Capítulo 106: Melusine, a Herdeira da Aurora Estelar.
Os passos de Mirella soavam nítidos pelos corredores do Palácio Imperial, cada toc ritmado dos saltos brancos ressoando como tambores de uma cerimônia prestes a começar. As paredes altas, cobertas por tapeçarias de antigas vitórias, observavam-na como sentinelas do passado. Acima, vitrais encantados projetavam uma dança de luzes douradas sobre o chão de mármore, pintando a Imperatriz com os tons do sol e da história.
Mas dentro dela, o cenário era outro.
Um redemoinho de dúvidas e lembranças girava incessante, como folhas levadas por um vento antigo. Por fora, Mirella exalava graça e autoridade. Por dentro, era uma mãe preocupada, e uma guardiã de verdades perigosas.
O palácio inteiro estava em estado de efervescência controlada. Criadas cruzavam os corredores com flores encantadas em cestas levitantes, bardos afinavam harpas feitas de prata viva, cavaleiros se alinhavam no pátio com armaduras reluzentes. E mesmo com tudo isso ao seu redor, era a ausência de uma única figura que ocupava seus pensamentos.
— Onde você está, Melusine? — sussurrou, os lábios quase imóveis, como se temesse que o palácio pudesse escutá-la.
Desde o momento em que Melusine chegou ao castelo, ainda bebê, envolta em panos escuros com escamas prateadas visíveis na nuca, os anciãos haviam sussurrado. Era um mistério, um presságio, um fardo. Mas Mirella não hesitou. A abraçou como filha. Como sangue. Como destino.
A pequena nunca foi fácil. Não sorria. Não chorava como as outras crianças. Observava. Com olhos cor de âmbar queimado e um silêncio que fere mais do que palavras. Sempre havia algo dracônico naquela menina. Algo ancestral, como se a alma dela tivesse sido moldada nos dias em que os céus ainda rugiam com asas cósmicas.
E mesmo assim… Mirella a amava.
Com todo o instinto de uma mãe que sabia, no fundo da alma, que o mundo jamais a entenderia como ela entendia. Que o coração de Melusine era feito de estilhaços, e que amar aquela criança era como abraçar uma tempestade.
Mas havia um pedaço dela, escondido. Um espaço que nem Mirella conseguia tocar. E ela sabia por quê.
Melusine não conheceu o pai. Pelo menos… era isso que todos acreditavam.
A versão oficial era simples: o pai da princesa morreu em missão diplomática antes do nascimento. Uma tragédia nobre. Aceitável.
Mas a verdade?
Ah, a verdade queimava como o sopro de um dragão estelar.
Mirella havia guardado aquele segredo sob sete chaves, nas profundezas do seu coração, e, como Rainha, ela carregaria esse fardo até o fim de seus dias. Porque Melusine não era apenas uma elfa. Ela era herdeira de uma linhagem extinta. Filha de uma criatura lendária, de um espírito antigo, que não deveria mais existir.
E isso… não poderia jamais ser revelado.
Quando chegou à porta da biblioteca, Mirella parou. A madeira escura estava decorada com entalhes de rosas e runas esquecidas. Era o refúgio de Melusine, seu ninho silencioso. Lá, ela mergulhava em grimórios antigos, mapas estelares e poesias escritas por vozes mortas há milênios. Um lugar onde ninguém podia tocá-la, exceto Mirella.
Hoje é o dia, pensou. O dia em que minha coroa se torna fardo… e minha filha precisa estar ao meu lado.
Ela pousou a mão na maçaneta fria. Respirou fundo, sentindo o vestido se mover como bruma ao redor de suas pernas.
E então, com um giro firme, abriu a porta.
A luz suave da biblioteca escorreu como mel pelo corredor, e, por um instante, tudo parou.
Com todo o respeito que sua coroa exigia e toda a humanidade que o coração permitia, Mirella Light parou diante da imponente porta da biblioteca imperial. Ela, que comandava conselhos, domava nobres orgulhosos com um só olhar e sustentava um império com a voz firme, agora hesitava. Porque ali, do outro lado daquela madeira silenciosa, não estava uma ameaça política ou um inimigo militar, estava sua filha. E, para uma mãe… isso sempre seria o mais difícil.
O medo não vinha de algo concreto, mas da distância invisível entre elas. Melusine, aquela pequena criatura envolta em escamas sutis e olhos de tempestade, era um enigma desde o primeiro choro abafado que ecoou nos corredores do palácio. Mesmo agora, às vésperas de sua primeira aparição pública como Princesa Herdeira do Vale das Rosas Brancas, ela permanecia ausente, isolada, protegida pelas muralhas de livros e silêncio da biblioteca encantada.
“Será timidez… ou é algo mais profundo?” pensava Mirella. “Uma rejeição instintiva ao mundo ao redor? Ou apenas o fardo de carregar um sangue que nem mesmo eu consigo compreender completamente?”
Dragões não se adaptam. Eles desafiam. Eles resistem. E Melusine era filha da mais antiga dessas feras, mesmo que nunca tivesse conhecido a sua verdadeira mãe, a lendária… O Dragão das Estrelas, cujo corpo colossal repousava em silêncio na montanha amaldiçoada da Espinha do Dragão. Uma mãe que a corte acreditava ser uma invenção, um mártir nobre de tempos de guerra… quando, na verdade, era uma criatura cuja existência desafiava as leis do mundo conhecido.
“Ela é forte. Inteligente. Corajosa. Não será vencida por olhares ou rumores”, pensou Mirella, reunindo o pouco de firmeza que lhe restava. Então, girou a maçaneta com um gesto firme, e o santuário se abriu.
A biblioteca imperial era um mundo à parte.
As sombras dançavam ao redor das estantes altas como torres, e o ar era preenchido pelo cheiro de pergaminhos antigos, cera encantada e um leve toque de cinzas frias, como se o tempo tivesse parado ali dentro para respirar mais devagar. Os vitrais laterais, cobertos por encantamentos para proteger o saber, deixavam entrar apenas a luz filtrada do entardecer, criando um mosaico de cores suaves sobre o chão de mármore polido.
Cada passo da Imperatriz ecoava como batidas de coração solitárias em meio ao silêncio absoluto. As estantes, vivas com magia antiga, sussurravam ao passarem por ela. Tomos vibravam levemente, como se saudasse a sua presença, ou a da filha que tanto ali vivia.
Ela sempre se esconde entre as histórias, pensou Mirella. Talvez porque nos livros ela encontre o que o mundo real se recusa a oferecer: compreensão.
E ali estavam eles, os volumes sobre as guerras contra os Forjanos do outro lado do mar, os conflitos com os Lizardmans Carmesim ao sul, e os relatos apagados de batalhas perdidas na névoa do tempo. Mas entre todos eles, o que atraía Melusine como mariposa ao fogo eram os registros da Montanha Proibida… a Espinha do Dragão.
Diziam que até hoje os céus trovejam sobre ela com uma fúria que não conhece repouso. Que os ventos uivam como lamentos e que criaturas deformadas pelo poder residual do Dragão das Estrelas espreitam entre as rochas. Alguns viajantes falavam de olhos no escuro. De rugidos noturnos. De marcas no chão que pareciam recém-formadas, como se a criatura jamais tivesse realmente morrido.
Mirella sempre rejeitou essas histórias como exageros supersticiosos. Mas em seu íntimo, nunca pôde apagar a imagem do corpo colossal de escamas prateadas, do sangue cósmico derramado sobre a neve, nem da voz que ecoou uma última vez dentro de sua mente, dizendo para protegê-la. Para protegê-la dele mesmo.
Ali, história e poder mágico se entrelaçam, formando um santuário onde apenas o merecedor Melusine, com seu sangue e herança talvez pudesse entender a profundidade de cada palavra e cada conjuração.
Parando próxima à seção de magia avançada, ela lançou um olhar perspicaz à sua volta, tentando sentir a presença de Melusine. Por um momento, a solidão daquele espaço quase o convenceu de que ele não estava ali.
Mirella observava em volta, com os olhos fixos nas sombras da biblioteca, o peso da incerteza apertando seu peito. Estaria realmente Melusine ali? A dúvida se espalhava por sua mente enquanto ela hesitava, prestes a voltar atrás. Um suspiro suave escapou de seus lábios, quase como se fosse um sinal de derrota, uma sensação de que, mais uma vez, estava sozinha na tentativa de alcançá-la. Mas então, algo aconteceu.
Um pequeno brilho, como uma estrela distante, surgiu repentinamente diante de seus olhos, interrompendo seus pensamentos. Mirella ficou parada, fascinada. O brilho se movia graciosamente diante dela, como se dançasse ao ritmo de uma melodia invisível. Seu espírito, tão pesado de preocupações, foi, por um instante, tocado pela leveza daquela visão. O brilho rodopiava e saltava no ar, quase como se convidasse a Imperatriz a se perder naquele espetáculo efêmero.
E então, em um flash de luz suave, o brilho disparou para o topo da biblioteca. O teto, antes escuro e opaco, se transformou diante de seus olhos. Foi como se o cosmos inteiro tivesse se derramado ali, estrelas, planetas, meteoritos e nebulosas formavam um cenário espetacular, como se ela estivesse em pleno espaço sideral. Mirella ficou encantada, sem palavras, seus olhos fixos naquele panorama que nunca sequer imaginara ser possível.
Um suspiro de admiração escapou de seus lábios, e ela ficou ali, absorvendo cada detalhe, admirando a beleza única diante dela, algo que jamais poderia ter concebido em sua vida.
Mas, antes que pudesse processar completamente aquela visão, algo mais aconteceu. De repente, ela sentiu uma presença atrás de si. Antes que pudesse reagir, algo a envolveu em um abraço suave, e uma voz familiar falou suavemente em seu ouvido.
— Feliz aniversário, mamãe!
Mirella ficou surpresa, seus olhos se arregalaram ao reconhecer a voz. Quando se virou, viu Melusine, a jovem de 16 anos, com um sorriso leve e cheio de ternura.
Ao surgir diante dos olhos atentos, Melusine parecia uma visão arrancada de um devaneio celeste, tão bela e etérea que por um instante o mundo parecia prender a respiração só para contemplá-la.
Sua silhueta esguia era emoldurada por longos cabelos prateados que fluíam como uma cascata de luz lunar, entrelaçados por fitas lilases e presilhas de flores mágicas que dançavam ao menor toque do vento. Uma tiara de hastes negras, adornada com flores cósmicas, repousava sobre sua cabeça, como uma coroa discreta, mas inegavelmente régia.
Seus olhos, de um violeta cintilante, pareciam conter galáxias adormecidas, profundos, belos, e perigosamente hipnóticos. Carregavam em si um brilho melancólico, como se ela visse além da matéria, atravessando véus do tempo e da realidade mágica.
A vestimenta mágica que vestia era uma mescla sublime entre delicadeza e ousadia. Um vestido curto, de tecido translúcido e cortes assimétricos, revelava partes estratégicas da pele, como se a própria Melusine dançasse entre o sagrado e o profano. Tons de branco puro, lavanda e violeta profundo se entrelaçaram em laços e camadas, com detalhes florais e borboletas encantadas bordadas nas bordas, símbolos vivos de sua magia ancestral.
Ramos de energia roxa serpenteavam por seus braços e pernas como tatuagens místicas, enquanto luvas e meias longas envolviam seus membros com a suavidade de névoa estelar, reforçadas por laços de energia que pareciam respirar junto com ela. A saia, ondulante como névoa num campo encantado, se abria em pétalas que flutuavam levemente, mesmo sem vento, uma lembrança constante de sua herança não-humana.
Melusine não apenas caminhava. Ela pairava. Era como se a própria criação reconhecesse nela o sangue primordial.
Não de reis ou rainhas, mas de dragões celestes, de estrelas nascidas em agonia e renascidas em forma de uma garota.
A Rainha, ainda um pouco atordoada pela surpresa, riu suavemente ao perceber o que estava acontecendo. — Ah, você! Agatha ajudou você a armar isso contra mim, não foi? — disse ela, com um tom afetuoso, mas um tanto exasperada, antes de abrir os braços e abraçar Melusine com carinho.
Melusine, sorrindo ainda mais, confirmou com um leve aceno. — Você acertou. Perguntei a Agatha o que você mais gostava, e ela me disse que adorava ver as estrelas, mas que nunca tinha tempo para isso, devido a todas as suas responsabilidades como princesa e agora como Rainha.
Ela olhou para o teto, seu olhar cheio de concentração. — Então, eu usei meu poder para trazer as estrelas até você, mãe. Agora, você pode vê-las quando quiser. — Ela olhou-a com um brilho de expectativa. — Você gostou do presente?
Mirella, com o coração aquecido pela surpresa, o abraçou com mais força, como se quisesse se perder naquele momento de afeto e gratidão. — Foi o presente mais precioso e belo que alguém poderia me oferecer — disse ela, sua voz embargada pela emoção.
Mas, no fundo, um pensamento persistia em sua mente. Por um momento, ela temera que Melusine sua filha a estivesse evitando, que sua natureza como dragão fosse a afastar dela, que Melusine a desprezasse de alguma forma.
Ela odiava ter pensado assim, odiava a ideia de que ela pudesse não a ver como sua mãe verdadeira.
Mas naquele momento, enquanto o abraçava, tudo aquilo parecia se dissipar. Melusine não estava apenas ali. Ele estava oferecendo a ela algo mais profundo, algo que ela jamais imaginara: uma conexão verdadeira entre mãe e filha, transcendendo a complexidade de sua origem e de sua natureza. Ele era, sem dúvida, sua filha, e ela a amava com tudo o que tinha.
Continua…
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