Capítulo 109: O Vale Carmesim.
O ar no Vale Carmesim era espesso como sangue coagulado.
Renier caminhava à frente de seu grupo, a única fonte de luz sendo a lâmina azul etérea de sua foice, que pulsava com energia ancestral. O brilho pálido atravessava a escuridão com elegância fantasmal, iluminando os contornos irregulares das cavernas íngremes. Gotas d’água pingava do teto rochoso, ecoando como um relógio nervoso entre os sussurros de morcegos de olhos doentios, que os observavam lá do alto, com olhares famintos e vazios.
As botas do grupo retumbavam contra o chão úmido. O ambiente era opressor, sufocante, e nada acolhedor para os vivos.
— Ugh… Isso é desumano. — Annabelle resmungou, ajeitando o leque decorativo preso à cintura enquanto chutava uma pedra sem muito entusiasmo. — Desde quando a gente teve que andar assim? Saudades dos cavalos. Isso aqui não tem glamour algum.
Renier parou, girando levemente a cabeça, o brilho da foice dançando com seu movimento. Seu tom veio carregado com uma ironia sutil, mas firme:
— Eu sou o novato aqui, não sou? Toda informação sobre a Espinha do Dragão veio de vocês, não de mim.
Fábula, sempre conciliadora, elevou as mãos com cautela.
— Por favor, menos barulho… Isso aqui já é perigoso o bastante sem um coral de queixas para atrair os dragões errados.
A General Priscila, de expressão austera e postura firme mesmo entre estalactites ameaçadoras, reforçou o clima com um tom grave:
— O Vale Carmesim é o domínio ao sul. Wyverns, Lizardmans Vermelhos e Marrons… e os Dragões Malignos. Só adentrar esse território é uma afronta à Rainha Carmesim. Estamos em solo inimigo.
Renier franziu o cenho. O nome Espinha do Dragão ecoava na sua mente desde que entraram.
— E é também o centro dos Quatro Vales, certo? — murmurou, mais para si. — A lenda… a morte de um dragão… e a maldição que surgiu depois…
O pensamento se agarrava em sua mente como garras de ferro. Mas antes que pudesse mergulhar mais fundo nisso, Annabelle, distraída ou provocativa, ergueu o leque no ar. Um gesto pequeno, mas que despertou os morcegos acima, lançando uma nuvem de asas sombrias que zumbiam pela caverna como um pesadelo em movimento.
Renier nem pensou — a foice brilhou intensamente, disparando uma onda azulada de luz mágica que espantou as criaturas para longe das garotas. A escuridão recuou brevemente.
Ele virou lentamente, o olhar duro cravado em Annabelle.
— Sério?
Ela apenas deu de ombros com um meio sorriso. — Desde que falaram da tal lenda do Dragão das Estrelas… você tá diferente, sabe? Meio… raivoso. Coincidência?
Lívia, a irmã dela, tentou suavizar a fala, mas acabou concordando:
— Não é por nada, mas… é verdade. Você está… estranho. Desde que isso foi mencionado.
Renier permaneceu em silêncio por um longo momento. O som da caverna parecia ter sumido. Até os pingos pararam.
Mas dentro dele, o rugido só crescia.
Sim. Ele sabia.
Se a morte de um dragão trouxe catástrofes climáticas, colapsos mágicos e uma guerra velada entre os vales… então não era apenas um dragão.
Era um Dragão Cósmico.
E agora… ele sentia o rastro daquela energia ressoar com algo muito antigo dentro de si.
— Matar um dragão… tem consequências. — Renier falou, finalmente, a voz baixa, carregada de poder e raiva. — Isso não é maldição. É reação. O equilíbrio está sendo quebrado.
Os olhos dele começaram a brilhar em um tom azul profundo, intenso demais para ser apenas magia. As pupilas assumiram um formato dracônico, como duas fendas queimando na penumbra.
— Se a morte desse Dragão assolou os Quatro Vales… significa que seu corpo e energia ainda estão aqui. Inertes. Dormindo. Esperando.
Ele se virou, encarando o corredor escuro adiante. A foice emitiu um leve ruído de energia, como um trovão contido.
— E se for mesmo um Dragão vindo das Estrelas… um verdadeiro ser cósmico…
O tom mudou. Ficou gélido. Determinado. Um juramento selado no próprio ar.
— Eu vou encontrar os responsáveis. E eles vão pagar. Porque ninguém mata algo vindo das estrelas… sem receber a punição dos céus em retorno.
A caverna pareceu tremer levemente.
Fábula, Priscila, Annabelle, Lívia e Luna se entreolharam. Havia algo diferente em Renier. Algo que os livros não falavam. Algo que dormia dentro dele… e estava acordando.
Renier apenas balançou a cabeça, reprimindo a irritação que fervilhava por dentro. Os rumores, os olhares, os sussurros — nada disso importava agora. O que importava era o cheiro.
— Parem. — sua voz cortou o silêncio abafado da caverna como uma lâmina.
As garotas obedeceram de imediato. Luna, a pequena kitsune de orelhas inquietas, apertou os olhos e levou as mãos ao nariz.
— O cheiro… algo mais à frente está errado. Está denso, podre, como se a caverna estivesse sangrando. Me incomoda profundamente.
Renier assentiu, já esperando por isso.
— Liza tinha razão — disse ele com calma. — O ar daqui pra frente se torna impróprio para quem não é adaptado a ele. O território do Vale Carmesim não foi feito para os vivos comuns. Isso aqui é o ventre podre de uma criatura morta… e a morte ainda respira.
Fábula franziu o cenho, engolindo em seco.
— E como vamos seguir? Se até o ar quer nos matar… não é como se pudéssemos simplesmente prender a respiração até o final da missão.
Nesse instante, um chiado suave ecoou no comunicador em seus ouvidos. A voz da Administradora preencheu o canal com a precisão cirúrgica de sempre.
— Renier, os trajes estão prontos. Prontos para liberação.
— Recebido — respondeu ele, enquanto puxava o capuz devagar, ocultando o rosto nas sombras. E então…
A máscara surgiu.
Negra como o abismo, moldada como a face de uma kitsune ancestral, com traços suaves porém ameaçadores. Os olhos acenderam num azul cósmico vibrante, irradiando energia como se tocassem o próprio tecido do mundo.
Luna sorriu ao vê-lo novamente com a máscara.
— Você tem um gosto bem específico por kitsunes, hein? — comentou, entre surpresa e fascínio.
Renier apenas riu. Um som contido, quase zombeteiro. Com um gesto elegante, sua foice foi envolta em energia, metamorfoseando-se em uma espada cerimonial. A lâmina azul era adornada por um símbolo cósmico gravado em luz, como se cada corte traçasse constelações.
Com um simples estalar de dedos, o ritual começou.
Mantos surgiram ao redor das garotas, moldando-se ao redor de seus corpos como se sempre tivessem pertencido a elas.
Annabelle, envolta em um vermelho vinho luxuoso, mantinha o ar de nobreza orgulhosa. Botas com solas douradas reluziam sob seus passos, e até seu leque parecia mais afiado agora.
Lívia, com um manto verde como as correntes do vento, exibia prata nas bordas e uma fluidez que a fazia parecer a própria brisa das montanhas.
Fábula recebeu um traje mais sombrio e utilitário. O manto escuro se alinhava ao seu corpo como pele, e duas adagas ocultas brilharam em sua cintura, a imagem viva de uma espiã arcana de elite.
Priscila, a General, foi aclamada pela própria energia. A armadura prateada se encaixava com perfeição, e sua nova espada, feita apenas de luz azul condensada, flutuava em sua mão como um raio congelado.
Luna, por fim, foi envolvida em uma transformação arrebatadora. Sua silhueta cresceu levemente, tornando-se mais madura e firme. Caudas prateadas se expandiram em glória, e seu yukata preto com detalhes azulados pulsava com a mesma energia de Renier. Seus olhos cintilavam como estrelas entre a neblina.
Ela girou sobre os calcanhares, testando o novo corpo, surpresa.
— Minha forma… voltou ao auge? Como você fez isso?
Renier respondeu com simplicidade, mas havia um peso oculto sob suas palavras:
— Usei um pouco da minha autoridade.
Fábula mexeu nos óculos. Agora, interfaces táticas piscavam diante de sua visão, informações do ambiente saltando com dados detalhados.
— Não sei como… mas isso vai ser muito útil. Não vou reclamar.
Priscila observava sua própria armadura, sorrindo com admiração.
— Me sinto como aquelas heroínas das histórias antigas. Falta só o dragão final no final do corredor.
Annabelle cruzou os braços, analisando o próprio traje com um sorriso de canto.
— Admito, Renier. Para um homem, você tem um gosto excelente para vestir mulheres com estilo. Ousado, mas eficaz.
Do outro lado da comunicação, a Administradora deu uma risadinha. Elas não a ouviram, mas ela comentou para si mesma:
— Eu só usei a energia dele. O design foi… funcional.
Renier cravou a espada azul no chão, sua voz ressoando como um sussurro grave e autoritário através da máscara:
— A partir de agora, ninguém deve remover os trajes. Eles não apenas protegem do ar contaminado… também amplificam magia e habilidades. Use com sabedoria.
— Mas e essa máscara sua? — questionou Annabelle, ainda intrigada. — Vai manter o mistério até o fim?
Os olhos azuis da máscara brilharam intensamente. A voz de Renier veio, fria como o vazio do espaço.
— A partir deste ponto, não sou mais Renier Kanemoto.
Ele ergueu, emanando um magnetismo perigoso.
— Sou o Guardião Negro. Estou em missão.
Um silêncio tomou conta do grupo, só quebrado pela reverberação da espada no chão.
— Meu destino é a Espinha do Dragão. E minha missão… é descobrir o que aconteceu com os Quatro Vales. Isso não é apenas política ou guerra. Isso é um desequilíbrio. Um erro que deve ser corrigido.
Ele puxou a espada de volta para as mãos. A caverna inteira pareceu segurar a respiração.
Continua…
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