Índice de Capítulo

    A carroça avançava lentamente, sacolejando em ritmos suaves conforme as rodas encontravam cada pedra no caminho de terra. O céu estava aberto, límpido, e o vento dançava entre os cabelos dos dois jovens sentados lado a lado. Conforme deixavam os muros da cidade para trás, a paisagem se abria num mar dourado, plantações de trigo se estendiam até onde os olhos podiam alcançar, brilhando sob o sol como se o próprio chão estivesse coberto de ouro vivo.

    As grandes hélices dos moinhos ao sul giravam preguiçosamente, impulsionadas pela brisa constante que soprava ali com mais força. O guia da carroça, um senhor de rosto curtido pelo sol, conduzia os cavalos com calma, deixando que o ritmo da natureza ditasse a jornada.

    Renier observava tudo em silêncio, os olhos absorvendo cada detalhe como se memorizar um quadro. Com um sorriso leve nos lábios, virou-se para Lívia.

    — Faz sentido… — murmurou. — Uma maga do vento escolhendo esse lugar pra vir. É como se o vento estivesse mais vivo aqui.

    Lívia assentiu, seus olhos acompanhando o movimento dos moinhos à distância.

    — Preciso treinar o tempo todo — disse com naturalidade. — No exército, minha magia é essencial. Desde detectar aberturas em cavernas ou passagens ocultas em labirintos, até amplificar a voz da General Priscila para que o exército inteiro a ouça sem que ela precise gritar.

    Renier acenou, genuinamente impressionado. O papel dela não era só importante, era indispensável.

    — Então é por isso que você vem pra cá? Por causa do vento mais forte?

    Lívia sorriu com os olhos, como se a pergunta fosse quase óbvia, mas também um pouco ingênua.

    — Em parte… — admitiu. — Mas aqui eu também me sinto mais eu mesma. No campo, tudo tem que ser etiqueta, postura, títulos, aparência. Mesmo entre os soldados, tem sempre um peso, uma expectativa. Aqui eu posso cantar… — ela fez um gesto leve com a mão. — Tocar meus instrumentos, deixar a magia sair com a minha voz.

    Ela olhou para o céu por um instante, os olhos perdidos entre as nuvens.

    — Muitas magias envolvem canto, feitiços entoados com emoção… e eu gosto disso. Mesmo que às vezes pareça mais performance do que poder.

    Renier riu de leve, balançando a cabeça.

    — Você é incrivelmente dedicada, isso é certo. — disse, olhando para ela com mais atenção agora, não como maga, nem como nobre… mas como pessoa. — Mas… é isso que você realmente quer fazer? Ou só faz porque… bem, parece que o mundo espera isso de você?

    Lívia virou o rosto devagar, como se a pergunta tivesse sido mais profunda do que esperava.

    O vento soprou mais forte naquele instante, como se até ele esperasse pela resposta dela.

    Lívia repousou o doce de batata doce ao lado, como se o sabor tivesse perdido o brilho diante do peso que sentia no peito. Seus olhos se voltaram para o horizonte, onde os campos dourados dançavam sob o toque do vento. Por um momento, ela apenas observou, silenciosa, como se buscasse nas ondas da plantação uma resposta para algo que carregava há tempo.

    — Talvez seja covardia minha… — murmurou, mais para si do que para o rapaz ao lado. — Fugir das responsabilidades…

    Ela suspirou, longa e profundamente, como se estivesse libertando um fardo guardado no fundo da alma. Seus olhos não deixaram a paisagem, mas sua voz vacilou por um instante.

    — Todos os nobres… a realeza… — continuou. — Não escolhem com quem vão se casar, ou com quem vão viver a vida toda… isso é comum, não é?

    Renier escutou em silêncio. O tom da voz dela não pedia consolo, pedia verdade. Ele virou o rosto devagar, e com a voz serena, pediu:

    — Lívia… olha pra mim um instante.

    Ela hesitou, mas então se virou. Os olhos dela, apesar de firmes, carregavam uma sombra de tristeza que não combinava com a maga do vento vibrante que ele conheceu.

    Renier sorriu, um daqueles sorrisos calmos que não tentam consertar o mundo, só entendê-lo.

    — Você é diferente… é isso que te torna especial, Lívia. — disse. — Eu sei bem como é ter que atender as expectativas dos outros. Já passei por isso também. Mas sabe o que eu aprendi? Eu sempre dou meu jeito. Faço do meu jeito. Sempre.

    Ele inclinou levemente o rosto, sentindo o vento fresco que passava entre os dois. Era como se o próprio mundo respirasse naquele instante.

    — O seu coração não nasceu pra ficar parado num ponto fixo. — disse, olhando direto nos olhos dela. — Se o que você sente diz pra seguir outro caminho… pra ser diferente de todos que vieram antes… então vá. Segue. No fim das contas, a única pessoa que pode escolher sua vida… é você mesma.

    As palavras ecoaram com a força de uma brisa que se tornava vento. Lívia arregalou levemente os olhos, surpresa com a sinceridade. Sua mão subiu devagar até o peito, como se apenas naquele instante tivesse percebido o quão forte seu coração batia.

    Era uma sensação estranha. Mas boa. Como se estivesse viva de um jeito que não era treinado, ensaiado ou esperado.

    “Seguir a própria vontade do coração…”

    Era uma frase simples, mas para alguém da posição dela, era uma raridade quase proibida.

    Ela sorriu, um sorriso pequeno, ainda incerto, mas real.

    — Você fala demais pra alguém que acabou de me conhecer… — murmurou, com a voz embargada de emoção, mas sem perder a ironia.

    Renier riu.

    — E você sente demais pra alguém que tenta parecer indiferente.

    O vento soprou mais uma vez entre eles, carregando as palavras não ditas, e trazendo uma leveza que só o sul da cidade parecia ter.

    A carroça parou suavemente diante do velho moinho, suas hélices girando preguiçosamente com a brisa constante que soprava do sul. O som era relaxante, quase hipnótico, misturado ao farfalhar do trigo dourado que cercava o local como um mar calmo.

    O cocheiro, um senhor de barba grisalha e voz rouca, virou-se para os dois passageiros com um sorriso discreto.

    — Chegamos ao destino, senhorita, rapaz.

    Renier, ainda um pouco encantado com o cenário, pensou por um instante que aquilo era o equivalente mágico de um táxi no seu mundo, só que sem GPS, sem vidro elétrico… e bem mais simpático.

    Ele foi o primeiro a descer, o pé afundando levemente na terra batida, longe do chão pavimentado da cidade. Virou-se em seguida, estendendo a mão para Lívia.

    Ela aceitou com naturalidade, mas pulou da carroça com uma leveza que quase fez Renier pensar que ela podia flutuar com o vento se quisesse. O terreno irregular de terra e pedras não era ideal, e ele soube que qualquer escorregão poderia machucar aquele pé descalço ou em sandálias leves. Mas ela pousou com elegância.

    Renier olhou então para o moinho à sua frente. As grandes hélices cortavam o vento com um som constante e tranquilo. Ele respirou fundo.

    — Faz sentido você gostar desse lugar… — comentou, observando o céu aberto e a paisagem livre ao redor. — Passa uma sensação de liberdade.

    Lívia sorriu, aquele sorriso verdadeiro que iluminava o rosto dela como um raio de sol rompendo nuvens.

    — Exatamente! — disse animada, quase pulando no lugar. — Aqui eu me sinto… mais eu.

    O cocheiro, vendo que o casal não precisava mais de sua ajuda, balançou levemente a corda que prendia seus cabelos em sinal de despedida, e com um gesto calmo, seguiu de volta à estrada, deixando um rastro de poeira atrás da carroça.

    — Sozinhos de novo… — comentou Renier, ajeitando a capa nos ombros e observando o moinho.

    — Quer subir lá em cima? — perguntou Lívia, apontando para a varanda que circulava a parte superior do moinho, acessível por uma escadaria em espiral de madeira do lado de fora.

    A estrutura era antiga, mas bem cuidada, e dali de cima certamente teriam uma vista deslumbrante dos campos e da cidade ao longe.

    Renier a olhou com um sorriso relaxado, sem hesitar.

    — Você é a guia aqui. — disse. — Tudo o que decidir fazer… eu faço também.

    Lívia riu, girando nos calcanhares com graça e começando a subir os degraus da escada espiral. O vento soprou mais forte, balançando os cabelos dela para trás, como se até ele estivesse animado com a ideia.

    Renier a seguiu de perto, sentindo que aquela tarde, naquele moinho isolado, estava se tornando um daqueles momentos que não se esquecem.

    Um passo de cada vez, subindo para mais perto do céu.

    Continua…

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