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    Renier estava ali, largado sobre a mesa da estalagem, a cabeça repousando nos braços como se o móvel fosse o último suporte físico que ele ainda tinha.

    Não tinha sono. Nem preguiça. Era aquela inquietação silenciosa que deixa a alma tremendo e a mente girando sem sair do lugar.

    O dispositivo preso em sua orelha chiou levemente. A Administradora, sempre pragmática, rompeu o silêncio:

    — Nada do que aconteceu na Organização foi culpa sua, Renier.

    Palavras jogadas ao vento. Palavras que não colavam no peito dele.

    Sem levantar a cabeça, a voz de Renier saiu abafada, carregada daquele tom amargo de quem já se condenou antes de qualquer julgamento:

    — Kyouka… era minha responsabilidade.

    Ele apertou as mãos sobre a mesa, como se pudesse esmagar o próprio fracasso com a força física.

    — Por minha culpa… várias vidas se perderam naquele lugar — murmurou, deixando a confissão cair pesada no ambiente.

    Um suspiro escapou.

    Como se aquilo fosse tudo o que ele ainda pudesse oferecer.

    — E agora… — continuou, quase num sussurro — com todas aquelas anomalias soltas, nem eu sei o que pode acontecer com aqueles monstros espalhados pela existência…

    Era a verdade nua e crua. Sem tapinha nas costas, sem discurso motivacional barato.

    Era um caos real. E, querendo ou não, ele estava no centro da tempestade.

    Um toque leve no ombro trouxe Renier de volta à realidade, arrancando-o da espiral mental em que tinha se afundado.

    Dessa vez, nada de reação defensiva, nada de magia pronta pra explodir o mundo, só ergueu a cabeça, meio no automático.

    À sua frente, Lívia.

    Nada de túnica de maga, nada daquele ar formal de “feiticeira de manual”. Ela vestia algo casual, simples, quase mundano. O cabelo curto dela deslizou atrás da orelha num gesto rápido, tímido, meio nervoso.

    E, de alguma forma, aquilo parecia certo. Como se o peso que o mundo jogava em cima de Renier diminuísse só um tiquinho.

    — Você está bem? — perguntou ela, a voz suave mas carregada de preocupação sincera.

    Renier respondeu no reflexo, jogando aquele sorriso calmo, profissional, o tipo de sorriso que dizia “tá tudo bem” mesmo que o mundo estivesse desabando na cabeça dele.

    — Bom dia, Lívia — disse, com uma leveza que não sentia de verdade.

    Ela franziu levemente a testa, percebendo, mas respeitando o espaço.

    — Vi você aqui sozinho… imaginei que talvez estivesse preocupado com alguma coisa — comentou, ajeitando a postura, quase como se pedisse desculpas só por perguntar.

    Renier deu de ombros, mantendo o teatro:

    — Não é nada sério. — E, rápido como uma troca de marcha, já puxou outro assunto: — Você precisa de algo? Veio até aqui por algum motivo?

    Lívia bufou, cruzando os braços, numa mistura de irritação fofa e decepção teatral:

    — Você esqueceu? Eu disse que ia visitar você, em agradecimento por ter me salvado!

    Renier soltou uma risada curta, genuína dessa vez, balançando a cabeça como quem reconhece a própria falha.

    — Verdade… você comentou isso. — Seus olhos se perderam por um instante, como se olhassem além dela, além da estalagem, além do agora.

    — É que… — ele voltou o olhar pra Lívia, relaxando os ombros. — Tanta coisa aconteceu desde que cheguei no território dos Morales… acabou ficando difícil focar em pequenos detalhes.

    Era uma desculpa? Mas também era a verdade nua e crua.

    Lívia soltou um suspiro leve, cruzando os braços como quem finge estar ofendida, mas no fundo está só encenando.

    — Você realmente esqueceu que eu disse que viria agradecer? — perguntou, meio emburrada, mas sem perder o brilho no olhar.

    — Aquele dia… quando você me salvou do Wivery. Quando a gente se conheceu.

    Renier riu, passando a mão pela nuca, como quem reconheceu que pisou na bola.

    — Não achei que você fosse levar tão a sério esse tipo de coisa — disse com aquele tom despreocupado, mas ainda gentil.

    Lívia revirou os olhos.

    — É claro que levo a sério. Ainda mais depois do que você fez no labirinto… você salvou todo mundo.

    Aquilo bateu fundo. Ele não comentou nada, mas o olhar vacilou por um segundo. Aquele tipo de lembrança não cicatrizava facilmente.

    Mesmo assim, ele acenou com a cabeça.

    — Talvez… uma pequena mudança de ares me faça bem. — Um respiro. — Tá bom. Aceito o encontro.

    Silêncio.

    A palavra ecoou como uma pedra jogada num lago.

    Encontro.

    Lívia travou por um instante, o rosto corando numa velocidade que desafiava a física.

    Mas, em vez de fugir da palavra, ela simplesmente sorriu, desviando o olhar por um segundo.

    — Então… eu vou te mostrar uns lugares legais. Se você quiser.

    Renier se levantou, com aquele jeito despretensioso de quem não entende a gravidade do que acabou de aceitar.

    — Por mim, qualquer coisa serve — respondeu.

    Ele deu alguns passos até o balcão da estalagem, onde a mãe de Mila organizava umas cestas com frutas recém-chegadas do mercado.

    — Ei, dona Morales. Vou sair pra dar uma volta com a Lívia, tudo bem? Pode avisar as garotas por mim?

    Ela nem olhou pra ele — só soltou um sorrisinho de canto, do tipo “eu vi isso desde o início”.

    — Claro que posso, querido. E aproveita o encontro, viu? — disse, balançando os dedos num aceno brincalhão enquanto os dois passavam pela porta da frente.

    Renier só deu um sorrisinho sem graça.

    Lívia? Estava tentando disfarçar a vergonha, mas o brilho nos olhos dizia tudo.

    Era só uma volta…

    Mas, pra dois corações meio quebrados por dentro… às vezes, isso já era o suficiente pra recomeçar.

    Os dois caminhavam lado a lado pela calçada de pedra, o clima da manhã ainda fresco, com o sol gentil filtrando-se entre as copas das árvores. Lívia, embora tentando parecer despreocupada, lançava olhares furtivos para o rosto de Renier. Havia algo em sua expressão calma que a deixava ainda mais nervosa, talvez fosse a serenidade, ou talvez o fato de estar ali com ele… sozinha.

    Renier, mesmo imerso em seus próprios pensamentos, notou. Notou o jeito que a mão dela se aproximava sutilmente da dele, como se hesitasse entre a coragem e a timidez. Ele sorriu de canto, sem pressa, e desviou o olhar para ela.

    — É a primeira vez que te vejo sem aquela armadura e manta de maga. — comentou, com um tom leve. — Esse vestido… combina com você. Te dá um charme único.

    Lívia imediatamente desviou o olhar, o rosto avermelhado com uma naturalidade que Renier achou genuinamente encantadora.

    — Minha irmã mais velha me ajudou a escolher… — confessou, meio envergonhada. — Eu… não costumo ter esse tipo de encontro com outros rapazes.

    Renier soltou um riso breve, sacudindo a cabeça.

    — Então quer dizer que eu sou o primeiro? E ainda assim você é a guia? — brincou, levantando uma sobrancelha. — Tem alguma coisa divertida pra se fazer por aqui ou vamos só andar até cansar?

    — Sinceramente? — ela riu. — Não conheço muito da cidade. Passo boa parte do tempo treinando no campo militar, dominando minha magia de vento.

    Ela fez um gesto vago com a mão, como se invocar brisas fosse algo comum, o que, para ela, provavelmente era.

    — Minha família vive insistindo com essa coisa de etiqueta, pretendentes, sucessão da linhagem… dizem que preciso arrumar um noivo antes de alcançar certa idade, senão ninguém vai querer uma mulher do exército e mais velha…

    Renier a escutou em silêncio por um momento, antes de sorrir com aquele jeito descomplicado de quem já viu muita coisa.

    — Então você usa o exército para se esquivar dessa vida planejada?

    Lívia acenou com a cabeça, sem se justificar, apenas sincera.

    — É um pouco covarde da minha parte… eu sei.

    — Covarde? — ele riu. — Se for, então sou cúmplice. Eu sempre gostei mais de mulheres fortes e decididas. Ainda mais se forem mais velhas.

    Ela parou de andar por um segundo, surpresa. Renier seguiu andando, mas olhou por cima do ombro com um sorriso provocador.

    — Não vejo defeito nenhum em você querer ser quem você procura… ao invés de deixar alguém decidir por você quem deve ser.

    Lívia o acompanhou, ainda com as bochechas coradas, mas com um sorriso discreto nos lábios. A caminhada podia não ter rumo, mas naquele momento, ela parecia ser o bastante.

    Continua…

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