Capítulo 87: Eco de Vidas Salvas.
No alçapão de abate, um inferno particular se desenrolava. A sala era um poço de morte viva, esqueletos reanimados, monstros sem fim, o cheiro podre da decadência mágica impregnando o ar. Era ali que os restos do exército do Condado Morales lutavam, resistindo a cada segundo como uma vela diante de um furacão.
Lívia, a maga cavaleira, arfava. Seu corpo estava coberto de cortes, seu cabelo colado à testa pelo suor, e suas vestes estavam em frangalhos, tingidas de vermelho. Cada feitiço lançado parecia exigir mais do que ela podia oferecer.
— Estamos sendo encurralados… — disse entre dentes, enquanto uma rajada de vento conjurada com pura força de vontade empurrava uma horda de esqueletos para trás, apenas para vê-los se erguem novamente dos próprios ossos partidos.
Priscila, a General de armadura manchada e espada trincada, cerrou os dentes. Não queria admitir, mas o fim os rondava. Dos cinquenta soldados que caíram com elas no labirinto, apenas dez ainda estavam de pé… e mesmo esses, cambaleavam como sombras prestes a se apagar.
— Se este for meu túmulo… — disse ela, erguendo a espada com as duas mãos. — Que seja. Prefiro cravar minha lâmina aqui, num abismo longe da luz do sol, do que cair de joelhos.
O chão tremeu.
Não como antes, não como um ataque ou feitiço. Era como se o próprio labirinto estivesse… ofegante. Um terremoto profundo percorreu as paredes. Estalidos, como ossos se partindo, ecoaram em todas as direções. O som agudo, metálico, quase sobrenatural, um zumbido constante que existia desde o momento em que caíram ali, foi se desfazendo no ar. Evaporando.
Silêncio.
Os monstros pararam.
Os esqueletos congelaram onde estavam, como marionetes sem mestre… e então, sem aviso, se desfizeram. Pó negro, como cinzas dançantes, flutuou pelo ar até desaparecer. Tudo ficou quieto.
— O que…? — murmurou um dos soldados, ajoelhado, sem entender.
Lívia arregalou os olhos. A mana no ar havia mudado. Como se a essência do próprio labirinto estivesse se esvaindo.
— General… — disse ela, ofegante. — O núcleo…!
Priscila olhou ao redor, incrédula.
— O quê?!
— O núcleo do labirinto! — repetiu Lívia, quase sem acreditar. — Ele… foi silenciado.
Priscila hesitou. Seus olhos estavam fixos nas ruínas à frente, onde o combate cessava como um sonho ruim sendo apagado da realidade.
— Alguém… parou o núcleo? — sua voz saiu como um sussurro incrédulo. — Isso… isso não é possível. Esse lugar é o núcleo. Quem… quem teria poder pra parar algo assim?
A pergunta ficou no ar como uma névoa densa.
Então, dos lábios trêmulos de Lívia, uma única palavra escapou, carregada de uma certeza silenciosa.
— Renier…
E naquele instante, no fundo da caverna, onde antes só havia desespero, uma nova fagulha se acendeu, a esperança.
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Renier suspirou profundamente, o eco de sua respiração ressoando como trovão contido nas entranhas do labirinto agora silenciado. A carcaça da Rainha Aranha jazia em ruínas atrás dele, seus membros contorcidos e retorcidos como os fios de uma teia finalmente cortada. O núcleo mágico que pulsava no centro do labirinto agora vibrava em harmonia com a energia dele, e de mais ninguém.
— O labirinto agora é meu… — murmurou, a voz carregada de uma serenidade fria, cósmica.
Seus olhos brilharam em azul intenso, como estrelas presas em carne viva, e diante desse olhar, os corredores do labirinto começaram a se mover. Como peças de um cubo mágico colossal… o lugar se retorcia, se rearranjava ao toque invisível da vontade de Renier.
Passagens foram abertas. Portas outrora seladas se escancararam com um estalo místico. Escadarias surgiram do chão, trilhas formaram-se nas paredes. O caminho até a superfície agora era claro, e sem monstros para obstruí-lo, seria uma marcha rápida, quase trivial. Quase… irônico.
— Dezessete… — contou ele em voz baixa, enquanto sentia a presença de cada sobrevivente. — Apenas dezessete… de tantos.
Seus dedos deslizaram pelo ar como maestro de uma sinfonia sombria. Os pontos de energia no labirinto brilhavam como constelações espalhadas num céu de pedra e sangue. O Alçapão do Abate, um nome mórbido e, agora, mais do que apropriado, chamava sua atenção. O círculo de invocação ali havia sido o berço de um ritual profano, desenhado para dar à luz a Calamidade. Mas com o núcleo sob o controle dele, o ritual estava… morto.
— Morto, como deveria estar. — rosnou ele com desdém.
E, mesmo assim, algo incomodava. Um ruído invisível na partitura perfeita que ele havia assumido. Renier estreitou os olhos, sua visão mágica percorrendo as profundezas do labirinto com precisão de caçador. Ele buscava aquele ser… o falso padre. Aquele que havia orquestrado tudo nas sombras, vestido de fé corrompida, tentando trazer um apocalipse à superfície. O responsável por todo aquele caos.
Mas não havia sinal dele.
Nada. Nem rastro, nem corpo.
— Fugiu… — murmurou, os olhos faiscando com raiva contida. — Após tudo isso… fugiu como um rato quando a luz invade o porão. Patético.
Renier apertou os punhos com força, sentindo o calor pulsante da raiva e da impotência. Mas logo soltou.
Aquele monstro, o falso sacerdote, o arquiteto do caos, havia escapado por entre os dedos, como sombra fugidia. Ainda assim, não havia mais nada que ele pudesse fazer ali dentro. Não agora. Não sob sua vigília.
Virou-se, deixando o altar para trás, seus passos ecoando pesados pela pedra viva. O núcleo jazia sob seu domínio, e ele fez da porta da Sala do Chefe a nova passagem para a superfície. Uma saída. Um renascimento. Uma libertação.
Mas não para ele.
“Isso é merecido… mas não por mim”, pensou, enquanto seu olhar percorria os corpos caídos de seus companheiros, Luna, Mila, Liza… assim como Lhian que se juntou ao grupo caido em luto.
Estavam vivos, feridos, exaustos, mas ali. Uma vitória? Talvez. Mas cada respiração pesada, cada ferida aberta, cada lágrima contida carregava um preço.
Seus olhos recaíram sobre a manta vermelha nos braços de Mila, desbotada, rasgada, mas carregada de significado. Um símbolo. Um legado. Algo precioso demais para ser ignorado. Algo digno de ser protegido, mesmo à custa da própria vida.
Renier caminhou, o peso do mundo nos ombros, até alcançar Luna e Mila. Sem palavras ensaiadas, sem gestos heroicos.
Apenas se abaixou e as abraçou, forte, apertado, como se quisesse garantir que ainda estavam ali, que ainda respiravam. O gesto pegou ambas desprevenidas.
Mila corou, o rosto sujo de sangue e suor enrubesceu em meio ao cansaço. — R-Renier…?
Ele não respondeu de imediato. Seus braços envolviam ambas com uma ternura inesperada. Não era o guerreiro, nem o deus, nem o demônio.
Era apenas Renier, e por um breve instante, aquele toque carregava a doçura silenciosa de Yggdrasil.
— Vocês foram incríveis — disse ele, num tom calmo, quase sussurrado. Seus dedos acariciaram com cuidado os cabelos das duas.
Luna arregalou os olhos, o coração pulsando descompassado com o toque delicado. Tentou conter as lágrimas. Falhou. E Mila também.
— H-heh… isso é óbvio — disse Mila, rindo entre soluços. — A gente foi cuidada pelo melhor, né? Você…
Renier a interrompeu com um sorriso sutil.
— Laim está orgulhoso… eu também estou.
Seus olhos então se voltaram para Liza, sentada contra a parede, pressionando a mão contra o estômago machucado. Ela deu um leve aceno, o rosto endurecido, mas os olhos marejados.
Renier se aproximou um pouco mais, olhando para todos.
— Não precisam chorar. Nem se afogar no luto… Laim morreu como queria: lutando, protegendo, e vencendo. Não perdemos ele em vão.
O silêncio pairou por alguns segundos, denso como neblina. Então Renier concluiu, sua voz mais firme:
— Hoje, nós vencemos. Por ele. Pela vida que ele defendeu. E por isso… devemos comemorar.
Nenhuma palavra precisava ser dita depois disso. Apenas o som dos corações ainda batendo, das respirações pesadas e da esperança, renascida em meio às ruínas.
Continua…
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