Capítulo 105: A Queda do Dragão das Estrelas…
16 anos atrás…
Sob o céu tempestuoso e o manto da noite, a cadeia de montanhas se transformava em um labirinto implacável, de acesso difícil e perigosamente traiçoeiro. O eco dos passos pesados de uma coluna de soldados élficos, vestidos com armaduras brancas e negras que ostentavam o emblema de uma rosa branca, símbolo da Casa Imperial Rose White, ressoava pela trilha coberta de lama, entre rochas e calcário molhados. A respiração ofegante dos guerreiros denunciava a exaustão que enfrentavam a cada passo, lutando contra o terreno hostil.
No centro da marcha, uma jovem elfa de cabelos brancos longos montava um cavalo negro. As mechas, presas em uma trança firme, estavam manchadas de lama que o trote do animal levantava. A armadura leve, ajustada ao corpo, era complementada por um vestido que espreitava sob as placas de metal e um par de botas de ferro. Na cintura, repousava sua espada, cuja bainha exibia o brasão de sua família: a rosa branca.
O olhar da jovem refletia o cansaço, mas permanecia atento e vigilante, perscrutando as lacunas entre rochas e penhascos. A chuva torrencial, ocasionalmente iluminada por relâmpagos que cortavam o céu com estrondos ensurdecedores, era sua única fonte de visibilidade naquele inferno noturno.
— Parece que o céu está desabando sobre nós… — murmurou ela, a voz serena, porém carregada de seriedade, enquanto mantinha as rédeas firmes.
Um dos soldados, com um elmo escorrendo água, respondeu em tom de preocupação: — Princesa, a morte de um dragão sempre é um lamento da própria natureza. Mas algo dessa magnitude vindo destas montanhas é…
Ela o interrompeu, completando com um olhar afiado e resoluto: — … fora deste mundo.
A voz da princesa mal se dissipará quando um relâmpago rasgou o céu, iluminando a montanha com um brilho momentâneo seguido por um estrondo ensurdecedor. Seus olhos se arregalaram em choque diante da visão que aquele instante de luz revelou.
— Droga… eles realmente fizeram isso — murmurou um dos soldados, incrédulo.
À frente, jazia o corpo colossal de um dragão, suas escamas tão negras quanto a noite. A criatura, com cerca de 150 metros de altura, só podia ser distinguida nas breves explosões de luz dos relâmpagos. Estava morto, um fato que fez com que sussurros se espalhassem como um vento gelado entre os homens.
— O Dragão das Estrelas… está morto? — A princesa mal conseguia acreditar no que via, a incredulidade nublando sua voz.
— A Igreja conseguiu abater essa criatura sozinha? — questionou um dos soldados, a descrença estampada em suas palavras. — Esse dragão deveria ser imune até mesmo aos mais poderosos guerreiros. Nenhum humano deveria ser capaz de arranhar suas escamas!
— De algum modo, conseguiram — afirmou a princesa, lutando para manter a compostura. — Vamos descer. Já vimos tudo que podíamos e, com o tempo que temos, será arriscado continuar.
Os soldados responderam em uníssono, preparando-se para seguir a ordem. A princesa puxou as rédeas do cavalo para girar na direção oposta, mas algo a fez parar abruptamente.
— Todo mundo parado! — ordenou ela, a voz firme, mas com uma sombra de preocupação. Os homens se entreolharam, tensos, imaginando uma emboscada.
Mas não era isso. Entre o barulho incessante da chuva e os trovões que ecoavam pelas montanhas, um som inesperado sobressaiu: o choro frágil de um bebê. O som penetrou pela tempestade, atingindo tanto os soldados quanto a princesa, que olhou ao redor, surpresa.
— Um bebê? Aqui, em um lugar tão inóspito? — disse a princesa, com coração acelerado. — Não façam barulho desnecessário. Encontrem essa criança! — ordenou ela, fazendo um gesto ágil com a mão.
Os soldados se dispersaram, avançando com cautela, mas a busca era dificultada pela chuva pesada e o terreno traiçoeiro. Determinada, a princesa desmontou suas botas de ferro afundando no barro que espirrava e sujava seu vestido. Ela sentia a urgência pulsando nas veias enquanto tentava localizar o choro que ecoava pela escuridão.
Apesar de tentar se concentrar nas buscas, algo na princesa a fez desviar o olhar para o cadáver monumental do dragão. O choro persistia, fraco, mas agora parecia ressoar em sua mente como um chamado. Uma inquietação instintiva a impulsionou a se aproximar da criatura caída.
O som aumentava em intensidade à medida que ela se aproximava. — Não pode ser… — sussurrou, a incredulidade preenchendo suas palavras. Parou a poucos centímetros das escamas negras e frias do dragão e, hesitante, pressionou o ouvido contra a superfície gelada. O choro tornou-se claro, ecoando alto e inconfundível.
“Esse tempo todo… era uma fêmea? E ela estava grávida…” O pensamento a atingiu com uma urgência visceral. Sem hesitar, desembainhou a espada, o som metálico rasgando o ar enquanto a lâmina surgia, cintilando sob a chuva. Localizando um ponto específico no corpo do dragão, ela fez um corte preciso, criando uma fenda suficiente para alcançar seu objetivo.
Os soldados ao redor observavam, atônitos, sem acreditar na ação abrupta da princesa. Um deles se adiantou, hesitante. — Princesa, mexer no cadáver de um dragão é considerado um mau agouro, dizem que…
O protesto foi cortado pelo choro estridente que se seguiu, ecoando com clareza na noite tempestuosa. A espada caiu de suas mãos, afundando na lama enquanto ela se virava para os soldados, um bebê humano chorando em seus braços.
— O Dragão das Estrelas… teve um filho humano — declarou Mirella, com os olhos fixos na criança, uma menina. Segurava-a com delicadeza, temendo machucá-la, a mente girando com a revelação.
— Isso é… inusitado — murmurou um dos soldados elfos. — Se a Igreja descobrir, eles vão…
— Jamais! — interrompeu Mirella, a voz forte e decidida. Seu olhar varreu os homens à sua volta, firme e impiedoso. — Ouçam bem! Esta é uma ordem direta da sua princesa, futura Imperatriz Mirella Light. Isso é um segredo de estado. Qualquer um que ousar mencionar essa criança será tratado como traidor e executado. Está claro?
Os soldados engoliram em seco, conscientes do peso que essa promessa trazia. Um a um, assumiram uma posição de reverência, suas vozes ecoando em uníssono. — Como a princesa Mirella deseja! — afirmaram com respeito e disciplina, a lealdade indiscutível dos soldados do Império da Rosa Branca.
Mirella olhou novamente para o bebê em seus braços, seus olhos refletindo uma determinação feroz. — Você virá conosco… sua mãe iria querer isso — murmurou, lançando um último olhar ao dragão imponente. Virou-se para os soldados e continuou com autoridade. — A partir de agora, todos devem tratar essa criança como meu filho. E quem tentar revelar sua origem à Igreja será eliminado. Sem exceções.
A tempestade rugia ao redor, mas nada parecia mais intenso do que o silêncio carregado de promessas naquele momento.
⟁⪻⪼𓆩༒𓆪⪻⪼⟁
Dezesseis invernos se passaram desde a queda do Dragão das Estrelas, uma era encerrada em fogo, caos e renascimento. Agora, os sinos de prata ecoavam por todo o Reino Élfico e seus domínios, anunciando não só o fim de um ciclo, mas o começo de outro. Mirella Light, filha da antiga linhagem dos luminares da floresta, estava prestes a ser coroada Imperatriz do Império da Rosa Branca.
No coração do Palácio de Cristal, envolta por paredes adornadas com vinhas encantadas e janelas que filtravam a luz em feixes de arco-íris, ela se encontrava sozinha em seus aposentos. Os longos cabelos brancos, mais altos que a neve que repousava nos picos da Espinha do Dragão, caíam em ondas elegantes sobre seus ombros. Seus olhos, de um magenta profundo e hipnotizante, estavam fixos no espelho, onde o reflexo mostrava mais do que uma futura imperatriz: mostrava uma mulher marcada pela perda, forjada na esperança e sustentada pela fé em dias melhores.
O vestido de seda branca que vestia parecia feito da própria luz da lua. Era simples, mas carregado de simbolismo, como se cada fio tivesse sido tecido com votos de paz, prosperidade… e sacrifício.
A porta se abriu com suavidade, como se respeitasse o momento. Agatha entrou. Sempre ela. A fiel escudeira, amiga, conselheira e sombra inseparável desde os dias de infância no jardim de glicínias do castelo.
— Finalmente, o grande dia chegou, Imperatriz Mirella — disse Agatha, enquanto depositava um par de saltos brancos sobre a cama.
Seu cabelo verde-escuro estava preso com perfeição num laço em forma de borboleta, e mesmo ali, entre brocados de ouro e perfumes de rosas encantadas, ela exalava disciplina e lealdade. Suas orelhas élficas se moveram sutilmente, denunciando um nervosismo que nenhuma rigidez conseguia conter.
Mirella ergueu o olhar pelo espelho e sorriu com ternura.
— Agatha… não precisa ser tão formal. Nós duas sabemos que, antes de cargos, somos amigas.
Agatha apertou os lábios, mas o sorriso escapou. Ela nunca foi boa em esconder sentimentos perto de Mirella — não depois de tantos anos partilhando segredos, frustrações, noites em claro e risos abafados nos corredores proibidos da corte.
— Desculpe… é só que… agora você vai ser coroada. Imperatriz. — Ela enfatizou a palavra como se ainda custasse a acreditar. — E eu estou nervosa por você, talvez até mais do que você mesma.
Mirella caminhou até ela, os pés descalços quase não fazendo som sobre o tapete bordado com folhas de carvalho.
— Como me sinto? — ela repetiu a pergunta, pegando as mãos da amiga. — Um pouco de tudo… como um trovão prestes a romper os céus, mas também como a brisa que antecede a alvorada. Preocupada… ansiosa… e animada.
Ela respirou fundo, o peito subindo com elegância, mas com um peso que só ela entendia.
— Mas sei que é meu dever. Como Imperatriz… e como mãe. Todo mundo está contando comigo. E eu não posso… não vou falhar.
Agatha assentiu, emocionada, com os olhos ligeiramente marejados. Por um segundo, o tempo pareceu parar, o silêncio antes da tempestade, ou talvez, o prenúncio de uma nova era.
O quarto de Mirella já começava a esvaziar-se de tensão, como se o próprio ar compreendesse que o momento da coroação estava próximo. Mas bastou uma pergunta para que o peso da maternidade voltasse a bater à porta:
— Falando em filho, não vi a Melusine o dia todo… — comentou Mirella, desfazendo o toque nas mãos da amiga com um leve franzir de cenho.
Agatha ergueu as sobrancelhas com um brilho peculiar nos olhos, as pontas das orelhas se mexendo, denunciando que ela já esperava essa pergunta.
— Ah, bem… a princesa está na biblioteca. Estudando. — A resposta veio com uma naturalidade contida, quase ensaiada. — Mas, ultimamente, tem se mantido bem reclusa…
Mirella cruzou os braços, os dedos batendo de leve no cotovelo como quem já conhecia o script.
— Conhecendo-a bem, ela deve estar tramando alguma coisa em segredo… — murmurou, com a exasperação doce de uma mãe que já tinha enfrentado muitas pegadinhas, feitiços mal calculados e draminhas dramáticos da jovem herdeira. Ainda mais considerando que “jovem herdeira” era, literalmente, meio dragão.
Agatha tentou esconder o sorriso, mas a preocupação era legítima. Endireitou a postura.
— Devo chamá-la? Afinal, não seria… adequado para a imagem imperial que a filha da Imperatriz falte à própria coroação. — A voz dela carregava o cuidado típico de quem equilibrava a rigidez de uma governanta com o carinho de quem viu a criança crescer.
Mirella fez um gesto com a mão, quase rindo da própria formalidade do momento, e sentou-se com graciosidade à beira da cama.
— Não, eu mesma irei até lá. Assim aproveito para ver o que minha pequena dragão anda aprontando… — disse ela com um sorrisinho maroto, o tipo de sorriso que mães reais dominavam com maestria: metade amor incondicional, metade “se eu encontrar um grimório aberto em cima da mesa de novo, a gente vai conversar”.
Agatha curvou-se levemente, sempre respeitosa.
— Como desejar, Majestade. Assim que ela estiver livre, instruirei as criadas a prepararem o banho e o traje cerimonial.
Mirella calçou os saltos com a precisão de quem já se preparava para marchar não apenas para um evento, mas para o papel mais desafiador da vida,liderar um império… e lidar com uma adolescente dragônica ao mesmo tempo.
Ela se levantou, ajeitou o vestido branco como névoa matinal e caminhou em direção à porta com a graça de uma aurora real. Um leve perfume floral ficou no ar, como um sussurro de rosas encantadas. Agatha a seguiu com o olhar, encantada. Não apenas como serva, mas como testemunha viva da evolução daquela menina elfa em uma soberana poderosa.
E então, quando a porta fechou suavemente, Agatha se permitiu algo raro: um sorrisinho cúmplice, quase conspirador.
— Princesa… fiz minha parte como pediu. Espero que esteja pronta para a surpresa. — murmurou, antes de se virar em direção às criadas e dar início aos preparativos silenciosos da noite que mudaria os rumos do Império da Rosa Branca.
O jogo de bastidores estava em movimento.
E a biblioteca… ah, a biblioteca guardava mais do que livros.
Continua…
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