Índice de Capítulo

    O Reino das Quatro Torres era famoso por suas construções grandiosas — as mesmas que lhe deram nome. Quatro torres imponentes, erguidas em um quadrado perfeito, guardavam o coração da cidade, suas silhuetas recortando o céu como sentinelas eternas. Fundidas às muralhas de pedra que protegiam a capital, eram o símbolo máximo da força e da elegância do lugar.

    Viajantes de todos os cantos vinham até ali em busca de beleza, tranquilidade e inspiração. Mas quem realmente entendia o espírito do Reino sabia: sua alma não estava nas pedras nem nas torres, mas na estrada — na jornada de quem ousava sonhar alto.

    Todos os dias, novos aventureiros cruzavam os portões, famintos por glória, fortuna e histórias dignas de canções. O Reino das Quatro Torres não era apenas um ponto no mapa — era um chamado para os bravos, um legado vivo deixado por um grupo de pioneiros que, há cinquenta anos, ousou ir além do conhecido. Eles exploraram terras perigosas, enfrentaram o impossível e voltaram com saber e riquezas que mudaram o continente. Seus nomes viraram lenda.

    Foi esse grupo que fundou a primeira Guilda de Aventureiros: a Guilda Avós de Prata. Localizada no coração da capital, ela era muito mais do que um ponto de encontro. Era o centro nervoso da aventura. Ali se reuniam guerreiros, magos, exploradores, estudiosos. De caçadas a feras selvagens a expedições em ruínas esquecidas, era de lá que partiam os que moldavam o futuro.

    Para Saito, um jovem de cabelos curtos e olhar determinado, a Guilda era mais do que um simples começo — era o caminho para dois destinos entrelaçados: se tornar um herói e descobrir o que aconteceu com seu avô.

    Fazia três anos desde a missão da qual o velho não voltou. Nunca antes ele havia falhado em retornar. Suas histórias, sempre recheadas de perigos e descobertas, moldaram a infância de Saito, acendendo nele o desejo de seguir os mesmos passos — e, se possível, ir ainda mais longe. Ele não queria apenas repetir a jornada do avô. Queria superá-la.

    Desde cedo, Saito se dedicou ao máximo. Estudou mapas antigos, treinou com a espada, forjou um corpo resistente às provações do mundo. Apesar de vir de uma família rica, recusou qualquer privilégio. Preferia aprender do jeito certo, com suor e luta, não com facilidades. Escolheu começar do básico, sem luxo nem ostentação.

    Vestia uma túnica e calças brancas, por cima das quais usava uma armadura de couro simples e uma cota de malha modesta. Sua espada curta era funcional, sem enfeites, feita para lutar, não para impressionar. No cinto, levava uma adaga afiada, uma bússola confiável e uma mochila leve, pensada para não atrapalhar os movimentos.

    Naquela manhã, vestiu seu traje pela 67ª vez. O peso, o encaixe, tudo já lhe era familiar. Ajustou a alça da mochila, respirou fundo e sentiu novamente aquele velho misto de nervosismo e empolgação.

    O mundo além das muralhas era imenso, perigoso e imprevisível.

    Mas era exatamente isso que fazia tudo valer a pena.

    Apesar de o desejo de se tornar aventureiro já ser intenso por si só, o que realmente movia Saito era algo mais profundo: a busca pela verdade sobre o desaparecimento de seu avô. Com esse propósito cravado na alma, ele cruzou as portas da Guilda dos Avós de Prata com o coração acelerado, sentindo que aquele momento marcava o começo de um novo capítulo em sua vida. Finalmente, depois de anos de treino e espera, ele tinha idade para se alistar.

    Era meio da tarde. O salão principal da Guilda ainda fervilhava com a movimentação de aventureiros em conversas, trocas de informações e reuniões rápidas, mas a área de registro estava relativamente tranquila. A Guilda dos Avós de Prata era um lugar imenso, dividido em três grandes setores, cada um com um propósito bem definido.

    O primeiro era o Salão Principal — o coração da construção e a primeira visão de quem entrava. O ambiente era acolhedor, com tapetes verdes sobre o chão polido e móveis robustos de madeira escura espalhados em pontos estratégicos. À direita, um grande quadro de missões exibia anúncios para todos os gostos: de caçadas a criaturas perigosas até explorações em ruínas antigas.

    O segundo setor, à direita do salão, era um restaurante e bar. A Guilda percebeu cedo que seus membros gastavam boa parte de seus ganhos em tavernas da cidade. Então, por que não manter tudo dentro de casa? A ideia deu tão certo que o lugar virou o ponto mais movimentado da sede — fomentando amizades, rivalidades e, claro, mantendo os lucros circulando ali mesmo.

    E com essa prosperidade, veio o terceiro setor: a Sala de Entretenimento, à esquerda do salão. Era o espaço onde os aventureiros relaxavam após missões exaustivas, jogando cartas, xadrez, ou curtindo apresentações de trovadores e músicos nas noites mais animadas.

    A Guilda dos Avós de Prata era mais do que um quartel para guerreiros e magos — era um lar. Um lugar onde a coragem, a magia e a convivência moldavam destinos.

    Saito esperou na fila até ser chamado. Quando chegou sua vez, avançou com postura firme, quase instintivamente.

    — Boa tarde! Gostaria de me alistar como aventureiro

    A atendente, uma jovem de cabelos castanhos presos em um coque simples, ergueu os olhos com surpresa, pegando o entusiasmo dele de cheio.

    — B-boa tarde! Você está bem animado, hein?

    Saito piscou, percebendo que talvez tivesse exagerado. Deu um sorriso tímido.

    — Ah… perdão. É que esperei por esse momento durante tanto tempo…

    Ela deu uma risadinha, relaxando um pouco.

    — Não tem problema. Muitos chegam aqui com esse brilho no olhar. É sempre bom ver gente com garra. Já realizou os testes obrigatórios?

    Saito assentiu rapidamente e puxou uma pasta de couro dobrada com cuidado da mochila.

    — Sim. Aqui estão meus documentos de recomendação.

    Ela pegou a pasta e começou a analisar os papéis com atenção. Tornar-se aventureiro não era tão simples quanto se inscrever — era preciso passar por três testes fundamentais.

    O primeiro era teórico: leitura, escrita, interpretação, conhecimentos gerais. Era essencial que um aventureiro soubesse ler mapas, entender contratos e, principalmente, não se perder em território hostil.

    O segundo teste era físico, adaptado ao estilo de cada candidato. No caso de Saito, envolveu uma demonstração prática com sua espada curta de lâmina dupla. A prova exigia precisão, resistência e técnica. Ele saiu de lá suado, arranhado, mas aprovado.

    O terceiro teste era o mais imprevisível: uma avaliação de habilidades especiais. Nem todos precisavam ter uma, mas quem mostrasse domínio sobre algum dom ou elemento natural ganhava pontos extras — e acesso a missões mais complexas. Saito tinha uma afinidade básica com o elemento terra, e passou anos desenvolvendo uma técnica própria. Era eficaz, mas limitada: conseguia usá-la no máximo duas vezes por dia antes de ficar esgotado. Foi, sem dúvida, sua prova mais difícil.

    Agora, diante do balcão, ele observava atento enquanto a recepcionista analisava cada página. Por fim, ela ergueu os olhos, sorriu e devolveu os documentos com cuidado.

    — Tudo certo, está tudo verificado 

    Disse a recepcionista, entregando a Saito um pequeno broche de bronze.

    Ele o pegou com cuidado, passando os dedos sobre o metal frio, como se quisesse gravar aquele instante na memória. Sentia o peso simbólico do objeto como algo muito maior do que o próprio tamanho sugeria.

    — Esse é o distintivo da categoria, certo? 

    — Exatamente. Vejo que já conhece o básico da Guilda 

    — Sei que existem quatro categorias: bronze, prata, ouro e platina. Já ouvi falar dos emblemas, mas essa é a primeira vez que tenho um de verdade nas mãos.

    Ela pareceu satisfeita com o que ouviu.

    — Isso mesmo. A categoria bronze é o ponto de partida. Conforme você for cumprindo missões e acumulando experiência, pode ser convocado para uma avaliação. Nela, os mestres da Guilda analisam suas conquistas, habilidades e comportamento em campo. Se julgarem que você está pronto, você sobe de categoria. Algumas missões mais perigosas exigem um ranque maior — e subir é essencial pra alcançar as melhores oportunidades.

    Saito apertou o broche com firmeza na mão. Aquele pequeno pedaço de metal não era só uma identificação — era o começo de tudo. O primeiro passo rumo ao futuro que ele sonhava desde criança.

    — Entendi. Pode me indicar uma missão adequada ao meu nível?

    Ele sabia que tinha muito a aprender. Embora sua ambição o levasse a querer encarar grandes desafios, também carregava consigo a paciência que herdou do avô — o mesmo que costumava dizer que o verdadeiro sucesso não vinha da pressa, mas da preparação.

    A recepcionista se virou para o grande quadro de missões e analisou os pergaminhos ali presos. Após alguns segundos, destacou um e entregou a ele.

    — Aqui está. É uma missão simples, perfeita para quem está começando. Vai te ajudar a se familiarizar com o sistema da Guilda e a ganhar alguma experiência antes de encarar coisas maiores.

    Saito recebeu o pergaminho e passou os dedos sobre o selo de cera.

    — Muito obrigado. Vou dar o meu melhor.

    Seu coração batia acelerado com a expectativa. Aquela missão, por mais modesta que fosse, era o início real de sua jornada.

    O pequeno broche de bronze em sua mão podia parecer comum para muitos, mas para Saito, ele era um símbolo de promessas, desafios… e de um legado que ele estava prestes a construir com as próprias mãos.

    ⧫⧫⧫

    Durante duas semanas seguidas, Saito mergulhou de cabeça em missões simples — aquelas que dava pra fazer sozinho, sem depender de ninguém. Eram tarefas básicas, sim, mas ainda exigiam esforço, foco e uma boa dose de resistência. Coletar ervas nas florestas próximas ao reino, caçar lobos cinzentos… nada glamuroso, mas essencial.

    As partes dos lobos eram valiosas: o pelo servia pra fazer roupas resistentes ao frio, e os dentes, duros como aço, viravam lâminas leves e afiadas. Armas perfeitas pra quem priorizava agilidade na hora do combate. Ferreiros experientes sabiam transformar esses materiais em verdadeiras joias de guerra.

    Ao final dessas duas semanas intensas, Saito havia completado nada menos que trinta e duas missões de rank Bronze. Um feito impressionante — e a Guilda notou.

    Era raro, pra não dizer inédito, ver um novato com esse tipo de dedicação. E o mais curioso: ele fazia tudo sozinho. Seu ritmo era fora do comum. Muitas vezes, voltava de uma missão, pegava a recompensa e já saía com outra em mãos. Chegou a realizar cinco tarefas num único dia. A recepcionista, preocupada, começou a se perguntar se ele tinha perdido o juízo.

    “Será que esse moleque é doido?” cochichavam uns. 

    “Deve ter algum parafuso solto…” diziam outros.

    Mas, de um jeito ou de outro, seu nome começou a circular pelos corredores da Guilda. Ainda não era famoso, mas já chamava atenção. O problema é que nem todos gostavam disso.

    Outros novatos começaram a vê-lo como um estorvo. Reclamavam que ele “roubava” as missões mais fáceis e esgotava as opções semanais. A competitividade aumentou e, com ela, veio o apelido “carinhoso”: Novato Rapa-Tudo.

    Saito não ligava. Tinha um objetivo claro na mente e não deixaria fofocas ou apelidos idiotas atrapalharem seu caminho.

    Alguns chegaram a desconfiar de trapaça. Diziam que ele escondia seu verdadeiro poder pra continuar no rank Bronze, quando já deveria estar em um nível bem mais alto. Teorias malucas surgiam a todo momento.

    Mas a verdade era bem mais simples.

    Saito não era um prodígio do combate, nem tinha uma força sobrenatural. Era apenas inteligente, metódico e bem treinado. Conhecia o território, estudava os monstros e planejava cada passo com cuidado. Desde cedo, soube que não nascera com um talento excepcional pra batalha. Cresceu em uma família rica, teve bons tutores, bons mestres… mas nunca brilhou. Era, no máximo, alguém comum.

    E foi justamente essa consciência que o forjou. Ele sabia que, se quisesse se destacar, teria que suar mais que os outros — compensar na mente o que não tinha nos músculos.

    Enquanto os outros apostavam tudo na força da espada, Saito fazia do conhecimento sua melhor arma.

    Mesmo assim, Saito não deixava aquilo abatê-lo.

    Se não tinha a força de um titã ou a velocidade de um raio, focaria naquilo que podia realmente dominar: estratégia e conhecimento.

    Durante anos, treinou o corpo pra aguentar as provações da vida de aventureiro, ao mesmo tempo em que mergulhava nos estudos. Aprendeu a ler mapas com precisão, identificar trilhas escondidas, entender os hábitos das feras que enfrentaria e montar armadilhas eficazes. Enquanto outros partiam pra cima sem pensar, ele enganava, atraía os inimigos pra armadilhas, os fazia cair nos próprios erros.

    Sabia atalhos que poucos conheciam, passagens secretas que encurtavam o caminho e o ajudavam a cumprir missões em tempo recorde.

    Mas, no fim das contas, ainda era humano — e humanos erram.

    Na missão mais recente, algo saiu errado. Acabou ferido. Não foi nada fatal, mas o corte no braço era sério o bastante pra precisar de cuidados. Depois de aplicar unguentos e se enfaixar, o curandeiro recomendou: pelo menos três dias de descanso.

    Naquela noite, Saito voltou pra casa mancando levemente, o braço enfaixado. Encontrou os pais na sala. Assim que o viram, levantaram num pulo, cheios de perguntas.

    O pai já se aproximava dos cinquenta. Não era um guerreiro, mas também não parecia frágil. A barba cheia e bem aparada dava a ele um ar sério, até um pouco intimidador à primeira vista. Mas Saito sabia que aquilo era só fachada. Por trás daquela expressão austera, havia um homem que se importava profundamente, mesmo que não soubesse demonstrar isso com palavras. Seus gestos, por mais desajeitados, sempre carregavam cuidado.

    A mãe, por outro lado, parecia saída de um baile da realeza. Tinha pouco mais de trinta anos, longos cabelos negros, pele impecável e uma elegância natural. Usava vestidos refinados, joias discretas e acessórios que ressaltavam sua beleza. Era impossível não notá-la ao entrar em um cômodo. E, de fato, ela era uma dama da nobreza.

    Filha de um nobre influente, fora prometida ao pai de Saito anos antes, quando ele ainda estava construindo seu império como comerciante. O avô materno enxergou potencial no jovem negociante e, com um aperto de mãos, selou o destino da filha mais nova.

    O casamento foi arranjado rápido, e tudo indicava que a mãe de Saito aceitou de bom grado. Talvez ela preferisse mesmo um homem mais velho, centrado e promissor, do que os nobres mimados que conhecia na corte.

    Desde então, a família prosperou. Viviam em uma casa confortável na capital, com tudo o que precisavam — e mais. O pai havia construído uma vida sólida, segura, com estabilidade e prestígio. Havia, claramente, um caminho fácil à disposição de Saito.

    Mas ele nunca quis esse caminho.

    Agora, encarando os olhares aflitos dos pais, já sabia que aquela seria mais uma noite de explicações.

    O que mais pesava em seu coração não era a dor do ferimento — era o cuidado excessivo. Por mais que já tivesse explicado mil vezes o porquê de sua escolha, toda vez que voltava machucado era como se eles revivessem a mesma preocupação de antes.

    Eles sabiam que sua decisão não havia sido puramente pessoal. Muito da inspiração vinha de seu avô — cuja ausência ainda deixava um buraco na família. Ainda assim, mesmo com o medo constante, seus pais nunca tentaram impedi-lo. Sempre o apoiaram como podiam. Mas Saito via nos olhos do pai a esperança silenciosa de que, um dia, ele desistisse da aventura e assumisse os negócios da família.

    Mas isso nunca esteve nos planos dele.

    A ideia de passar a vida atrás de uma mesa, comandando negociações e lidando com números… aquilo o sufocava. Ele queria algo mais. Queria sentir o mundo pulsando sob seus pés, explorar o desconhecido, encontrar artefatos esquecidos e escrever seu nome na história com as próprias mãos. Sonhava em viver histórias épicas, forjar laços verdadeiros sob pressão e pisar em terras que poucos ousaram alcançar.

    Mas Saito ainda estava longe do que sonhava alcançar.

    Como aventureiro de rank bronze, sua rotina era bem mais comum do que gostaria. A tal “aventura” muitas vezes se resumia a caçadas de animais selvagens e tarefas básicas para vilarejos distantes. Ele não queria ser só mais um caçador de monstros—queria conhecer o mundo. Mas sabia que missões grandes e emocionantes não caíam no colo de novatos. Pra realizar seus sonhos, antes precisava subir na hierarquia da Guilda. E estava com sede disso.

    Durante os três dias de repouso forçado, Saito soube equilibrar bem o tempo: descansava o corpo e mantinha a mente ativa. Lia, revisava mapas, treinava estratégia. Queria estar pronto quando voltasse à ativa.

    Na noite anterior ao seu retorno, no entanto, seu pai o chamou pra conversar.

    Sirius estava mais sério do que o normal.

    Sentaram-se à mesa da sala. Saito, que conhecia bem os sinais de nervosismo do pai, percebeu de cara que havia algo estranho. Os gestos estavam hesitantes, como se ele estivesse tentando parecer tranquilo, mas não conseguia esconder o desconforto.

    — Pai, tá tudo bem?

    Sirius era um homem de presença forte. Ombros largos, postura firme, e aquele olhar que sempre passava confiança. O cabelo, antes negro, já exibia fios grisalhos aqui e ali. Era um comerciante respeitado, e fazia questão de cuidar da aparência—sabia que, nos negócios, imagem também é poder.

    Mas naquela noite… seu cabelo estava meio bagunçado. Um pequeno detalhe, mas que não passou despercebido por Saito. Aquilo não era um bom sinal.

    — Saito… isso… hm… 

    Sirius começou, mas travou. Tentava falar, mas parava no meio, escolhendo com cuidado cada palavra.

    — Seja o que for, pode falar. Se eu puder ajudar, vou ajudar. 

    Sirius piscou, surpreso com a maturidade da resposta. Um sorriso sincero, raro, se formou em seus lábios.

    — Quando foi que você virou um homem, hein?

    Saito riu, meio sem jeito.

    — Pai… sempre fui, você que não percebeu.

    O comentário arrancou uma risada leve de Sirius. Aliviado, ele finalmente falou o que tinha pra dizer.

    — Sua mãe está grávida.

    Silêncio.

    Saito piscou algumas vezes. Tentando digerir.

    Ia ter um irmão. Ou uma irmãzinha.

    Sentiu um turbilhão por dentro—alegria, surpresa, e um pouco de preocupação também. Já dava pra imaginar onde aquela conversa ia parar.

    E não demorou.

    Sirius ficou sério de novo, apoiou as mãos na mesa e continuou:

    — Com um segundo filho a caminho… e com a idade batendo à porta, chegou a hora de tomar algumas decisões.

    Saito apenas escutava, atento.

    — Não quero que você largue a vida de aventureiro, mas vou precisar de você. Com sua mãe grávida, vou ter que viajar mais pra manter os acordos com os outros reinos. Preciso de alguém de confiança pra tocar os negócios aqui na cidade enquanto eu estiver fora.

    Sirius não queria forçar nada. Conhecia o filho. Sabia que Saito não cedia à pressão. Mas, como chefe da casa, tinha responsabilidades. Precisava garantir que tudo continuasse de pé.

    Saito respirou fundo. Pensou por alguns segundos. Então esticou a mão e colocou-a no ombro do pai.

    — Eu entendo, pai. Sei que você só quer o melhor pra nossa família.

    Sirius o encarou com uma mistura de orgulho e melancolia.

    No fundo, ainda sonhava em ver o filho assumindo os negócios da família, seguindo um caminho mais seguro. Mas também sabia que Saito já tinha escolhido sua estrada. E não havia argumento que o fizesse mudar de ideia.

    O olhar firme de Saito, aquela determinação que parecia inabalável… tudo aquilo lembrava Sirius de alguém.

    De seu próprio pai.

    Um homem com quem ainda carregava uma certa mágoa mal resolvida. Mesmo depois dos sessenta e cinco, o velho nunca largou a vida de aventureiro. Já poderia estar aposentado, vivendo uma vida tranquila, com a pensão de veterano garantida pelo governo. Mas recusava. Sempre dizia que ainda havia lugares para explorar, histórias a viver.

    Era como olhar para um espelho do passado. E agora, vendo Saito ali na sua frente, Sirius entendia um pouco mais do próprio pai.

    Sirius sabia que suas habilidades já não eram mais as mesmas de antes. Mesmo assim, insistia. Continuava aceitando missões perigosas, desafiando a própria sorte como se o tempo não tivesse passado, como se ainda fosse o mesmo jovem destemido de outrora.

    E foi numa dessas missões que ele desapareceu.

    O corpo nunca foi encontrado. Mas quem tem um aventureiro na família sabe: quando o silêncio se arrasta por tempo demais, a ausência vira luto. O mundo lá fora não perdoa, e aqueles que não voltam acabam virando apenas memórias nas histórias contadas por quem ficou.

    Sirius se orgulhava do pai e do legado que ele deixou. Era um nome respeitado em toda Grão-Vermelho, a capital onde a família nasceu e cresceu. Mas esse orgulho não bastava pra aliviar o medo que apertava seu peito toda vez que olhava para Saito e enxergava nele aquela mesma chama indomável. A mesma vontade de viver perigosamente, de seguir um destino incerto. A mesma que, talvez, tivesse consumido seu próprio pai.

    Ainda assim, nunca tentou impedir o filho de seguir os próprios sonhos.

    — Dois dias na semana já ajudariam? Por enquanto, é o que consigo oferecer. Preciso continuar pegando missões todos os dias, ganhar experiência, construir meu nome. Quero subir nos ranks da Guilda, me sustentar por conta própria. Não quero depender de vocês.

    A vida de um aventureiro era tudo menos fácil.

    Saito entendeu isso logo nas primeiras missões de rank bronze. As recompensas eram baixas—mal davam pra comprar comida pra um ou dois dias. E se tivesse que pagar hospedagem também, o lucro sumia quase por completo.

    A única razão de não estar passando fome era o conforto que sua família lhe dava. Mas, se quisesse mesmo andar com as próprias pernas, precisava subir na Guilda, pegar trabalhos melhores, missões mais sérias—talvez até chegar ao ponto de comprar uma casa e viver bem entre uma aventura e outra.

    — Posso te pagar um salário por esses dois dias, filho. 

    Mas Saito balançou a cabeça, recusando de imediato.

    — Não precisa. Quero ajudar com o comércio porque me importo. Não por dinheiro. Se eu aceitar ser pago por isso, vira trabalho… e não é com isso que eu quero viver.

    Sirius abaixou o olhar por um momento. Aquilo doía. Queria vê-lo ao seu lado, herdando os negócios da família, mantendo tudo que ele construiu. Mas sabia que não adiantava forçar nada.

    Saito já tinha feito sua escolha. E como pai, tudo que podia fazer agora… era apoiar.

    — Está bem, filho… Dois dias já vão ajudar bastante.

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