Capítulo 100: Recepção da Nobreza.
A sala de convidados da mansão Morales exalava perfeição e pompa. Cada almofada havia sido meticulosamente alinhada, os doces arranjados com precisão cirúrgica, e o aroma suave de chá de jasmim pairava no ar como uma promessa de boas maneiras. O toque final foi dado pela empregada-chefe: Fábula.
De postura impecável, cabelos esverdeados escuros presos em um coque apertado, óculos que deslizavam pela ponte do nariz vez ou outra, mas que sempre eram ajustados com o dedo médio, num gesto quase mecânico, ela era o pilar da disciplina naquele lar.
No centro da sala, Annabelle Morales permanecia sentada com a graça de uma nobre que sabia muito bem o poder que exercia. Vestida com um vestido vermelho vinho que abraçava seu corpo com elegância perigosa, ela mantinha o leque aberto, cobrindo metade do rosto enquanto observava tudo com olhos calculistas.
— Fábula… — chamou, sua voz melodiosa, mas carregada de intenção. — Acha que isso basta para um convidado tão… peculiar quanto o que a Lívia descreveu?
Fábula curvou levemente a cabeça, as mãos cruzadas à frente como uma sombra da etiqueta nobre.
— Senhorita Annabelle… estou seguindo os protocolos tradicionais da recepção nobre, como manda o costume. Porém… não conheço esse homem. E a senhorita Lívia raramente traz visitas. Portanto, é difícil dizer o que o agradaria…
Annabelle fechou o leque com um estalo afiado e girou um cacho dourado entre os dedos.
— Então hoje será um teste. — disse, com um brilho de desafio nos olhos.
Fábula arqueou uma sobrancelha, algo incomum para ela. — Um teste, senhorita?
— O olhar de um homem revela mais que mil palavras. Se ele for como os outros, não merece nem respirar o ar desta casa — declarou Annabelle com um tom cortante. — Não merece a atenção da minha irmã, nem o espaço que ocupa nos sonhos tolos dela. Se esse Renier Kanemoto é mesmo esse príncipe negro que ela pintou… quero ver com os meus próprios olhos.
Fábula entendeu. Aquilo não era apenas uma recepção. Era uma triagem. Uma peneira social. Um duelo de sutilezas.
Ela curvou-se levemente.
— Entendo… usaremos o ambiente para extrair sua essência.
— Exatamente. — disse Annabelle, estreitando os olhos. — Mas não se engane, Fábula. Isso não é um conto de fadas. Não quero bolo de casamento, nem cavaleiro de armadura brilhante. Isso não existe. Só quero a verdade. Cravada na carne, se preciso.
Com isso, a filha mais velha dos Morales girou nos saltos e subiu as escadas, seus passos ecoando como os sinos de um julgamento.
Fábula observou em silêncio, o rosto impassível mesmo após palavras tão cortantes. Depois, com a mesma calma de sempre, inclinou-se em sinal de respeito.
— Tudo será feito conforme o desejo da senhorita.
E então virou-se para cumprir a ordem. O “príncipe negro” acabara de pisar no território das Morales… e a primeira batalha já havia começado, antes mesmo de ele abrir a boca.
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As imponentes portas da mansão Morales se abriram com um rangido suave, revelando o hall principal banhado por uma luz dourada e cortinas pesadas que mais pareciam véus de um teatro aristocrático. E ali, como uma peça central do cenário, estava Fábula, a empregada-chefe. Impecável, como sempre.
Seus cabelos esverdeados presos com precisão, óculos equilibrados no rosto com uma teimosia elegante, e a expressão neutra de quem já viu coisas demais para se surpreender facilmente. Ao ver o trio se aproximando, Fábula curvou levemente a cabeça em sinal de boas-vindas.
— Seja bem-vindo à casa dos Morales, senhor Renier Kanemoto — disse com uma voz firme, mas polida. — E também dou as boas-vindas às suas escoltas, senhoritas Luna e Liza.
Renier, com o semblante firme e olhos como um céu noturno em tempestade contida, retribuiu o gesto com uma leve reverência. Sua voz carregava o respeito de um diplomata, mas também a presença de um guerreiro.
— Agradeço a hospitalidade. Meu nome é Renier Kanemoto. E com todo o respeito, senhorita Fábula… Luna e Liza não são apenas escoltas. São parte de mim. Da minha família. Gostaria, se possível, que recebessem o mesmo tratamento.
Fábula o analisou brevemente. Seu olhar não era de julgamento, mas de cálculo. Como se pesasse o valor de suas palavras, sua postura… seu tudo. Por um segundo, um pequeno sorriso brotou em seus lábios — discreto, quase imperceptível, mas real.
— Como desejar, senhor Kanemoto. Você é nosso convidado. E seus desejos serão tratados com o devido respeito — respondeu com naturalidade, voltando à sua postura impecável.
— Se me acompanham, por favor. A sala de convidados está preparada. A senhorita Lívia chegará em breve… e sua irmã mais velha, a senhorita Annabelle, também.
O grupo seguiu para dentro. O som dos passos ecoava pelo mármore frio. Mas, quando chegaram à entrada principal da casa, Renier parou. Sem dizer uma palavra, retirou calmamente os sapatos. Luna, como sombra leal, fez o mesmo. Um gesto tão natural para eles quanto respirar. Mas não passou despercebido.
Liza os olhava com sobrancelha arqueada. Fábula, por sua vez, congelou por um breve segundo, franzindo o cenho com genuína curiosidade.
— Algum problema com o piso? — perguntou, sem soar ofensiva. — O chão da nobreza os incomoda?
A tensão no ar era sutil, mas cortante. Como uma navalha embainhada em veludo.
Renier sorriu com gentileza. Seus olhos mantinham a calma de quem não precisava provar nada.
— De forma alguma. — disse. — Em minha terra natal, é costume retirar os sapatos ao entrar em uma casa. É sinal de respeito, pureza e boa energia. Carregar as impurezas do mundo exterior para dentro de um lar… seria desrespeitoso com o espírito do lugar e com quem o habita.
Fábula levou uma mão ao queixo, pensativa. Seus olhos avaliavam o homem à sua frente, e talvez, pela primeira vez em muito tempo, ela estivesse genuinamente impressionada.
— Um costume… curioso. Mas… sábio. — admitiu, ajustando os óculos com um toque delicado no centro. — Carregar boa vibração… Hm. Pode ser uma prática que valha a pena adotar por aqui, ao menos com certos visitantes.
Ela virou-se com a leveza de alguém que está no comando, mas sem precisar levantar a voz. E com um gesto de mão, sinalizou:
— Sigam-me, por favor.
E assim, descalços como viajantes do espírito, Renier, Luna e Liza adentraram a casa dos Morales. A batalha das intenções começava silenciosa, em gestos e palavras. Mas os olhos invisíveis da mansão já os observavam, e a irmã mais velha também.
A sala de convidados era espaçosa, adornada com tapeçarias refinadas e móveis que ostentavam tradição. Um leve aroma de ervas doces preenchia o ar. No instante em que entraram, o comunicador de Renier vibrava com a voz da Administradora:
— Essa Fábula… me lembra a Jennifer.
Renier sentiu a pontada. Sim. Os modos, a postura… e aquele cabelo verde. Por um segundo, ele a olhou com olhos nostálgicos. A dor da perda era silenciosa, mas voraz. Fábula percebeu o olhar.
— Há algo de errado, senhor Kanemoto?
Ele apenas sorriu.
— Lembrou-me de uma velha amiga. Só isso.
Fábula assentiu com um “entendo”, curto e calculado, anotando mentalmente mais uma nuance daquele convidado peculiar.
Na sala, sentada como uma imperatriz no centro de um império, estava Annabelle Morales. Perna cruzada, leque vermelho sangue em mãos, e um vestido de vinho escuro que parecia mais um aviso do que uma escolha estética.
Renier não disse uma palavra. Contava mentalmente, como em um ritual.
Cinco… quatro… três…
— Você deve ser Renier Kanemoto — disse ela, com a voz cortante como uma lâmina de veludo. — O homem que trouxe de volta meus soldados do labirinto, salvou minha irmã e ainda encontrou o diário do nosso falecido pai. Interessante.
Renier sorriu de canto.
— A senhorita Annabelle parece já me conhecer antes mesmo de eu pôr os pés nesta casa.
Ela girou o leque com força, causando um estalo no ar.
— Eu comando estas terras agora. É meu dever saber quem se aproxima da minha família. Ainda mais depois que meu falecido pai resolveu morrer longe do lar… e minha madrasta fugiu para brincar de dama com um nobre imperial.
— Eu gosto dessa garota — comentou a Administradora, no ouvido de Renier.
Ele também achava interessante. Dominante. Direta. Sem rodeios. Exatamente o oposto da irmã mais nova.
E como se fosse um sinal, a própria Lívia apareceu no topo das escadas.
— R-Renier?! Você está aqui?! N-Ninguém me avisou! — disse ela, vermelha como um tomate, tropeçando nas palavras.
Renier apenas acenou, sorrindo.
— É bom te ver. Como prometido, trouxe o chocolate.
Ela usava um vestido azul bebê, simples, e uma tiara com rubi que brilhava sob a luz. Estava fofa. Nervosa. Um pouco desajeitada.
— Desça, Lívia — ordenou Annabelle, sem paciência. — E seja educada com o convidado que você mesma arrastou até aqui.
Lívia acenou apressada, pronta para descer, e aí… o inevitável.
TUM! TUM! TUM!
Passos errados. Equilíbrio zero. E um voo curto até o chão. Ela despencou escada abaixo como uma bolinha azul caindo ladeira abaixo.
Annabelle passou a mão no rosto, soltando um suspiro sofrido.
— Santo céu…
Renier deu um passo à frente, preocupado.
— Você está bem?
Antes que Lívia pudesse responder, Fábula comentou de maneira objetiva:
— Apesar da aparência delicada, senhor Kanemoto, Lívia é treinada pelo exército. Seu corpo está acostumado a… esse tipo de impacto.
Renier levantou uma sobrancelha, surpreso.
— Isso é… impressionante. Divertido até.
Lívia, com a cara enterrada no chão e o rosto mais vermelho que um morango, murmurou:
— Não é pra você achar divertido… ver eu… me estabacando…
E assim, o encontro começava. Com tensão, testes, verdades afiadas e uma pitada de caos. Exatamente como os Morales gostavam.
Continua…
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