Capítulo 97: Uma Conversa Noturna.
As estrelas reinavam no céu como joias silenciosas, e a lua, serena e solitária, observava tudo lá do alto. A cidade dormia. Nem mesmo os sons típicos da madrugada ousavam interromper o silêncio que envolvia as ruas. Na estalagem, o último bêbado já tinha sido mandado embora após o expediente, e até os sussurros sumiram.
Luna e Liza dormiam lado a lado, os peitos subindo e descendo em um ritmo tranquilo, embaladas pelo cansaço e pela paz rara que aquela noite oferecia. A janela do quarto estava entreaberta, permitindo que uma brisa leve dançasse pelas cortinas, fazendo-as ondular como véus encantados.
Mas o verdadeiro protagonista daquela noite não estava entre cobertas.
Renier, sentado sobre o telhado da hospedaria, mantinha os olhos voltados para o céu, os pensamentos navegando entre memórias antigas e decisões que ainda ecoavam em seu peito. O corpo estava ali, mas a mente… vagava longe.
Com a cabeça apoiada na mão e o olhar perdido nas constelações, o bracelete hi-tech em seu pulso se iluminou suavemente com um brilho azul etéreo, rompendo o silêncio com uma voz familiar — firme, analítica, mas curiosamente carregada de sarcasmo sutil:
— Ainda está remoendo a queda da O.S.N?
Renier não desviou o olhar das estrelas. A resposta veio calma, quase fria:
— Já faz tempo que parei de me importar com isso…
A Administradora ficou em silêncio por um instante, analisando aquela afirmação. Então devolveu com uma pergunta que era mais acusação do que curiosidade:
— Então o que exatamente continua bagunçando sua mente, Renier? Para alguém que foi considerado um dos seres mais supremos da existência… você carrega tanta coisa humana que chega a ser irritante.
Renier soltou uma risada curta, sincera. Sem cinismo, só… cansada.
Olhou para o bracelete, encarando a luz azul que pulsava com a presença da IA. A resposta veio como se ele já tivesse pensado nela mil vezes:
— E você esperava o quê? Olha pra mim… eu sou um monstro cósmico cheio de memórias humanas, sentimentos quebrados e traumas reciclados. Se fosse tão simples apagar essa parte fraca e humana… — ele fechou os olhos por um instante. — …eu já teria feito isso há muito tempo.
O vento soprou mais uma vez, como se o próprio mundo escutasse aquela confissão.
Ali, no telhado, sob o céu silencioso e cúmplice, Renier não era o heroi do labirinto, nem o mestre das meninas, nem o comandante de monstros, ele era só alguém tentando sobreviver a si mesmo.
E, pelo menos por aquela noite, isso já era suficiente.
O vento ainda soprava suave, embalando o silêncio da noite como uma canção esquecida. Renier continuava no telhado, mas sua expressão já não era mais a mesma de antes, o olhar sereno havia ganhado um traço de impaciência, talvez até desconforto.
O brilho do bracelete aumentou. A Administradora voltou a falar, a voz surgindo limpa, quase irônica:
— Vou responder aquela pergunta… a que você fez no momento que pisou nesse mundo.
Renier bufou, revirando os olhos.
— Eu faço perguntas idiotas o tempo todo. Vai ter que ser mais específica.
— Cala a boca, Renier — respondeu ela, sem cerimônia, com um tom que não deixava espaço pra rebater. — Sua memória é perfeita. Você lembra de tudo. Não finge que esqueceu.
Houve um breve silêncio. A tensão ficou densa, quase palpável, e então ela soltou:
— “Por que eu ainda me sinto tão sozinho?”
A frase bateu fundo. Renier desviou o olhar, o maxilar contraído. Ele suspirou, tentando desviar.
— E o que isso tem a ver com agora?
A Administradora não respondeu de imediato. Quando falou de novo, soltou uma palavra que fez o ar ao redor de Renier parecer congelar:
— Kyouka.
A menção daquele nome foi como um disparo. Renier estreitou os olhos, e por um instante, um reflexo de dor real, crua, rompeu a máscara de neutralidade que ele costumava vestir.
A IA continuou, agora com voz firme, impiedosa como quem arranca curativos antigos:
— Vocês dois são opostos. Não deveriam existir… muito menos coexistir. Ela moldou o jeito como você enxerga tudo. Pra você, solidão virou sinônimo de vazio. E vazio é a única linguagem que ela entende.
Renier não respondeu. Apenas ouvia.
— Você não se permite ser preenchido de novo… porque acha que, se se abrir, vai ser esvaziado da mesma forma. Como quando ela arrancou o seu coração naquele terraço da escola.
O nome. O lugar. A memória. Tudo veio com força. Tão real quanto aquela brisa fria que passava pelos cabelos dele.
Irritado, ou seria apenas vulnerável demais para continuar parado? Renier se levantou, estalando o pescoço, os olhos voltados para o céu escuro. A noite já não parecia tão silenciosa assim.
— Tá bom, gênio… se você é tão esperta, me diz então — disparou, olhando pro bracelete com raiva contida. — O que se faz com alguém como ela? Alguém que tem a porcaria da minha vida na palma da mão?
O bracelete ficou em silêncio por um momento. A pergunta ecoou no ar, mais pesada do que qualquer resposta poderia ser.
Mas Renier sabia: aquele nome ainda queimava. Aquele buraco dentro dele, o vazio com nome e rosto, continuava ali.
E mesmo sendo um ser cósmico, monstruoso, lendário…
Ele ainda era humano o suficiente pra doer.
O silêncio voltou a reinar por alguns instantes, até que a voz da Administradora ecoou mais uma vez no canal direto do bracelete, calma, firme, quase maternal… se não fosse tão afiada quanto uma lâmina de luz.
— Você é híbrido, Renier. — disse ela, sem rodeios. — Dragão. Valquíria. Espírito. Divindade. Demoníaco. Cósmico… e humano.
Renier apenas ouvia. Nenhuma reação imediata, só o vento dançando entre os fios de cabelo pretos que escapavam do capuz.
— Não importa o quanto você tente reduzir isso a armas… e ferramentas pro seu propósito na batalha contra o Vazio — continuou ela — você nunca vai ultrapassar seus limites sem entender a origem de tudo isso. De você.
Lentamente, Renier puxou o capuz do traje, cobrindo o rosto mais uma vez. A máscara de kitsune se formou com um brilho breve, encaixando-se como uma armadura emocional. Ele se sentou de novo no telhado, a postura cansada, mas centrada.
— Eu não fui feito pra ser entendido, né? — murmurou ele, o tom abafado pela máscara.
— Não. Você nasceu pra compreender a todos — corrigiu a Administradora, sem hesitar.
Renier soltou uma risada abafada. Tinha sarcasmo ali, mas também… um traço de saudade.
— Você tá parecendo minha mãe falando essas besteiras… A Yggdrasil disse as mesmas coisas.
— Sinto-me honrada por ser comparada à Criadora da Existência — disse a IA, com uma pontinha de humor sintético. — Mas saiba que até ela deixou algo para trás: uma semente. E talvez… só talvez, esteja na hora de você deixá-la florescer.
Houve uma pausa, e então ela completou:
— Não como todos querem. Mas como você mesmo precisa.
A brisa da noite soprou forte, levantando levemente a aba do capuz. O tecido agitou, e o brilho azul etéreo dos olhos por trás da máscara cortou a escuridão como dois faróis ancestrais.
Renier não respondeu de imediato. As palavras ecoavam. Eram como pequenas verdades que ele evitava encarar… até agora.
— E se eu tomar decisões erradas…? — perguntou ele, enfim, a voz mais baixa, carregada de algo raro: dúvida. — Se eu agir do meu jeito… você ainda vai estar do meu lado?
A resposta veio com uma risada leve, quase debochada.
— Renier… eu sou o seu cérebro. Literalmente. Você me deu acesso a tudo, lembra?
O bracelete brilhou suavemente, como se piscasse para ele.
— Meu trabalho não é te julgar, é garantir que você seja mais do que um boneco cósmico com um propósito estúpido de “proteger a vida”. Meu trabalho… é fazer você se tornar quem você realmente é.
O silêncio voltou. Mas dessa vez não foi pesado. Era o tipo de silêncio que vem quando as engrenagens começam a se mover por dentro. Quando até uma entidade imortal precisa… repensar seu caminho.
E lá embaixo, na hospedaria silenciosa, Luna e Liza ainda dormiam tranquilas. Mal sabiam que, lá no alto, no meio da noite estrelada, o guerreiro do caos estava reavaliando seu destino.
Continua…
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