o restante, fêmeas. Perder 50 machos significaria uma redução significativa na força defensiva, especialmente considerando que os machos eram fisicamente mais fortes.
Embora as fêmeas também fossem guerreiras formidáveis, reconhecidas por sua habilidade e inteligência em combate, o impacto da ausência masculina seria difícil de ignorar.
Fazia anos que a tribo não enfrentava uma ameaça real. Anos de paz, mas que poderiam acabar a qualquer momento. Esse pensamento apertava o peito de Bruce.
— Não vou ficar colocando minhas ideias na sua cabeça. Mas saiba de uma coisa: se você decidir ir, nada vai acontecer com a tribo enquanto eu estiver aqui. Entendeu?
Bruce levantou o olhar para ela. Era sério, direto, quase desafiador.
— Nunca vou deixar que a casa dos nossos pais seja destruída. Se quiser ir explorar esse mundo enorme que eles nunca puderam conhecer, vai. Eu seguro as pontas.
Ela se levantou, pousando a mão na cabeça dele como costumava fazer quando eram crianças.
— Então pensa direito, seu idiota. — O tom era de brincadeira, mas o sorriso carregava algo mais profundo.
Com isso, ela virou as costas e foi embora, deixando Bruce sentado à beira do rio. Ele ficou ali por um tempo, o som da água correndo embalando seus pensamentos.
O mundo lá fora chamava por ele. Mas as raízes da floresta ainda o seguravam.
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