Índice de Capítulo

    Annabelle finalmente encerrou seu relato, suas palavras ainda pairando no ar pesado da sala enquanto o eco da história sangrenta do Império se acomodava entre os presentes.

    Renier permaneceu em silêncio por alguns instantes, os braços cruzados, a expressão neutra. Por fim, soltou um comentário que cortou a solenidade como uma lâmina:

    — Uma história bem romântica até, se você ignorar o cheiro de sangue — disse ele, o canto da boca se erguendo num sorriso preguiçoso. — Mas honestamente? Parece mais uma fábula para crianças do que o caos que de fato deve ter sido.

    Antes que alguém pudesse retrucar, Luna, com seu tom sempre afiado e aquela vibe de quem já perdeu a paciência com o mundo, soltou, indiferente:

    — Humanos gostam de dourar a merda que fazem. Chamam de conquista o que na prática é massacre. Inventam fantasias para esconder o quanto se divertem sendo cruéis.

    Annabelle não piscou, nem pareceu ofendida. Ela apenas ergueu o leque com graça e respondeu com uma sinceridade desconcertante:

    — Não vou negar. O Império dos Forjanos é mais sobre sangue do que sobre glória. Nosso trono foi erguido em cima de cadáveres, e os contos heroicos… bem, são apenas um pano bonito jogado sobre a sujeira.

    Renier soltou uma risada leve, balançando a cabeça.

    — O lado que vence sempre vira herói, não importa quanta podridão tenha deixado pelo caminho. História é escrita pelos sobreviventes, não pelos justos.

    Sem perder tempo, ele mudou o foco, seu olhar cravado em Annabelle com uma frieza estratégica.

    — Mas vamos ao que interessa. Vocês têm algum plano para entrar na capital e falar com a Rainha? Porque só querer não vai abrir as portas do palácio.

    Fábula, que até então estava tranquila, colocou a xícara de chá no pires com um leve tilintar e respondeu com a mesma calma meticulosa de sempre:

    — Eu mantenho contatos dentro da Igreja da Luz. Estava apenas esperando… como posso dizer… a peça certa. Alguém com capacidade de mover o tabuleiro de forma decisiva.

    Annabelle completou com um leve sorriso, fechando o leque.

    — E, com você aqui, Renier, temos essa peça. Agora podemos começar a traçar os próximos passos. A capital não vai se abrir sozinha, mas não somos tão impotentes quanto parecemos.

    Nesse momento, Liza, que até então observava em silêncio, finalmente se pronunciou, sua voz firme, mas com uma curiosidade respeitosa:

    — Me desculpem, mas… vocês pretendem entrar também no Vale Negro?

    O ambiente ficou um pouco mais tenso. A menção ao Vale Negro ainda carregava um peso. Um lugar onde até o ar podia te matar… e talvez onde respostas mais perigosas os aguardassem.

    Renier olhou para ela, o sorriso cortante voltando aos poucos aos lábios.

    — Liza, minha cara, com esse tipo de missão? Eu acho que o Vale Negro está no nosso roteiro mais cedo ou mais tarde. A questão é… quem vai sair de lá vivo?

    O tabuleiro começava a girar. E as peças já estavam em movimento.

    Liza se adiantou, suas palavras carregando uma segurança discreta, mas firme.

    — Eu posso entrar no Vale Negro sem ser afetada pelo veneno daquele lugar.

    Lívia rapidamente completou, empolgada:

    — É verdade. A Liza é uma Lizardman marrom. Eles são nativos daquele ambiente tóxico, conseguem respirar lá sem problemas.

    Liza acenou com respeito e continuou:

    — Além dos Lizardmans marrons, existem os vermelhos e outras subespécies espalhadas pelo Vale. Sem contar o próprio Vale dos Dragões, que é praticamente uma fortaleza natural.

    Renier pousou a mão no queixo, pensativo, conectando as peças.

    A voz da Administradora soou nítida no comunicador preso em seu ouvido:

    — Renier, como híbrido de Dragão Cósmico, seu corpo é naturalmente imune ao veneno atmosférico daquele lugar. O Vale Negro tem concentrações altíssimas de ferro e gás metano. Humanos morreriam rapidamente lá, mas dragões e répteis evoluíram para viver nesse ambiente sem qualquer dificuldade.

    Renier sorriu de leve. Fazia sentido. Ele já havia suspeitado desde o início — afinal, seu primeiro despertar neste mundo foi exatamente no Vale Negro.

    Ele quebrou o silêncio, olhando para Annabelle e Lívia:

    — Talvez eu possa levar vocês pelo Vale Negro sem serem afetadas pelo ar tóxico.

    Annabelle estreitou os olhos, fechando o leque com um estalo elegante, seu interesse agora definitivamente capturado.

    — Você realmente é um achado raro, Renier Kanemoto. E como você pretende resolver esse problema?

    Renier deu aquele sorriso maroto, o tipo de sorriso que carrega um plano nas entrelinhas.

    — Me deem um dia. Quero que você, Lívia e Fábula me encontrem no portão da cidade ao amanhecer. Vamos partir para a capital imediatamente depois disso.

    As três se entreolharam, e não foram só elas. Luna e Liza também ficaram visivelmente curiosas, os olhos delas praticamente perguntando “o que esse maluco tá tramando?”

    Annabelle, sempre afiada, girou o leque entre os dedos, soltando uma pequena risada com ar de quem estava começando a se divertir com aquela ousadia.

    — Não é do meu feitio aceitar ordens de um plebeu, mas pela audácia de me dar uma, decidi deixar você conduzir essa operação. Vamos ver até onde você pode me surpreender, Guardião Negro.

    Renier deu um sorriso genuíno, sem se curvar demais, mas com a medida exata de respeito e provocação.

    — Será um prazer, senhorita Annabelle.

    Ela apontou o leque diretamente para ele, o gesto carregado de desafio.

    — Me surpreenda.

    O jogo estava lançado, e Renier já estava pronto para jogar com as próprias regras.

    ✦—✵☽✧☾✵—✦

    O sol ainda mal havia nascido quando o porto sul da cidade começou a se encher com os primeiros ventos gélidos da manhã. O frio cortante dançava pelas ruas de pedra, fazendo os casacos balançarem e os narizes ficarem avermelhados. Três silhuetas femininas se destacavam no meio da névoa fina que cobria o cais.

    Lívia encolhia os ombros no vestido longo azul marinho, tentando se aquecer como podia. Fábula, sempre impecável, mantinha a postura ereta mesmo com as duas malas robustas repousando sob seus pés, responsabilidades que ela carregava com a mesma precisão de sempre, como guardiã e serva dedicada das filhas da nobre Casa Morales.

    Já Annabelle… bem, Annabelle estava impaciente. Enrolada em um manto elegante carmesim, tamborilava os dedos enluvados no cabo de seu leque fechado com um tique nervoso e nada discreto.

    — Inacreditável… — murmurou entre os dentes, o tom mais cortante que a própria brisa do amanhecer. — A ousadia de nos fazer esperar. Será que ele acha que comandar mulheres de alta nobreza é como dar ordens a um bando de soldados?

    — Talvez ele esteja fazendo algo importante… — Lívia arriscou, tentando quebrar a tensão com uma voz mais suave. — Ou foi apenas algum atraso… pode ter acontecido algo de última hora…

    Annabelle lançou um olhar afiado, mas não respondeu. O silêncio dela dizia mais do que qualquer palavra: ela não comprava a desculpa.

    Fábula, por sua vez, permaneceu neutra. Estava acostumada a lidar com o temperamento das duas. Segurava firme o lenço amarrado ao pescoço, o olhar fixo no horizonte, como quem esperava por algo inevitável. E mesmo com o frio cortando o ar, não tremia, nem demonstrava desconforto. Ela era a muralha silenciosa entre as irmãs e o mundo, pronta para seguir Renier ou questionar suas decisões, dependendo do que ele trouxesse naquela manhã que mal havia começado.

    Tudo estava em suspenso. O vapor da respiração se misturava ao nevoeiro, e o tempo parecia desacelerar, apenas para ser quebrado no momento exato em que a figura que todas esperavam finalmente se anunciasse…

    Continua…

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