Índice de Capítulo

    A madrugada era fria e silenciosa, como se o próprio tempo tivesse prendido a respiração.

    Renier abriu os olhos devagar, acostumando-se com a escuridão suave do quarto. O som do vento batendo levemente na vidraça era o único ruído que preenchia o ambiente. Ao virar o rosto, seus olhos encontraram uma cena tranquila: Liza e Luna dormiam lado a lado na mesma cama, os corpos relaxados pela exaustão.

    Elas estavam profundamente adormecidas. Até demais. Aquele tipo de sono pesado que só vem depois de viver o inferno e sair vivo. Renier percebeu isso sem precisar pensar muito, ele conhecia esse tipo de cansaço.

    Sentou-se lentamente, levando uma das mãos ao ouvido. Entre os dedos, um pequeno dispositivo, o comunicador fornecido pela Organização dos Seres da Noite. Um aperto de botão. Um chiado. Depois, silêncio.

    Nenhuma resposta.

    — Desde que entrei nesse mundo… nada. — murmurou Renier, a voz baixa e áspera.

    Aquilo o incomodava. A OSN sempre foi precisa, meticulosa, eficiente. Mas desde que ele foi enviado para esse mundo estranho, o canal de comunicação permanecia mudo. E isso o deixava com um mau pressentimento.

    Levantando-se com cuidado para não acordar as duas, Renier puxou seu jaleco e o vestiu com um movimento rápido. Calçou as botas e, num gesto ensaiado, puxou o capuz. Como um ritual silencioso, a máscara de kitsune se formou sobre seu rosto, o brilho neon azul iluminando por um breve instante o quarto sombrio.

    Ele olhou uma última vez para Liza e Luna.

    — Esse silêncio… tá começando a fazer barulho demais. — sussurrou, quase como se falasse com o próprio quarto.

    Sabia que precisava agir. Esperar podia ser perigoso. Se a OSN estivesse em risco, ou se algo os estivesse bloqueando… era melhor descobrir antes que a coisa piorasse. O coração da Organização era seu próximo destino.

    Liza e Luna estariam seguras ali. Pelo menos por enquanto. E talvez, só talvez… fosse melhor que não se envolvessem com o que estava por vir.

    Com um último olhar, Renier girou a maçaneta e saiu, desaparecendo no corredor como uma sombra vestida de luz azul.

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    O som do alarme soava como um grito desesperado, ecoando pelas entranhas da base da Organização dos Seres da Noite. Um som agudo, constante, que cortava o silêncio com a urgência de uma tragédia anunciada.

    Renier deu os últimos passos para fora da fenda dimensional que o trouxe até ali. Com um gesto seco da mão, a fenda se fechou atrás dele. Nenhum alívio. Nenhuma segurança. Apenas o peso sufocante da destruição diante de seus olhos.

    O corredor diante dele era um campo de guerra. Sangue escorria pelas paredes brancas como tinta em um quadro retorcido. Corpos, funcionários da OSN, estavam espalhados pelo chão, alguns com expressões congeladas de terror, outros irreconhecíveis.

    Seu olhar, oculto pela máscara de kitsune, era sombrio. Nenhuma palavra de luto. Nenhuma prece. Apenas o silêncio do julgamento.

    — Alguém… passou por aqui. E libertou todos eles. — murmurou, mais para si do que para qualquer ouvido presente.

    As portas de contenção estavam escancaradas. Os selos quebrados. As anomalias… livres.

    A respiração de Renier ficou pesada. Não tinha medo. Era raiva. Preocupação. E algo mais profundo, a certeza de que algo terrivelmente errado havia escapado ao seu controle.

    Sua foice surgiu em sua mão como se tivesse sido chamada por um instinto primal. Ele começou a caminhar, cada passo firme, mas cauteloso. A luz fria dos corredores misturava-se com o vermelho escuro do sangue em padrões quase ritualísticos, guiando-o até o centro da raiz da Yggdrasil.

    Renier parou diante de um terminal de segurança. As câmeras ainda funcionavam. Isso era estranho. O sistema não havia sido destruído… o ataque não foi um simples massacre. Foi calculado.

    Talvez, só talvez, houvesse imagens. Registros. Pistas.

    Sem perder tempo, ele se lançou pelo corredor central. Agora corria. Rápido. Preciso. A cada sala que deixava para trás, mais sinais de horror: laboratórios revirados, documentos queimados, anomalias libertadas. O coração da OSN estava sendo dilacerado de dentro.

    — Administradora… Dra. Jennifer… por favor… — sussurrou ele, quase numa prece.

    A OSN era a muralha entre os mundos e o colapso. Ela registrava e continha seres capazes de distorcer o próprio tecido da existência. Se a base caiu… se os registros foram violados… então o próprio equilíbrio dos mundos poderia estar por um fio.

    Renier apertou os punhos. O medo não era seu. Era pelo que poderia acontecer se ele não detivesse isso a tempo.

    “Quem fez isso?” pensava. “Como chegaram até aqui sem que eu sentisse nada?”

    Era impossível. A raiz da Yggdrasil era protegida por barreiras naturais que nem mesmo entidades supremas atravessariam sem causar distúrbios detectáveis. Mas alguém não só atravessou… como destruiu tudo.

    E o pior? Renier não sentiu nada.

    Ele não corria mais por respostas. Corria por sobreviventes.

    Renier atravessou as portas do núcleo da Organização, o cérebro por trás da contenção, controle e comunicação com os múltiplos mundos ligados às raízes de Yggdrasil. Assim que seus pés tocaram o chão da sala, ele removeu o capuz. A máscara de kitsune dissolveu-se em partículas de energia, revelando um rosto endurecido pela dor.

    Mas o que viu fez seu coração parar.

    Corpos. Mais corpos. Caídos sobre os computadores ainda ativos, como se suas mortes tivessem sido instantâneas, sem tempo para reação. Homens e mulheres que cuidavam dos dados vitais da árvore cósmica… todos mortos.

    E então, ele a viu.

    A cadeira da coordenadora principal, girada para o lado. Um furo limpo no estofado. Dra. Jennifer… ou o que restava dela. Seu corpo jazia imóvel, as serpentes que substituíam seus cabelos pendendo sem vida. Até mesmo elas… mortas. Uma Medusa sem olhar. Um símbolo de poder petrificante agora apenas… frio.

    No chão, ao lado dela, a Administradora.

    A Android. A alma da base. Um buraco em seu peito metálico reluzia como a cicatriz de uma execução. Seus olhos, antes cheios de dados e análise, estavam apagados. A última linha de defesa… destruída.

    Renier caiu de joelhos.

    — Não… Isso não pode estar acontecendo… — murmurou, como se pudesse forçar o mundo a desfazer o que já estava feito.

    A sala estava silenciosa. Exceto pelo zumbido sutil do holograma central da Yggdrasil ainda pulsando, monitorando os mundos como se ignorasse a morte ao seu redor. O contraste era brutal.

    Renier se levantou com esforço. Seus passos foram lentos até os corpos das duas mulheres que, de formas diferentes, haviam lutado para proteger aquele lugar. Ele se agachou diante de Jennifer, fechando-lhe os olhos com cuidado.

    — Desculpa… Eu devia ter chegado antes…

    Ele então encarou a Administradora. Mesmo ela, uma guerreira fria e estratégica, não foi capaz de impedir o que quer que tivesse feito isso. O buraco em seu peito… havia algo perturbadoramente familiar naquela cena.

    Foi então que, como uma resposta direta a seus pensamentos, o monitor principal piscou.

    Uma nova mensagem apareceu. O remetente: Administradora.

    Renier congelou.

    — O quê…? Como…?

    Sem pensar duas vezes, ele clicou.

    A mensagem era simples, direta, no estilo característico da Android: “Conecte o núcleo do sistema ao bracelete de campo. Sincronização necessária.”

    O bracelete tecnológico no braço esquerdo de Renier, presente de sua criadora, parecia pulsar, quase esperando por aquele momento. Com as mãos trêmulas, ele puxou a manga, revelando a porta de conexão. Encontrou o cabo sob a mesa. Conectou.

    O bracelete reagiu de imediato. Um holograma surgiu com uma pergunta:

    “Transferir núcleo do sistema da Organização para dispositivo móvel?”[SIM] / [NÃO]

    — Sim. — disse Renier, sem hesitar.

    As luzes da base começaram a apagar. Uma a uma. Primeiro os monitores. Depois as luzes do teto. O som do alarme cessou. O holograma da árvore de Yggdrasil foi a última a desaparecer, sua luz esvaindo-se como uma estrela morrendo.

    No bracelete, códigos começaram a correr em alta velocidade. Linhas de dados, arquivos, vozes comprimidas, memórias… E então, uma voz.

    — Até que enfim você chegou.

    Era ela. A voz da Administradora. Sintética, porém com emoção suficiente para soar quase humana.

    — Como você… — começou Renier, surpreso. — Você tá… morta?

    — Sim… mas eu sou uma Android, Renier. Quando fui morta, iniciei meu protocolo de emergência. Transferi a minha consciência para o núcleo da Organização. Agora, estou no seu traje e bracelete.

    Renier respirou fundo. Engolindo o nó na garganta.

    — Me explica… quem fez isso? Quem invadiu?

    O tom da Administradora mudou. Ficou seco. Ríspido. Cheio de desprezo.

    — Ela mandou uma mensagem para você.

    — Ela…? Quem?

    Uma breve pausa. Quase como se a própria máquina tivesse hesitado.

    — O Avatar do Vazio. Aquela que você chama de Kyouka Nyami.

    O nome soou como uma sentença.

    Renier travou. A mente dele gritou que não podia ser verdade. Kyouka? Sua Kyouka? A mulher por quem ele havia… se apaixonado? Não uma simples Sombra… mas o Avatar do Vazio? A encarnação do Nada?

    Ela matou todos.

    Sozinha.

    E com uma facilidade que nem mesmo o sistema conseguiu prever.

    Renier sentiu o chão sumir debaixo de si. O mundo girava. O peso da informação o esmagava por dentro. A traição, a perda, o horror… tudo misturado num caos interno.

    Ele não conseguia falar. Só… sentir.

    E aquilo doía mais do que qualquer ferida física.

    Continua…

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