Capítulo 109: A Caverna da Morte.
Com a espada curta em mãos, Renier seguia à frente como uma sombra viva guiando a marcha silenciosa pelo interior do Vale Carmesim. O ambiente, sombrio e sufocante, não permitia extravagâncias, qualquer som alto podia chamar o que estivesse espreitando nas trevas. Por isso mesmo, ele estendeu para Priscila um escudo reforçado, digno de vanguarda.
— Boa escolha de arma, Renier — murmurou a General, caminhando ao lado dele. — Uma espada de uma mão dentro de uma caverna… isso é básico de expedição. Você tem experiência em campo?
— Na verdade… RPG — respondeu ele, com um sorriso de canto.
— RPG…? — Priscila repetiu, franzindo o cenho. — Isso é algum tipo de regime de treinamento?
Renier quase deixou escapar uma gargalhada. Por um breve segundo, esquecera que aquele mundo não sabia o que era um videogame.
— Algo assim — respondeu, vagamente. — Vamos dizer que… aprendi com simulações interativas.
Não valia a pena explicar que “não usar espadona em caverna estreita” era o feijão com arroz de qualquer jogador mediano. E ali, naquele mundo, isso soava como tática militar de elite.
A voz da Administradora surgiu pelo comunicador em sua máscara:
— Há uma fonte de energia logo à frente. Recomendo cautela. A interferência cósmica do Dragão morto pode estar afetando a estrutura local… ou pior.
Renier assentiu em silêncio e seus passos se tornaram mais cadenciados, mais focados. Um aviso mudo foi suficiente para que Priscila assumisse posição defensiva, seu escudo protegendo Annabelle, Lívia, Fábula e Luna, que usava os sentidos aguçados para manter os arredores monitorados.
Mas algo… incomodava Renier. Havia um vazio no ar. Não era só a escuridão ou o silêncio.
Era a falta de calor.
Nenhuma brisa quente. Nenhuma oscilação de temperatura. Era como respirar dentro de um túmulo selado.
— Isso não é só atmosfera — murmurou ele para a Administradora. — É o tipo de sensação que faz você pensar duas vezes antes de respirar fundo.
— Pode ser pior do que pensávamos — respondeu ela. — A radiação mística residual do Dragão Cósmico pode estar impregnando os Quatro Vales. E esse é só o começo.
Renier parou à beira de uma bifurcação.
— Esperem aqui — ordenou, voltando-se para as garotas. — Vou verificar mais à frente. Priscila, comigo.
Ela não hesitou. A sincronia entre seus passos e o eco metálico de sua armadura era como um tambor de guerra em volume baixo. Juntos, avançaram sob a cúpula da caverna até que o som das gotas d’água se fez mais forte, guiando-os.
Os olhos azuis da máscara de Renier brilharam. O sistema de ampliação visual — os Olhos das Revelações — ativou, expandindo sua percepção como um sonar. Foi então que viu.
Uma figura.
Andando cambaleante, envolta em armadura enferrujada. Ombreiras desequilibradas, elmo corroído, espada gasta demais até para um ferreiro de fundo de taverna.
Renier levantou a mão.
— Ei! Tá perdido aí ou só decidiu virar mob de dungeon?
A figura parou. Se virou.
E gritou.
Não uma palavra, não um som articulado. Um berro primal. Selvagem. Irracional.
— Hostil — disse Priscila, erguendo o escudo. Mas Renier já caminhava.
— Parece até tutorial de jogo novo… movimentos sem inteligência — comentou a Administradora.
O ataque veio, desajeitado. A espada cortou o ar com lentidão, pesada como chumbo. Renier apenas girou o corpo e, com um chute no escudo da criatura, a fez perder o equilíbrio. O oponente rodopiou e caiu no chão com um estrondo.
Sem dar chance, Renier pisou sobre o escudo, imobilizando-o.
— Consegue falar? Pensar? Qualquer coisa?
A resposta foi uma tentativa desesperada de alcançar a espada caída. Sem foco. Sem alma. Apenas… impulso.
E Renier percebeu.
— Ele não tem calor.
A constatação caiu como uma sentença. Nenhuma fagulha de vida. Nenhuma energia vital. O que quer que fosse, aquilo já estava morto.
Suspirou. Com um gesto rápido, pressionou o escudo com mais força até que o som cessou. O corpo parou de se mover.
— Agora tá morto de verdade — comentou ele, meio sarcástico, meio cansado.
Priscila se aproximou, olhando o corpo no chão.
— Já foi humano?
Renier respondeu em tom grave:
— Provavelmente. Tinha alma. Teve propósito. Agora… só restou o invólucro.
Renier manteve-se imóvel por alguns segundos, com os olhos fixos no cadáver aos seus pés. Havia um silêncio sepulcral ali, mas dentro dele… algo fervia. Uma raiva branda, silenciosa, que crescia como magma sob uma superfície fria.
Se até ali, nas entranhas das montanhas do Vale Carmesim, cadáveres sem alma andavam como bestas… então quantos mais estavam adormecidos, apenas esperando?
Ergueu os olhos.
A escuridão à frente parecia respirar. Pesada. Viscosa. O tipo de escuridão que não apenas oculta, ela observa de volta.
Mas Renier não era qualquer explorador. Sua máscara projetou uma camada translúcida de interface. Um sussurro digital da Administradora ressoou em sua mente:
— Detectando múltiplas presenças adiante… não são dois… nem cinco…
Pontos começaram a acender no visor, dezenas. Talvez centenas.
E então, como se respondessem à detecção, olhos brancos se acenderam no escuro.
Sem vida. Sem emoção. Apenas… presentes.
Priscila ergueu seu escudo num reflexo automático. Com a outra mão, ativou a espada mágica. O feixe de luz azul da lâmina rasgou a penumbra, revelando o verdadeiro horror.
A luz trouxe a morte à tona.
Eles estavam por toda parte. Soldados, de armaduras variadas, misturando estilos de diversas culturas e eras. Magos com mantos esfarrapados, mercadores com seus cintos de moedas corroídas. Navegadores, piratas, caçadores, assassinos, guerreiros com brasões esquecidos… até aventureiros solitários. Um cemitério andante de todos os que ousaram entrar ali.
— O que são essas coisas…? — murmurou Priscila, um tom de incredulidade vazando por sua garganta.
Renier recuou um passo com calma e analisou. Seu olhar percorreu os brasões, as armas… os detalhes.
— Recue… — disse com uma frieza treinada. — Com calma.
A voz da Administradora veio, grave, direto pela interface:
— Todas essas pessoas… tentaram atravessar o Vale Carmesim ao longo dos séculos. O ambiente é tão seco e hostil que os corpos não podiam se decompor. Sem umidade. Sem bactérias. Mas… as almas se foram.
Renier apertou o cabo da espada.
— A energia cósmica… — murmurou ele. — A radiação do Dragão morto. Ela está envenenando os Quatro Vales. Esses corpos… estão sendo reanimados.
Não por magia negra tradicional. Não por necromancia. Algo mais… primordial. Algo cósmico. A força que dorme sob a Espinha do Dragão.
— Eles são múmias ambulantes. Carcaças ocas, recicladas pela energia do dragão. Um exército de relíquias esquecidas — completou ele, a voz abafada pela máscara de kitsune.
Priscila deu mais um passo para trás, o olhar girando em todas as direções.
— Tem brasões de Impérios que… eu nem reconheço. Alguns caíram há milênios. — Ela engoliu em seco. — Quantos entraram aqui… e nunca mais voltaram?
Renier ficou em silêncio por um segundo. O peso daquilo era quase esmagador. A simples existência do Vale Carmesim havia devorado eras inteiras de história. Um buraco negro de vidas, esperanças e sangue.
Ele ergueu a lâmina. Seus olhos brilharam com aquele azul etéreo e dracônico por detrás da máscara.
— Tudo aqui… está desequilibrado.
A Administradora captou a gravidade de suas palavras. A compreensão caiu como um trovão silencioso:
— A morte do Dragão das Estrelas não foi um evento qualquer. Foi uma Calamidade. Um desequilíbrio que afetou o eixo do mundo. E se toda essa devastação foi causada por apenas um Dragão Cósmico…
Ela não terminou a frase. Nem precisava.
Renier falou por ela:
— Então corrigir isso… é minha obrigação.
Silêncio.
Mas ali, entre o silêncio, o Vale começava a despertar.
As múmias erguiam espadas gastas, grunhidos ecoavam no ar seco, e o exército dos esquecidos caminhava lentamente rumo à luz. Rumo a ele.
Renier girou a espada e cravou os pés no chão.
— Priscila… hora de lutar.
— Sim, Renier. Como Guerreira, minha espada foi feita para ser empunhada até meu último suspiro…
Ela sorriu, mesmo com o medo em seu peito. O tipo de sorriso que só alguém treinado para morrer com honra poderia exibir…
Continua…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.