Capítulo 96: Uma Noite Pela Cidade.
Com o cair da noite, as sombras engoliram lentamente os contornos da cidade. As luzes fracas das velas nas janelas das casas tremulavam como pequenos farois na escuridão. Renier caminhava em silêncio, seus passos ecoando pelas ruas de pedra, depois de ter deixado Lívia nas proximidades da casa dela. Insistira, mesmo contra a vontade dela. Lívia aceitará com relutância, pouco acostumada a ser tratada com tamanha cortesia. Mas ele não podia deixá-la sozinha, não depois de tudo.
A brisa noturna era fria, cortando sutilmente a pele como uma lembrança incômoda de que o mundo ainda estava cheio de perigos.
Foi quando a voz metálica e seca da Administradora surgiu, quase como um sussurro invasivo diretamente em seu ouvido:
— Você tem se distanciado do Guardião Negro que eu conheci.
Renier suspirou, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo enquanto mantinha os olhos fixos na estrada à frente.
— E o que esperava que eu fizesse? — murmurou, sem esforço para esconder o cansaço na voz. — Morri pela primeira vez… pelas mãos de quem eu amava. E Kyouka… Kyouka destruiu uma base inteira da O.S.N. Isso não é “mudança de rumo”, é um colapso total.
A Administradora ficou em silêncio por um instante, antes de soltar sua resposta com um tom mais contido:
— Você está certo. O que Kyouka fez… foi além de qualquer invasão. Ela não apenas penetrou na Organização. Ela tocou as raízes da Yggdrasil… sem ser detectada por ninguém. Nem por mim. Nem por você.
Renier parou por um momento, encarando o vazio da rua à frente. As casas pareciam mais distantes agora, as sombras mais densas, o silêncio mais denso.
— Isso só confirma uma coisa… — disse, com a voz mais baixa. — Estou nas mãos dela. Completamente. E o que não entendo… é porque ela ainda não me matou. Se pode fazer isso a qualquer momento… por que não faz?
A cidade parecia ter prendido a respiração. As velas nas janelas tremeluziam como se pressentisse o peso da conversa.
A resposta da Administradora veio como um soco frio:
— Porque é isso que ela quer. Que você nunca se sinta seguro. Que não se permita relaxar. Que nunca confie. Porque cada laço que você cria… ela pode destruir. Assim, ela te obriga a se ver nela. A se tornar como ela.
Renier apertou os punhos nos bolsos. Seus olhos subiram, olhando o céu sem estrelas. Ele entendeu. Kyouka não queria apenas matar pessoas. Ela queria matar dentro dele a capacidade de amar, de confiar, de pertencer. Ela queria apagar o que restava da humanidade dele… para que, quando olhasse no espelho, visse apenas o vazio.
— …Vazio — repetiu ele, quase num sussurro.
E naquele silêncio absoluto, Renier percebeu algo ainda mais cruel: o vazio não vinha só de fora. Ele já estava dentro. Só precisava de mais um empurrão.
E Kyouka sabia disso muito bem.
Renier ergueu o braço, deixando a manga de seu sobretudo escorregar até revelar o bracelete hi-tech preso ao pulso. Com um toque sutil, o dispositivo brilhou em azul, liberando um holograma flutuante diante de seus olhos. Linhas de código e projeções tridimensionais se formaram rapidamente, era o acesso ao Mundo Zero.
— Esse lugar… — murmurou ele, observando a projeção cintilante.
A voz da Administradora ecoou em sua mente como se sempre estivesse à espreita, aguardando o momento certo para se manifestar.
— O Mundo Zero… sua primeira missão como Guardião Negro. Kyouka não ousou tocá-lo. — A voz dela carregava uma calma quase artificial. — A estrutura ali é frágil demais para conter o poder dela… ou o seu. É um terreno onde usar energia em larga escala é o mesmo que assinar a própria sentença.
Renier manteve os olhos fixos no holograma, os traços de seu rosto mergulhados na luz azul.
— E isso impediria ela de matar alguém que eu amo… lá?
Um breve silêncio precedeu a resposta da Administradora.
— Talvez não. Mas você matou a Sombra que havia naquele mundo. Restou um rastro da sua energia. E além disso… sua avó está lá. A antiga Guardiã Negra. Mesmo para Kyouka, é arriscado agir onde sua presença pode ser anulada.
Renier soltou um suspiro lento e desligou o holograma com um movimento firme. A luz azul desapareceu.
— Isso não me alivia — murmurou, os olhos voltando para a rua escura. — Só vou descansar de verdade quando eu mesmo colocar um fim nisso… quando matar a Kyouka e acabar com esse joguinho maldito de uma vez por todas.
Mas a Administradora, com sua voz neutra, lançou uma pergunta como uma lâmina bem afiada:
— E você tem certeza… que tudo o que sente por ela é só raiva?
Renier parou. O ar pareceu mais pesado por um momento. A pergunta ecoou em sua mente, martelando fundo. A Administradora continuou:
— Agora que tenho acesso completo ao seu traje, conheço suas reações, seus batimentos… até suas emoções. O que você sente… é mesmo só ódio?
Ele não respondeu. O silêncio disse mais do que qualquer palavra. Seus olhos baixaram. O brilho azul do bracelete ainda se refletia nas poças formadas pela chuva anterior, como um espelho invertido da alma. Havia coisas que nem ele conseguia nomear. Dor? Saudades? Culpa?
Ou tudo isso… ao mesmo tempo?
Sem mais palavras, empurrou a porta de madeira da estalagem. Um sino tocou, anunciando sua entrada. O calor do ambiente o envolveu imediatamente, quebrando o gelo em seus ombros. Lá dentro, alguns velhos riam alto, bêbados, mastigando com voracidade e derramando cerveja pela barba. O cheiro de comida quente e lenha queimada era acolhedor.
Mila, com roupas simples de garçonete, caminhava entre as mesas equilibrando pratos e copos, ajudando a mãe a manter a ordem no caos do jantar. As outras duas, Liza, a Lizardgirl, e Luna, a Kitsune de olhar misterioso, também ajudavam nos serviços, apesar de sua origem como escravas. Agora, pareciam fazer parte daquele lugar. De algo maior.
Renier se recostou na parede, observando em silêncio. Um leve sorriso escapou por um instante. Não de ironia, mas de… paz. Aquela cena, mundana e tão distante do caos que ele vivia, parecia puxá-lo de volta para um ponto mais humano. Mais real.
Talvez… só talvez… ele pudesse, como Yggdrasil sempre dizia, permitir que o mundo tivesse um pouco mais de cor.
Mesmo que fosse só por uma noite.
Em um canto mais animado da estalagem, onde as risadas se misturavam ao tilintar de canecos, Lihan, o jovem aspirante a cavaleiro, erguia um copo generoso de hidromel ao lado de alguns soldados da guarda local. Assim que os olhos encontraram a figura de Renier entrando no salão, ele não hesitou em se levantar e anunciar em alto e bom som:
— O heroi que dominou o Labirinto abaixo da cidade finalmente chegou!
O nome “herói” ricocheteou nas paredes e chamou a atenção de todos. Conversas cessaram, olhares se voltaram, e até algumas mulheres nas mesas começaram a cochichar entre si, os olhos cintilando diante da figura de traços marcantes e postura imponente que cruzava o salão com passos firmes.
Renier, por um breve instante, estreitou os olhos ao ouvir aquele título. Herói… um rótulo pesado, que não combinava com tudo o que havia feito, ou deixado de fazer. Mas ele não demonstrou desconforto. Apenas ergueu a mão em um aceno contido e seguiu seu caminho.
Antes que pudesse buscar um canto tranquilo, foi interceptado por Luna e Liza, que vieram em sua direção com evidente preocupação.
— Mestre Renier — disse Liza, com seu jeito calmo e centrado. — Está tudo bem? Passou o dia inteiro fora. Está com fome?
— Quer que a gente prepare algo? — completou Luna, com o tom leve, mas os olhos atentos.
Renier sorriu, um gesto pequeno mas sincero.
— Estou bem, obrigado. Só queria que vocês dormissem cedo hoje… pode ser que eu precise das duas amanhã. Vamos nos preparar para uma viagem.
Liza assentiu com um aceno respeitoso.
— Sim, Mestre. Vamos preparar a cama agora mesmo. — Ela olhou para Luna. — Pode me ajudar?
— Claro! — disse Luna animada. — E se vamos viajar, talvez seja mais divertido do que ficar nessa cidade entediante.
Renier observou ambas subindo pelas escadas. Vê-las assim — em harmonia, tranquilas — o fazia sentir algo raro: alívio.
Mas antes que pudesse desfrutar desse breve conforto, foi puxado subitamente pelo ombro. Um braço em volta do pescoço, uma risada familiar.
— Renier, seu danado! — disse Lihan, meio bêbado de alegria. — Tenho uma pergunta de vida ou morte!
Renier fez uma careta imediata, desconfortável com o contato físico repentino.
— Lihan… o que você quer?
Lihan se aproximou, meio conspirador:
— É sobre a Mila.
Renier franziu o cenho, agora genuinamente confuso.
— Vocês dois não se conhecem desde antes do Labirinto?
— Sim, sim… — respondeu Lihan, coçando a cabeça. — Mas, tipo… ela ficou forte. Independente. E agora não sei se ela… bom… gostaria de alguém como eu.
Renier bufou, sem esconder o julgamento. Com um movimento rápido, pegou o copo de hidromel das mãos de Lihan e o colocou fora do alcance.
— Tua visão tá torta, Lihan.
— Hein?
Renier o encarou, mais sério.
— Se ela ficou forte e independente… de que adianta você querer ser o protetor dela? Ficar mais forte pra proteger ela? Isso é ego, não é amor.
— Então o que eu deveria fazer?
Renier virou o copo de hidromel dele próprio de uma vez só, batendo o fundo com força na mesa. Olhou direto nos olhos do rapaz e respondeu:
— Fica forte pra lutar ao lado dela. Nem na frente, nem atrás. Lado a lado. É assim que vocês vão se aproximar.
Lihan ficou parado por um momento, digerindo aquelas palavras. Havia sabedoria ali. E um pouco de dor também, de quem já entendeu isso do jeito mais difícil.
Renier deu um leve sorriso, o tipo que não dura, mas diz muita coisa, e se virou. Subiu calmamente as escadas de madeira, deixando o burburinho do salão para trás.
Ao passar pelo balcão, lançou um breve aceno silencioso para Mila e sua mãe, que ainda cuidavam dos pedidos. Mila percebeu, seus olhos encontrando os dele por um segundo. Não havia palavras. Mas foi o suficiente.
Renier seguiu para o quarto. Porque amanhã, ele sabia, o mundo podia muito bem desabar de novo.
Mas por enquanto… só por agora… ele deixaria o mundo girar um pouco mais devagar.
Continua…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.