Capítulo 108: A Coroação da Rosa e do Fogo.
Com a mesma fluidez de uma folha levada por uma brisa mágica, o livro escuro flutuou suavemente das mãos de Melusine, retornando à estante como se tivesse vida própria. Nenhum gesto físico, nenhum esforço aparente, apenas o comando silencioso de uma garota que não precisava impor poder para que ele a obedecesse.
Mirella observou a cena com um sorriso quase reverente.
Como ela cresceu… pensou, com o coração aquecido. Aquela magia fluida, espontânea… tão distinta da rigidez dos magos da corte ou da disciplina dos conjuradores élficos. Era como se a própria essência do mundo respondesse ao toque da filha, não por submissão, mas por respeito. Por afinidade ancestral.
Seus olhos percorreram Melusine de cima a baixo. O traje cerimonial, tecido com fios encantados de prata e detalhes em azul estelar, a envolvia com uma elegância que parecia negar sua relutância com o mundo. Ela parecia uma princesa. Uma rainha em formação.
— Você está realmente bonita, filha — disse Mirella, a voz gentil, cheia de orgulho. — Parece até uma princesa… Vai tentar impressionar alguém na festa depois da cerimônia?
Melusine ergueu uma sobrancelha e riu baixinho, como se a ideia fosse tão improvável quanto divertida.
— Eu não conheço muitos jovens fora do Palácio… além das empregadas e da Agatha — respondeu, com um ar de leve indiferença. Mas havia algo ali, uma faísca escondida… talvez curiosidade, talvez melancolia.
Enquanto Mirella caminhava até a mesa, os olhos se detiveram sobre os livros abertos. Um deles, em especial, chamava sua atenção. A encadernação antiga, o símbolo dracônico entalhado na capa… Dragões e Linhagens Perdidas. Ela tocou a superfície do tomo com delicadeza, como se temesse despertar memórias esquecidas.
Melusine, atenta, quebrou o silêncio com a voz suave, quase distante:
— Esse livro é só uma referência. Estava tentando entender mais sobre… a biologia da minha espécie. Não é como se eu soubesse muito.
Mirella assentiu, compreendendo sem invadir. Ela conhecia bem aquela busca: a ânsia por se entender, por se encaixar entre dois mundos. A sensação de viver entre mitos e expectativas, sem saber a própria forma.
— Eu entendo… — disse ela, devolvendo o livro à mesa com ternura. — Mas também precisa começar a conviver com outras garotas. Sei que o palácio pode ser uma redoma, mas você é uma princesa agora, Melusine. Haverá pessoas… pretendentes. Corações que baterão só de te ver.
O aviso vinha com carinho, mas também com um receio velado. O medo de que a solidão se tornasse uma prisão para a filha. De que o sangue dracônico a afastasse demais da vida que merecia viver.
Melusine deu um leve suspiro e encolheu os ombros, a expressão se tornando amarga.
— Eu duvido que alguém queira se casar com alguém que literalmente nasceu do corpo de um dragão morto.
A frase caiu como uma espada. Fria. Cruel. E profundamente triste.
Mirella parou.
O sorriso desapareceu de seu rosto. O olhar, sempre sereno, agora era firme, quase duro.
— Não diga uma coisa dessas novamente — a voz dela cortou o ar como vento gelado nas montanhas. — Você não é “apenas” filha de um dragão morto. Você é Melusine Light. Herdeira de um ser que transcendeu o tempo, a carne, os céus. Uma continuação viva do Dragão das Estrelas. Você é amada. E será amada. Mas precisa permitir que isso aconteça.
Deu um passo à frente.
— E não esqueça: sua mãe… aquela criatura que todos temem, veneram e mitificam… ela escolheu te deixar comigo. Ela confiou a você este mundo. E isso é mais do que sangue. É destino.
Melusine sustentou o olhar da mãe. Nos olhos dourados, havia raiva. Medo. Mas também… um brilho diferente. Um começo de compreensão. Um reconhecimento silencioso de que não estava sozinha nesse fardo.
— Eu entendo, mãe… — murmurou, mais suave. — Eu não queria desonrar o legado dela… Mas é difícil. Não sei o que fazer com tudo isso.
Mirella pousou uma das mãos sobre seu ombro, com o carinho de quem ampara o mundo inteiro — e, ainda assim, o faz com gentileza.
— Está fazendo o suficiente, filha. E isso já é mais do que muitos jamais conseguirão. Agora venha… o mundo está esperando por nós.
Melusine assentiu, sem palavras. Pela primeira vez, sentia-se menos um erro e mais… uma herdeira. Uma chama viva de algo antigo e poderoso.
Juntas, deixaram a biblioteca. Os passos ecoaram pelas colunas silenciosas. Atrás delas, os livros começaram a se fechar sozinhos, um a um, retornando às suas prateleiras com leveza encantada, como se a própria biblioteca reconhecesse que algo havia mudado.
⟁⪻⪼𓆩༒𓆪⪻⪼⟁
A cerimônia de coroação seguiu com a pontualidade quase sobrenatural que apenas o Império das Rosas Brancas sabia manter. O salão, uma verdadeira ode à opulência refinada, estava tomado por elfos ancestrais, nobres da corte alta, chefes de tribos dos Quatro Vales e representantes das linhagens dos Dragões Carmesins vassalos, todos vestidos com suas melhores intenções bordadas à mão, envoltos em camadas de seda, gemas encantadas e sorrisos que escondiam facas.
O teto era sustentado por colunas de mármore branco entrelaçadas com vinhas vivas encantadas, que floresciam em rosas brancas conforme a magia do local pulsava suavemente no ar. As paredes reluziam em tonalidades peroladas, e as rosas que as adornavam não estavam ali apenas para beleza — seus espinhos encantados tinham a reputação de sangrar invasores antes que pudessem sequer tocar o chão. Um lembrete elegante de que, no Império das Rosas Brancas, a estética vinha sempre acompanhada de ameaça sutil.
Enquanto os olhos de todos estavam fixos no trono onde Mirella Light, agora Imperatriz consagrada, recebia os votos e as promessas cerimoniais, havia uma figura à parte, observando de um canto menos iluminado do salão.
Melusine.
A princesa.
Ou, para os que realmente sabiam: o enigma de escamas prateadas e sangue estelar.
De pé junto a uma das janelas arqueadas do salão, com um cálice de néctar celestial nas mãos e o olhar distante, ela parecia uma pintura viva emoldurada pela luz do entardecer. O vestido que usava, bordado com constelações dracônicas e detalhes lunares, não era imponente por si, mas a maneira como o usava fazia dela uma presença impossível de ignorar. Beleza fria, quase etérea, combinada com uma postura de quem observa tudo… e julga em silêncio.
Os murmúrios não demoraram a nascer.
— Ela é mesmo filha da Imperatriz?
— Mas… há algo estranho nela. Aqueles olhos…
— Dizem que nasceu de um ovo encontrado entre os ossos do Dragão das Estrelas…
Enquanto os príncipes ajustavam as gravatas mágicas e as princesas sorriam como flores venenosas, os olhos escapavam para ela com curiosidade e desejo camuflados. Alguns, invejosos. Outros, perigosamente fascinados.
Mas Melusine… apenas bebia.
Indiferente. Atenta. Letal, sem precisar mover um dedo.
— Princesa, você não pretende socializar um pouco com os outros da sua idade? — veio a voz gentil, porém firme, de Agatha, aproximando-se com aquele andar que só as veteranas do palácio sabiam ter. O coque impecável, o laço em forma de borboleta e os olhos de quem via mais do que dizia.
— Muitos desses convidados estão aqui só para tentar uma ligação direta com minha mãe. — respondeu Melusine, com a frieza de quem já tinha lido o jogo antes mesmo de ser convidada a jogá-lo. — Não é amizade que eles buscam. É influência. Herança. Vínculo de poder.
Agatha ergueu levemente a sobrancelha. Não estava surpresa. Apenas impressionada com a lucidez brutal da jovem.
— Você tem um bom olho. Muitos dos adultos aqui foram oferecidos em casamento antes mesmo de falarem suas primeiras palavras. — ela disse, com ares de quem conhecia os bastidores melhor que os salões. — E não são só nobres. Mercadores, banqueiros, líderes comerciais do Leste vieram como se fossem nobres… com suas filhas e herdeiros.
Melusine se virou um pouco, avaliando os convidados com um novo filtro. Não apenas adversários sociais. Eram caçadores. Observadores. Investidores emocionais.
— Então até o ouro quer sentar à mesa da realeza… — murmurou, com ironia.
— O Império das Rosas Brancas nunca esteve tão florescente. E onde há flores… há abelhas. E veneno. — Agatha completou, com um sorriso quase maternal.
— Vi alguns que fingem bem. Mas… todos estão vazios. — disse Melusine, dando de ombros. — Como se estivessem esperando que eu desempenhasse um papel num teatro que não escrevi.
— E ainda assim, princesa, todos os olhos estão em você. — sussurrou Agatha, inclinando-se levemente, como se entregasse um segredo. — Talvez um dia encontre alguém que te olhe… sem te medir.
Melusine desviou o olhar, pensativa. As palavras da governanta ficaram suspensas no ar por um instante, como poeira encantada entre os feixes de luz.
Enquanto o salão fervia com promessas sussurradas, alianças forjadas em taças e contratos de casamento dançando sob véus de risos, Melusine permaneceu imóvel. Um pilar sereno e distante em meio ao redemoinho de ambição. Ainda não sabia seu papel nesse tabuleiro de rosas e espinhos, mas sabia de uma coisa:
Ela não seria uma peça.
Seria a jogadora.
Ou, quem sabe… a quebra do jogo.
Continua…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.