Índice de Capítulo

    Ao caminhar pelas ruas agitadas, Renier e Malo absorviam o ambiente com atenção. As bancas improvisadas fervilhavam de mercadores em negociações acaloradas, enquanto ferreiros martelavam metal incandescente, lançando faíscas que iluminavam seus rostos determinados. A cena vibrava com vida, um contraste gritante com o silêncio interior que ambos carregavam.

    Cada detalhe da cidade parecia comum à primeira vista, mas, na quietude de seus corações, havia algo cativante em observar o mundo humano desdobrando-se em sua rotina caótica.

    — Então é assim que é uma terra humana… — murmurou Malo, ajeitando a jaqueta escura com detalhes em azul que Renier havia lhe oferecido.

    — Vocês dois parecem turistas deslumbrados. Tentem não chamar tanta atenção com esses olhares curiosos, — alertou Aura, cruzando os braços e lançando-lhes um olhar crítico. — Apesar de toda essa movimentação, nem todos aqui são pessoas confiáveis. Se continuarem parecendo deslocados, bandidos ou sequestradores podem aproveitar a situação.

    Renier apenas assentiu, ajustando a mão no cabo da espada escura que carregava — um troféu conquistado na batalha contra o Cavaleiro Negro.

    — Malo, sobre o “Dia do Demônio”… — começou ele, quebrando o silêncio. — Você sabe algo que possa nos ajudar?

    A garota ergueu os olhos para ele, pensativa. — Na floresta, não damos esse nome… — respondeu com um leve encolher de ombros. — Mas há, sim, um dia em que algo acontece. Um fragmento da energia demoníaca desperta… e a natureza selvagem toma conta de todos nós.

    Aura arqueou uma sobrancelha e interrompeu. — Deixa eu adivinhar: vocês perdem o controle, se entregam aos impulsos demoníacos, invadem as muralhas e transformam a cidade num banho de sangue. Acertei?

    Malo desviou o olhar, um silêncio pesado pairando no ar. A culpa que carregava parecia transparecer em seu semblante. Renier percebeu, mas nada disse, apenas deixou seus pensamentos vagarem enquanto observava os arredores.

    — Com a barreira ao redor da Floresta Perdida destruída, talvez seja sensato esperar pelo Dia do Demônio aqui na cidade, — sugeriu ele, quebrando a tensão.

    Aura o fitou com ceticismo. — E por que exatamente seria uma boa ideia? Está planejando proteger a cidade dos ataques?

    — Parte disso, sim, — respondeu Renier, seus olhos percorrendo o cenário com uma seriedade calculada. — Mas há algo mais.

    Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras assentar antes de continuar.

    — Esse ritual de sangue não apenas alimenta os demônios, ele fortalece Alaster e enfraquece o selo que o prende. Se observarmos o caos com atenção, podemos seguir a trilha de destruição e localizar a antiga capital. Lá, encontraremos o selo de Alaster.

    Aura e Malo trocaram um olhar, absorvendo a gravidade do plano.

    — Então você quer usar o caos como uma oportunidade para atacar a raiz do problema, — resumiu Aura, com um tom que misturava descrença e respeito.

    Renier assentiu, seus olhos brilhando com determinação. — Exatamente. E, se fizermos isso direito, talvez possamos virar o jogo antes que seja tarde demais. — Renier estava com a esperança de que Alaster, seja o problema desse mundo assim ele poderia resolver, e então partir para o próximo universo.

    Renier, Malo e Aura discutiam seus planos quando o grito de uma mulher interrompeu a conversa, seguido por soluços angustiados que vinham de uma esquina próxima. Os três instintivamente viraram a atenção para o som. Renier, sempre guiado por uma curiosidade quase teimosa, já caminhava em direção ao barulho enquanto Malo e Aura o seguiam a poucos passos de distância.

    A cena que encontraram era inquietante. Uma mulher loira, de cabelos em desalinho, estava ajoelhada no chão, tremendo visivelmente. Uma venda branca cobria seus olhos, sugerindo que era cega há algum tempo. Ao redor dela, dois soldados permaneciam imóveis: um mantinha uma expressão dura, como se aquela fosse apenas mais uma ocorrência rotineira, enquanto o outro, um jovem de olhar incerto, parecia desconfortável com a situação.

    Malo ficou em silêncio, observando de perto. Aura, cruzando os braços, comentou em voz baixa:
    — Pelas vestes, parece uma escrava. Ou, talvez, alguém que está em dívida com os soldados.

    Renier não respondeu. Sua paciência, já curta, esgotou-se diante daquela visão. Ignorando qualquer protesto das duas, ele caminhou direto para a cena. O soldado mais velho, de olhos escuros, imediatamente o encarou com desconfiança, franzindo o cenho.
    — Quem é você? — perguntou o homem, com voz seca e cortante.

    Renier parou a alguns passos da mulher, mantendo sua expressão serena, mas com um olhar que intimidava.
    — Só alguém de passagem. Vi a comoção e quis entender o que está acontecendo.

    A mulher continuava chorando, os ombros sacudindo de forma descompassada. Mesmo sem poder enxergá-lo, parecia se esforçar para localizar a origem da voz calma e firme de Renier. O soldado deu um passo à frente, o semblante endurecido.

    — As regras aqui são claras. Aqueles que não podem pagar o tributo para permanecer na cidade tornam-se escravos. Não há exceções.

    Renier agachou-se ao lado da mulher, ignorando a rigidez do soldado. Tocando levemente no ombro dela, ele murmurou. — Respire fundo. Você precisa se acalmar antes de qualquer coisa.

    A mulher obedeceu, mesmo que com dificuldade, e aos poucos seus soluços diminuíram.
    — Me diga o que aconteceu, — Renier pediu, sua voz gentil, mas firme.

    Ela hesitou por um momento, mas finalmente respondeu, ainda trêmula:
    — Meu marido… ele era soldado. Morreu na última batalha contra os monstros da floresta. Agora somos só eu e minha filha pequena. Não conseguimos pagar o tributo…

    Renier franziu o cenho, ligando os fatos.
    — Seu marido era quem sustentava a casa. Com ele morto, vocês foram rebaixadas a escravas?

    A mulher apenas acenou, incapaz de responder com palavras.

    O soldado interveio, com um tom impassível:
    — Essas são as normas da Cidade Fronteira. Sem pagamento, ela e a filha serão escravas. Ou expulsas.

    Renier levantou-se devagar, segurando a mão da mulher e ajudando-a a ficar de pé. Ele olhou para o soldado mais velho com uma expressão indiferente, mas seus olhos carregavam algo perigoso.
    — E o que acontece quando alguém se torna escravo?

    O soldado deu de ombros, como se fosse a coisa mais banal do mundo.
    — São vendidos. O que acontece depois não é problema meu.

    Renier apertou os lábios, mas manteve a calma. Virando-se para a mulher, ele perguntou:
    — Qual é o seu nome?

    — Anastasia, — respondeu ela, a voz ainda baixa, mas agora mais estável.

    Renier ofereceu um leve sorriso.
    — Anastasia, eu sou Renier.

    Sem perder mais tempo, ele enfiou a mão na mochila e retirou um pequeno saco de moedas, o pagamento que havia recebido do velho que havia feito a escolta. Jogando o saco na direção do soldado, ele declarou:
    — Aqui está o pagamento por Anastasia e sua filha. Isso é suficiente?

    O soldado mais velho hesitou, seu rosto endurecendo com a ousadia do garoto. Antes que pudesse responder, o jovem ao lado dele interveio:
    — Isso é mais do que suficiente. A partir de agora, elas estão sob sua responsabilidade.

    Renier cruzou os braços, olhando fixamente para o soldado mais velho. Sua postura deixava claro que não toleraria nenhuma oposição. Depois de um longo momento, o homem apenas assentiu, claramente frustrado, mas ciente de que não havia nada que pudesse fazer.

    Renier voltou sua atenção para Anastasia, que segurava o braço dele com força, como se ainda não acreditasse no que havia acontecido.
    — Está tudo bem agora, — disse ele, em um tom mais leve. — Vamos levar você e sua filha para um lugar seguro.

    Malo e Aura, que observavam à distância, trocaram um olhar. Aura suspirou, cruzando os braços novamente. — Você realmente adora meter a mão em problemas, hein?

    Renier riu do comentário de Aura, como sempre encontrando leveza nas situações mais difíceis. Ele deu de ombros e respondeu com tranquilidade:
    — É meu dever ajudar, não é? Além disso, ninguém sobrevive sozinho, especialmente em uma cidade como essa.

    Anastasia, ainda insegura, hesitou por um momento antes de perguntar:
    — Mas… por que faria isso por mim? Gastar tanto com alguém como eu…

    Renier parou e olhou diretamente para ela, a expressão séria, mas os olhos carregando uma firmeza reconfortante.
    — Não se menospreze, Anastasia. Ninguém é menos digno de ajuda só porque está em uma situação difícil. Além disso, preciso de aliados por aqui. Você veio na hora certa. — Sua voz era calma, quase acolhedora, mas deixava claro que ele não via suas ações como um sacrifício, e sim como uma oportunidade.

    Ele gesticulou levemente para suas companheiras.
    — Estas são Malo, uma… demi-humana amiga minha — afirmou Renier, dando uma leve mentira sob a natureza do Wendigo. — E essa é Aura, minha guia.

    Malo sorriu abertamente, cruzando os braços e inclinando-se para frente em um gesto descontraído.
    — É um prazer conhecer você, Anastasia!

    Aura, por sua vez, respondeu de forma simples, mas com um tom gentil que suaviza sua habitual frieza. — Estamos aqui para ajudar, como Renier disse.

    Anastasia, claramente emocionada com a recepção calorosa, fez uma leve reverência.
    — Obrigada. Não sei como vou retribuir… Mas, por favor, aceitem minha casa como um lugar para descansar. Minha filha, Anny, vai ficar muito feliz em conhecê-los.

    — Não vai ser um incômodo para você? — indagou Malo.

    Anastasia negou com um aceno, e Renier olhou para suas companheiras.
    — O que acham? Parece um bom lugar para reabastecer as energias e planejar os próximos passos.

    Aura, acenou concordando, respondeu prontamente. — Desde que não seja o solo podre da floresta, já é um avanço.

    Com a decisão tomada, Anastasia começou a guiar o grupo pelas ruas estreitas da cidade. Renier caminhava ao lado dela, mantendo o olhar atento aos arredores, enquanto Malo e Aura trocavam palavras ocasionais mais atrás. O pequeno grupo seguiu em direção ao que Renier esperava ser um raro momento de descanso, embora ele soubesse, no fundo, que a calmaria nunca durava muito em sua jornada.

    Continua…

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