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    Na cozinha da mãe de Mila, o cheiro era doce e envolvente. O vapor subia da panela com suavidade, espalhando pelo ambiente uma fragrância quente e aconchegante. Renier mexia o conteúdo com uma colher de pau, os olhos atentos, o rosto sereno, uma concentração rara de se ver naquele gênio do caos.

    A dona da cozinha, gentil e um tanto curiosa, havia deixado o trio ali com a maior boa vontade. Sabia que quando Renier tinha um plano, era melhor só dar espaço e observar de longe. Resultado: ele estava no controle total do recinto, como um chef de cozinha interdimensional.

    Liza, por outro lado, não conseguia esconder a dúvida estampada no rosto. Se aproximou um pouco mais da panela, farejando o ar como uma felina curiosa, e soltou a pergunta sem filtro:

    — Essa coisa marrom com cheiro doce… é comestível?

    Renier parou por um segundo, ainda com a colher na mão. Seu olhar ficou levemente pensativo, quase filosófico. Chocolate. Um conceito tão normal para ele, mas completamente alienígena ali.

    — Estranho… — murmurou ele pensativo. “Ninguém deste mundo conhece chocolate. Isso sempre me pega desprevenido”.

    Antes que ele pudesse elaborar uma explicação com direito a aula histórica e comparações absurdas, Luna entrou no papo com a naturalidade de quem já provou aquilo mil vezes.

    — Chocolate é um doce delicioso — disse ela, como se estivesse falando de pão com manteiga. — Normalmente só a galera nobre tem acesso a esse tipo de coisa… por isso é raro ver alguém cozinhando com ele.

    Renier olhou discretamente para ela. Ah, então ela sabia. Sabia o que era chocolate, sabia o que era “nobreza” em tom tão casual. Para uma Deusa Caída estando nesse mundo… era informação demais.

    Mas ele apenas arqueou uma sobrancelha, sem comentar em voz alta. Não agora.

    Liza arregalou os olhos, surpresa:

    — Um doce de nobreza, huh? Então é por isso que tem cheiro de “importante”.

    Luna riu, divertindo-se com o comentário.

    — Vai por mim, depois da primeira mordida, você vai querer declarar lealdade ao cacau.

    Renier apenas sorriu de canto. Não por orgulho ou por vaidade. Mas porque aquele momento simples, numa cozinha emprestada, com duas garotas tão diferentes e igualmente especiais, era um daqueles raros fragmentos de paz que ele aprendia a valorizar.

    E ali, enquanto o chocolate derretia, não havia Deuses Caídos, segredos cósmicos ou guerras para se preocupar. Só risadas suaves, curiosidade genuína… e o aroma universal de algo bom sendo preparado.

    Renier calçou as luvas térmicas com precisão, o olhar sério de quem sabe exatamente o que está fazendo. Com um gesto do queixo, indicou:

    — Liza, pega uma forma grande pra mim.

    Ela acenou, ágil, e puxou a maior forma que encontrou nos armários da cozinha. Enquanto isso, o cheiro do chocolate espalhava-se pelo ambiente, denso, doce e quase hipnotizante. O estômago de Liza roncou discretamente, e Luna lambeu os lábios com antecipação. Renier, notando as reações, soltou uma risada baixa.

    — Calma aí, caçadoras. Ainda tá no modo lava.

    Liza posicionou a forma na mesa. Renier, com o cuidado de um alquimista finalizando uma poção rara, despejou o chocolate espesso, quente e brilhante, preenchendo a forma com movimentos suaves e firmes. O líquido marrom escuro parecia vivo, borbulhando levemente antes de começar a se assentar.

    — Normalmente, eu deixaria esfriar naturalmente… — comentou ele, retirando as luvas — …mas vamos otimizar isso com um toque especial.

    As mãos de Renier pairavam sobre a forma. Um brilho tênue percorreu seus dedos, e então, uma brisa fria se espalhou pela cozinha. Como uma dança invisível, flocos minúsculos de neve começaram a surgir, caindo levemente como se o inverno tivesse sido invocado ali mesmo. Liza e Luna encararam maravilhadas, os olhos brilhando diante do espetáculo mágico.

    — Uau… — murmurou Luna, puxando a gola da roupa com um arrepio involuntário.

    — Isso é… lindo. — disse Liza, encantada, os olhos fixos na forma congelando lentamente.

    Renier sorriu satisfeito.

    — Pronto.

    Com uma faca grande de cozinha, ele começou a cortar a placa sólida de chocolate em pedaços perfeitos. Cada corte era limpo, preciso — quase artístico. Logo, estendeu dois pedaços para cada uma das garotas.

    — Experimentem. Quero saber se passou no teste das especialistas.

    Liza foi a primeira a provar. Mordeu com cuidado, seus caninos partindo o chocolate com um estalo suave. O sabor invadiu sua boca com intensidade, um equilíbrio exato entre o doce e o amargo, derretendo na língua como um segredo revelado.

    A expressão dela suavizou, os olhos fecharam por um momento.

    — Eu… nunca comia doces quando era escrava… — disse baixinho. — Mas… esse sabor… é a coisa mais intensa que já senti.

    Luna observava, emocionada. Em seguida, mordeu o seu pedaço e logo levou as mãos às bochechas, os olhos marejados de leve. Era diferente para ela. Não era só sabor… era nostalgia.

    — Faz… décadas que não provo algo assim… — murmurou, quase em transe.

    Mas antes que dissesse algo mais comprometedor, ela sorriu e colocou a mão discretamente diante da boca, abafando o resto do pensamento.

    Renier cruzou os braços, satisfeito, observando as duas como quem vê uma pintura ganhar vida.

    — Certo. Agora só falta limpar a cozinha, preparar um agrado pra mãe da Mila e pra própria Mila… e aí vamos pra Casa da Família Morales visitar a Lívia. Levar o chocolate como presente.

    Luna ainda saboreava um dos pedaços quando soltou a pergunta casual, mas afiada:

    — Onde você conseguiu cacau e os ingredientes para fazer isso, Renier?

    Ele deu de ombros, ainda sorrindo.

    — Eu criei.

    Luna piscou. Então lembrou. Lá atrás, no labirinto… ele havia criado uma árvore com maçãs doces do nada. Suspirou, aceitando.

    — Você é bem excêntrico mesmo…

    Renier apenas piscou de volta, como quem carrega o caos no bolso e ainda oferece um pedaço dele em forma de chocolate.

    ✦—✵☽✧☾✵—✦

    O vento atravessava suavemente a janela entreaberta do quarto de Lívia, carregando consigo o frescor matinal que balançava as cortinas de linho branco. A cavaleira mágica, naquele raro e precioso dia de folga, permanecia afundada no colchão macio de sua cama real, envolta em cobertas de veludo e com uma venda sobre os olhos, isolando-se até mesmo da luz dourada do sol que tentava, em vão, beijar-lhe o rosto.

    O quarto era digno de sua linhagem nobre: adornado com móveis refinados, tapeçarias bordadas à mão e pequenos detalhes que só os ricos costumam chamar de “simples decorações”. No entanto, o silêncio sereno da manhã foi abruptamente quebrado pelo ranger da porta sendo aberto com audácia.

    Toc. Toc. Toc.

    Saltos finos batendo contra o assoalho anunciaram a chegada de uma presença marcante. Cabelos loiros, cacheados, voavam com arrogância calculada enquanto a mulher adentrava o cômodo como uma tempestade de elegância. Usava um vestido vermelho vinho justo, que realçava suas curvas e sugeria, sem pudor, que era dona de sua sensualidade. Em uma das mãos, um leque que se abriu com um estalo cortante, mais dramático que necessário.

    — Irmãzinha… — disse Annabelle, a mais velha das duas, num tom meticulosamente debochado. — Que indecência… uma nobre dormindo até essa hora? Tsc.

    Lívia resmungou, puxando a venda de um dos olhos sem se levantar, com a voz rouca de sono.

    — Annabelle… é meu dia de folga, deixa eu descansar um pouco, vai.

    — Seu dia de folga foi ontem, querida — rebateu Annabelle, com um sorrisinho malicioso pintando os lábios. — E a cidade toda está cheia de rumores… sobre uma certa donzela guerreira sendo vista com um homem.

    A cavaleira corou num estalo. O travesseiro voou na direção da irmã com uma força digna de alguém que treina com espada.

    — N-Não é nada disso que você tá pensando! — gaguejou, tentando manter a compostura que escorria como areia entre os dedos.

    Annabelle desviou o ataque com um giro elegante do leque, rindo como quem já sabia de tudo.

    — Quem diria… minha irmãzinha, toda musculosa, caidinha por um rapaz. Ele é bonito, pelo menos?

    Lívia abraçou o travesseiro como se quisesse desaparecer dentro dele, seu rosto completamente enterrado.

    — Ele… ele me salvou, como um cavaleiro dos contos da mamãe. É… bonito. E tem um olhar perigoso…

    Os olhos de Annabelle brilharam com interesse genuíno. Sentou-se com elegância ao lado da cama e cruzou as pernas, como quem se preparava para degustar um segredo.

    — Ele é como os homens daqui?

    Lívia ajeitou uma mecha atrás da orelha, o rosto suavemente nostálgico.

    — Não… tem um perfume natural. É atrevido, mas de um jeito que não irrita. Não soa vulgar. E não fede como os soldados da cidade… Ele é diferente. Ele salvou todos nós no labirinto. É como um cavaleiro negro… com um coração distante, mas… bom.

    Anabelle suspirou, quase sonhadora, mas logo recuperou o tom sério e questionador.

    — Isso é raro num homem neste fim de mundo. Você acha que ele… poderia nos ajudar com nosso problema?

    Lívia desviou o olhar, pensativa. Havia pesar e responsabilidade no brilho azul de seus olhos.

    — Eu me sentiria mal em envolvê-lo em algo que não fosse escolha dele… mas talvez… talvez ele possa ajudar, sim.

    O silêncio foi cortado por passos leves se aproximando. Uma das empregadas apareceu na porta com a cabeça levemente abaixada, em postura respeitosa.

    — Senhoritas… há um rapaz no portão. Ele se apresentou como Renier Kanemoto. Disse que veio visitar a senhorita Lívia.

    Os olhos de Lívia se arregalaram ligeiramente, e o travesseiro escorregou de seus braços como se não tivesse mais propósito.

    — Parece que o príncipe sombrio chegou. Hora de acordar de vez, irmãzinha, — Annabelle sorriu com malícia e deu um leve tapinha nas cobertas.

    Continua…

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