Capítulo 110: A Rainha e o Rugido das Estrelas.
O primeiro a avançar foi um cavaleiro montado, ou melhor, um esqueleto revestido de armadura oxidada, montado sobre um cavalo morto-vivo cujas costelas se moviam como engrenagens enferrujadas. As patas dianteiras da criatura subiram num salto animalesco, como se desafiando a própria gravidade, antes de descerem com força bruta contra Renier.
Priscila avançou sem hesitar. Escudo em riste, cravou os calcanhares no chão e recebeu o impacto.
O baque foi monumental, faíscas explodiram onde o casco encontrou o metal encantado, mas… ela não se moveu nem um centímetro.
“Mas que…” Priscila pensou, surpresa. O escudo absorveu o golpe como se tivesse enraizado na própria terra. “Isso… foi o traje dele?” perguntou-se, enquanto a força mágica pulsava em seus braços.
Mas não houve tempo para contemplações.
Renier, atento, a puxou bruscamente para trás, no exato momento em que uma rajada de magia sombria vinha serpenteando pelo ar como uma lança de sombras. Ele girou sua espada curta com fluidez, interceptando o ataque com uma explosão de luz azul etérea.
— Foco, Priscila. — sua voz cortou como aço frio. — Isso não é uma luta que a gente possa vencer no braço.
Ela recuou um passo, confusa.
— Como assim não podemos vencê-los? Já estão mortos, certo?
Renier não tirava os olhos da multidão que surgia nas sombras.
— Justamente. — respondeu ele, com calma perturbadora. — As almas deles já foram embora há muito tempo. Só restou o corpo, o instinto. E o Vale Carmesim não deixa nada morrer direito… Ele conserva. Preserva. Como se estivesse montando um exército de marionetes eternas. Você pode cortar as pernas, os braços… eles vão continuar rastejando. Eles não querem viver. Mas também… não têm permissão para descansar.
As palavras de Renier ecoaram como um julgamento sombrio.
Priscila rangeu os dentes.
— Então a única opção é atravessar esse mar de mortos… e torcer para haver mesmo outro lado.
— Exato. — disse ele, sem hesitar.
Nesse momento, Renier ergueu sua espada para o alto, e com um gesto largo e firme, desenhou um círculo diante de si. A lâmina brilhou com um azul etéreo intenso, e de seus pés ao teto da caverna, uma barreira de energia translúcida se ergueu.
A muralha mágica bloqueou a nova chuva de feitiços e lanças arcanas vindas dos magos reanimados. As magias colidiram com a barreira como ondas contra um rochedo, soltando explosões abafadas e clarões espectrais.
O som era ensurdecedor — um martelar constante de forças tentando penetrar o escudo, inúteis contra a firmeza do Guardião Negro.
— Priscila, chame as garotas. — ordenou Renier, a voz abafada pela máscara de kitsune, mas nítida. — Vamos precisar pensar numa rota de escape… Ou criar uma.
Ela assentiu com firmeza.
— Entendido!
Com uma última olhada para as hordas de mortos que se amontoavam como sombras de um mundo esquecido, Priscila recuou na direção das companheiras.
Renier permaneceu parado, espada cravada no chão, sustentando a barreira com uma aura cósmica crescente. Seu olhar azul flamejava por trás da máscara, fitando os mortos que vinham… e esperando pela próxima decisão.
Porque ele sabia: não estavam apenas presos numa caverna. Estavam atravessando um cemitério amaldiçoado… de eras esquecidas.
E o verdadeiro desafio… ainda não tinha começado.
Os passos apressados das garotas ecoaram pela caverna enquanto a barreira de energia azul ainda resistia bravamente aos ataques incessantes das criaturas cadavéricas. Priscila vinha na frente, escudo à mão, olhos atentos.
Assim que chegaram ao lado de Renier e enxergaram a maré de mortos do outro lado da barreira, magos, guerreiros, ladrões, mercadores e cavaleiros de eras diferentes, o choque tomou conta dos rostos de todas. Era como encarar um museu bélico animado por ódio e feitiçaria cósmica.
Annabelle, pálida, comentou primeiro:
— Ela disse que a gente deveria simplesmente passar por isso tudo?
— Eu disse. — confirmou Priscila, com um aceno seco. — Mas… admito que é impossível. Pelo menos sem sermos dilacerados no processo.
Fábula cruzou os braços, visivelmente contrariada.
— Essas coisas sentem. Lançam magia, atacam em grupo. Atravessar essa horda seria suicídio.
Renier não respondeu de imediato. Apenas observava, em silêncio, como se medisse variáveis invisíveis no ar.
Então, virou-se para Lívia.
— Preciso confirmar uma coisa. Lívia, consegue detectar de onde vem o ar nessa caverna?
Lívia ergueu uma sobrancelha, surpresa, mas assentiu com serenidade. Fechou os olhos, e sua aura tomou forma, uma brisa suave e esverdeada envolveu sua figura. A barra da saia tremulava como se dançasse com o próprio vento.
Sua magia varreu o ambiente como uma ecolocalização arcana, passando pelos corpos em movimento, atravessando as rochas, buscando o que Renier precisava.
— Há pequenos dutos de ventilação no fim da caverna. — disse ela, com um tom morno. — Mas são estreitos… talvez ratos passem. Nada maior.
— Então não tem saída. — lamentou Luna, os ombros caindo.
O silêncio caiu como uma rocha.
Renier apertou os dedos na empunhadura da espada. A opção de abrir caminho na força bruta estava sobre a mesa — mas expor as garotas àquela horda imprevisível era inaceitável. Ele não era só o combatente ali… era o protetor.
Foi então que uma explosão mágica atingiu a barreira, tremendo o chão.
Estalactites despencaram com um estrondo, esmagando algumas múmias abaixo — suas cabeças viraram pó, os ossos se despedaçaram… Mas, mesmo assim, elas levantaram. Troncos partidos, olhos vazios, corpos dobrados pela gravidade… e ainda se moviam.
Foi nesse instante que os olhos de Renier brilharam. Algo nele despertou.
— Eu já sei como tirar vocês daqui. — declarou, sua voz calma escondendo a gravidade do que estava prestes a dizer.
— Como assim?! — Annabelle explodiu. — Tem centenas dessas coisas, e você quer abrir caminho na base do otimismo?
Renier puxou o capuz. A máscara de kitsune se desfez em fragmentos de sombra e luz, revelando seu rosto com um leve sorriso inclinado.
— A melhor forma de continuar… é enterrar essa tumba.
— Você quer afundar a montanha? — Fábula arregalou os olhos. — Ficou louco?
— A gente está embaixo dela! — gritou Annabelle, agora quase rindo de nervoso. — Mesmo que você tenha poder pra fazer isso… nós seríamos esmagados juntos!
Renier ergueu a mão calmamente.
— Não se preocupem. Tem uma forma. E… acho que é hora de mostrar pra vocês.
Luna, confusa, inclinou a cabeça.
— Mostrar o quê?
Ele deu um passo à frente. A energia ao seu redor começou a se distorcer, como gravidade sendo dobrada. Fragmentos de poeira foram sugados para seu corpo. Um brilho cósmico começou a pulsar de dentro de seus olhos.
— Sou um híbrido… — disse com naturalidade. — Um Dragão Cósmico.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Nenhuma delas conseguiu formular palavras.
Fábula tentou abrir a boca, mas apenas piscou, como se esperasse ouvir que era uma piada. Luna parecia paralisada, enquanto Lívia e Annabelle trocavam olhares incrédulos. Priscila, porém, foi a primeira a falar.
— Isso… é impossível. Dragões não ajudam humanos. Dragões odeiam humanos. E mesmo assim você vem aqui, dizendo que é um deles?
Renier apenas virou o rosto para o fundo da caverna, onde a multidão de mortos continuava a urrar, inabalável.
— A gente não tem tempo para debate, Priscila. — disse com frieza. — Vocês querem sair daqui vivas? Então me deem espaço. Depois, podem perguntar o quanto quiserem.
Ele deu um passo adiante. Seu corpo começou a emanar uma energia que lembrava o próprio cosmos: estrelas pulsando na pele, a luz das galáxias girando em miniatura ao redor de seus ombros.
E com o chão começando a vibrar abaixo de seus pés… Renier se preparava para invocar o poder que selaria uma caverna inteira de mortos, e abriria caminho para os vivos.
⟁⪻⪼𓆩༒𓆪⪻⪼⟁
O céu do Vale Carmesim era uma tapeçaria de trevas em constante movimento. Um furacão colossal, feito de cinzas, fogo e vento, rodopiava até tocar as nuvens mais densas, marcando o céu com sua assinatura de caos. No centro de tudo, um vulcão vivo, cuspindo lava como se o próprio mundo estivesse em fúria constante.
Dentro de seu coração ígneo, ela emergia.
A lava fervia em torno de seu corpo nu, mas nada nela queimava. Ela era o fogo. A Rainha dos Dragões Carmesins, aquela cuja beleza seduzia e cuja presença incendiava. Cabelos como labaredas, dançando entre o vermelho e o dourado; olhos como rubis vivos, selvagens, ardentes, insaciáveis. Suas presas surgiam entre lábios carnudos, e sua pele morena, escorrida por lava como se fosse perfume, era uma visão tão divina quanto letal.
Ela se erguia com indolência, uma perna esticada para fora da lava como se testasse a temperatura de um banho. Observava o próprio pé com tédio felino, como se sua simples existência ali fosse uma afronta à rotina do mundo.
Lá fora, sob a muralha giratória do furacão, Wyverns batiam asas em nervosismo. Lizardmans marrons e vermelhos recolhiam-se em suas tribos, os olhos virados para o céu como se aguardassem um presságio. Os sinais estavam ali. O chão vibrava em pulsos. A respiração do próprio continente parecia contida.
A Rainha, ainda alheia, puxou uma mecha de cabelo flamejante entre os dedos longos.
— Desde que aquela maldita… O Dragão das Estrelas caiu… esses Quatro Vales não passam de uma maldita chatice sem fim… — murmurou com desprezo, a voz baixa, mas carregada de poder.
Foi então que a montanha tremeu.
Não um tremor comum. Não um deslizamento qualquer. Foi um rugido subterrâneo, ancestral. Um grito vindo do abismo da própria realidade. A lava ondulava. A caverna à distância, aquela que muitos chamavam de A Tumba dos Mortos, estremeceu violentamente.
A Rainha arregalou os olhos.
— Hmph… — murmurou, as pupilas se estreitando em fendas dracônicas.
Com um gesto casual, quase preguiçoso, ela ergueu um dedo e partiu o furacão ao meio, criando uma janela no caos.
Por aquela brecha, ela viu.
Viu os Wyverns fugindo em pânico, voando como ratos de um navio afundando.
Viu o chão afundando.
Viu as pedras se partindo, a poeira se levantando em um turbilhão, como se o próprio inferno estivesse colapsando para dar lugar a algo novo… ou antigo demais.
E então… ele surgiu.
Entre os escombros da montanha engolida, asas negras como a noite cósmica se abriram com um estalo que partiu o silêncio como vidro.
Um dragão.
Não um dragão qualquer. Aquele Dragão.
Imenso como o próprio Vale. Corpo revestido de energia estelar, escamas que brilhavam como constelações vivas. Um olhar azul que atravessava dimensões, que encarava o mundo não com ódio, mas com propósito absoluto. E um rugido…
Ah, aquele rugido…
Um som que rompeu as nuvens. Que fez os vulcões sussurrarem. Que fez a própria realidade estremecer como uma criança diante da tempestade.
A Rainha dos Dragões Carmesins sorriu.
Delicadamente, como se provasse um vinho antigo. Ela deslizou os dedos pelos próprios lábios, traçando um rastro de lava que evaporou no toque.
— Então… — ela sussurrou, com uma pontinha de excitação mal contida.
— …um Dragão Cósmico pisou no meu território.
E ali, sob o furacão partido, com a lava fervendo ao redor de seus pés e os olhos fixos na criatura que acabara de nascer, ou renascer, a Rainha sorriu como quem finalmente encontra um adversário à altura… ou um brinquedo perigoso demais para ser ignorado.
Continua…
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