Capítulo 101: Açucarado Como Chocolate.
A chaleira de prata tilintou suavemente enquanto a empregada despejava o chá fumegante nas xícaras ornamentadas com filetes dourados e motivos florais. Hortelã e canela exalavam um aroma reconfortante, quase mágico, preenchendo o ar com uma sensação de lar e tradição. Cada movimento da empregada-chefe Fábula era calculado, elegante e impecável, como uma coreografia ensaiada por anos.
Renier encontrava-se confortavelmente sentado no sofá ao lado de Luna. O estofado macio contrastava com a tensão sutil que pairava no ambiente. Liza, como uma sentinela silenciosa, preferiu permanecer de pé, de braços cruzados e olhos atentos, embora sua postura sugerisse calma. Renier, notando isso, ponderou em silêncio, ela não estava apenas fazendo cena. Aquilo era proteção. Instinto puro. Se algo acontecesse, ela seria o escudo entre ele e o mundo.
À frente deles, Lívia sentava-se no sofá oposto, com as mãos agitadas enquanto tentava arrumar o cabelo, ainda um pouco bagunçado após o tombo escada abaixo. A mesa de centro separava os dois como uma linha tênue entre o formal e o pessoal, com as xícaras de chá alinhadas como peças de um tabuleiro nobre.
Na poltrona central, Annabelle reinava. O leque aberto ocultava o sorriso em seus lábios, mas os olhos, predatórios, inteligentes, mantinham Renier sob vigilância constante. Era como se o estivesse lendo, desvendando camada por camada, como quem analisa um documento confidencial.
Lívia murmurava algo para si mesma, uma ladainha de frustração:
— Logo hoje… eu tinha que tropeçar na frente do convidado mais importante… Que vergonha…
Renier não conteve uma risada breve e leve, sincera, quase como um alívio que rompeu o gelo da situação.
— Eu não me importo nem um pouco com esse tipo de coisa, Lívia — disse ele, inclinando-se levemente para frente, o sorriso suave ainda nos lábios. — Prefiro ver quem você realmente é, do que uma máscara criada para parecer como os outros esperam que você seja. O natural é mais… verdadeiro. E eu valorizo isso.
Lívia parou por um segundo. Aquelas palavras bateram diferente. Um calor estranho, não dá xícara, subiu para sua pele. Corou, não de vergonha pela queda, mas pelo elogio genuíno.
— Se é assim que você prefere… então acho que posso ser eu mesma sem me preocupar tanto… — respondeu ela, tímida mas satisfeita, pegando a xícara com delicadeza.
No gesto, seu dedo mindinho ergueu-se de forma quase automática, revelando sua etiqueta refinada, mesmo sem perceber. Um detalhe sutil, mas que não passou despercebido.
Enquanto isso, Annabelle observava tudo em silêncio. O leque ainda cobria seus lábios, mas seus olhos… ah, os olhos diziam tudo. Ela viu aquela troca. Entendeu a química, a dinâmica, o ritmo silencioso daquela dança não ensaiada entre sua irmã mais nova e o misterioso convidado.
Luna cutucou Renier com o ombro, um gesto quase imperceptível, mas cheio de intenção. Seus olhos falaram por ela, e ele entendeu. Sem precisar de palavras, como quem compartilha uma linguagem secreta entre aliados próximos, ou cúmplices.
Renier endireitou-se no sofá, levantando o dedo com elegância, chamando atenção com aquele charme de quem já sabe que vai virar o centro das atenções.
— Como prometido ontem… — começou ele, sua voz calma mas carregada de expectativa — o chocolate que a Lívia tanto queria… eu fiz. E trouxe comigo.
Lívia se iluminou. O sorriso escapou antes mesmo que ela pudesse disfarçar, aquele tipo de alegria pura que quebra qualquer protocolo de nobreza. Os olhos brilharam, e ela até ajeitou os cabelos como quem tenta fingir que não ficou empolgada demais.
Annabelle, por outro lado, arqueou uma sobrancelha.— Chocolate? — repetiu, como se ele tivesse falado em uma língua morta.Seu olhar se voltou para Fábula, que apenas balançou a cabeça com uma negativa sutil. Até mesmo a velha serva, com anos de experiência e um leque de conhecimentos, estava no escuro.
Foi aí que Renier se levantou com calma, pegando a bolsa ao lado da poltrona. De dentro, retirou uma caixa em formato de coração vermelho, com um laço dourado trançado como uma borboleta pousada em flor. Ele segurou o objeto com uma reverência quase cerimonial e o colocou sobre a mesa, entre ele e Lívia.
— No lugar de onde venho — explicou — é costume entregar coisas doces, principalmente chocolate, a uma dama… com elegância. Mas o gesto nunca vem sozinho. Ele sempre carrega um pedaço dos sentimentos de quem o oferece.
Annabelle inclinou-se, olhos afiados como lâminas, analisando o gesto, o objeto, a intenção por trás daquelas palavras. Fábula também se aproximou, discretamente curiosa, mas profissional como sempre.
Renier se sentou novamente, cruzando uma perna sobre a outra, gesticulando com a mão aberta.
— Pode abrir, Lívia.
Ela hesitou por um instante, como se aquilo fosse algo precioso demais pra ser tocado. Annabelle já estava de olhos arregalados, fixos no símbolo do coração, algo raro e carregado de significado. Lívia então puxou o laço com delicadeza, quase como se não quisesse desfazer a beleza do pacote.
Ao abrir a caixa, revelou-se uma coleção de chocolates artesanais, cada um com uma forma diferente: flores, estrelas, luas crescentes, e até um dragãozinho esculpido. O brilho do chocolate reluzia sob a luz da sala, como pequenas joias feitas de cacau.
— Eu usei um pouco de magia para facilitar o trabalho — disse Renier, casualmente, como quem fala que adiciona uma pitada de sal — mas o mais importante é que… coloquei todos os meus sentidos em cada um deles. Sabor, forma, intenção… cada pedaço é uma parte do que senti enquanto os criava.
Lívia olhou para os doces, depois para Renier. Não era apenas chocolate. Era poesia em forma sólida. Era confissão sem palavras. Era um gesto que ultrapassa as regras daquela casa.
Annabelle encostou o leque nos lábios, mas desta vez não para esconder um sorriso, e sim para conter a avalanche de perguntas e interpretações que estavam vindo. Uma coisa era certa: Renier acabava de lançar uma bomba diplomática em forma de presente doce.
E talvez, só talvez… ele tivesse ganhado mais do que pontos com Lívia.
Renier ajeitou-se com elegância na cadeira, repousando um dos braços sobre o encosto enquanto olhava para as três mulheres à sua frente.
— Lívia, pode comer se quiser — disse ele, com um leve sorriso de canto. — Mas também gostaria de ouvir a opinião da senhorita Annabelle… e da governanta Fábula, se não for incômodo.
Annabelle ergueu as sobrancelhas, levemente surpresa com a cortesia. Ela fechou o leque com um estalo suave, depositando-o ao lado com graça calculada.
— Nesse caso… farei isso, sim — respondeu com naturalidade, embora seus olhos deixassem claro que já estava intrigada com a cena há tempo demais para resistir.
Ela pegou um dos chocolates. Um pequeno bombom com o símbolo de uma coroa estampado no topo. Observou o doce com um ar reflexivo, quase desconfiado, como se não soubesse se era fofo demais ou sofisticado demais para ter vindo das mãos de um homem como Renier. Mas estava curiosa.
Enquanto isso, Renier apontou para outro chocolate da caixa, um em formato de dragão com asas abertas.
— Fiz esse para você, Lívia. Ontem, você comentou que gostaria de voar num dragão algum dia…
Lívia sorriu sem disfarçar, e suas bochechas coraram de leve. O sorriso dela era como uma aurora delicada, e o modo como segurou o chocolate, como se fosse uma relíquia, mostrou que aquilo tinha mais significado do que ele poderia ter previsto.
Do outro lado, Fábula hesitou ao estender a mão. Tocou o chocolate com a ponta dos dedos, mas não o pegou de imediato.
— Um presente tão especial… não seria adequado que uma empregada aceitasse isso de um cavalheiro.
Renier virou-se para ela, seu tom firme mas caloroso.
— Se é você quem cuida da senhorita Annabelle e da senhorita Lívia, então é tão especial quanto elas. — Ele manteve o olhar sobre Fábula, falando com respeito sincero. — Você não deveria se diminuir por seu status. Toda vida tem valor, e cada um tem seu lugar no todo. O que você faz… é essencial.
O ar na sala mudou. Annabelle deu um leve sorriso de aprovação e, virando-se para Fábula, falou:
— Ele tem razão. E, por minha parte, você tem permissão para comer junto conosco. Afinal, como ele mesmo disse… você é da família.
Fábula tentou manter a postura impassível, como uma profissional que é treinada para não se abalar — mas Renier, com seus instintos afiados, sentiu a mudança na aura dela. Algo ali se suavizou. Uma muralha cedeu um centímetro.
— Nesse caso… não farei desfeita — disse ela, sentando-se ao lado de Renier. A espontaneidade do gesto contrastava com sua postura rígida e delicada, digna de uma nobre que viveu como criada.
Renier estreitou os olhos por um instante, captando algo… mas não disse nada.
Fábula escolheu um chocolate em forma de floco de neve, observando a textura com curiosidade contida.
Quase ao mesmo tempo, as três levaram seus doces à boca. O estalo sutil do chocolate partindo entre os dentes ecoou baixo, como uma pequena sinfonia íntima. As três colocaram a mão sobre os lábios num gesto educado, mas não conseguiram disfarçar: a surpresa as atingiu como uma onda doce.
As pupilas dilataram. Os olhos brilharam.
Renier não aguentou. Riu, divertido com a reação.
— Então… aprovaram o sabor?
— Isso é melhor que batata doce! — exclamou Lívia com entusiasmo, arrancando um riso leve de todos. A sinceridade dela era um bálsamo.
Annabelle, por sua vez, cruzou as pernas e deu um sorriso maroto, segurando outro bombom.
— Você tem mesmo habilidade com as mãos, Renier. Na nobreza, doces assim são raros… e tão bem feitos, ainda mais. — Ela lançou um olhar enviesado. — Passou no meu teste.
— Teste…? — murmurou Renier, franzindo o cenho. Mas achou melhor não cavar mais fundo e simplesmente seguiu o fluxo.
Fábula, ainda saboreando o floco de neve, falou com calma:
— É possível… reproduzir essa receita?
Renier assentiu.
— Posso passar depois os passos e os ingredientes. Alguns são diferentes, mas consigo ajudá-la a encontrá-los.
Ela assentiu de volta, com um sorriso discreto.
— O trato está feito, então.
Enquanto ele respondia, as três voltaram à conversa animada, ocasionalmente pegando mais chocolates da caixa, uma disputa velada para ver quem ia pegar os melhores formatos antes que acabassem.
Renier observou a cena por alguns segundos, satisfeito. Mas não pôde evitar o pensamento que atravessou sua mente como um trovão:
“Será que devo avisar que comer muito chocolate engorda?”
Preferia ficar quieto. Às vezes, a sabedoria está no silêncio. Especialmente quando se trata de mulheres felizes comendo chocolate.
Continua…

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.