Capítulo 65: Mudanças e Solidão.
A caminhada durante a noite foi longa, mas Renier manteve o foco na organização. Depois de ter causado tanto alvoroço apenas ao pisar nesse mundo, era o mínimo que poderia fazer.
Seus olhos se moviam atentamente de um lado para o outro, enquanto a máscara de kitsune e o traje se camuflavam perfeitamente na escuridão. Apenas o brilho azul etéreo do entalhe da máscara permanecia visível, como um espectro silencioso vagando pela estrada rochosa sob as estrelas.
Ele parou por um instante, analisando os arredores.
— Escamas de Lizardmans vermelhos… as armaduras estão danificadas, mas ainda têm valor — murmurou para si mesmo. — Segundo os dados da O.S.N., essas peças são bem caras no mercado local…
Seu olhar caiu sobre o ícone do inventário, onde os cadáveres dos Lizardmans estavam armazenados. O fato de ter exterminado um exército inteiro não passou despercebido por sua mente, mas, estranhamente, não sentia nada. Nenhuma culpa, nenhum remorso.
“Ser um Guardião Negro deveria me fazer sentir o peso da vida e da morte… não deveria?”
Porém, quanto mais tentava refletir sobre isso, mais vazia a questão parecia. No final, ele apenas suspirou e voltou a caminhar.
— Dra. Jennifer, está aí? — perguntou casualmente, sua voz se espalhando pelo vento da noite.
Uma resposta veio, mas não da pessoa que esperava.
— Infelizmente para você, apenas a doce e envolvente Administradora está disponível no momento… — A voz suave carregava um leve interesse oculto por trás das palavras.
Renier sorriu de canto.
— Ora, Administradora, não pensei que estaria interessada em me ver vagando por aí.
Dentro da O.S.N., a Administradora se acomodou elegantemente na cadeira de comando, cruzando as pernas enquanto segurava sua caneca de café preto fumegante.
— E de fato não estou — respondeu ela com desinteresse fingido. — Mas como a Dra. Jennifer já encerrou seu expediente, decidi que farei companhia a você. Uma honra, não acha?
Renier soltou uma risada leve. — Bem, por hoje eu aceito essa mudança… desde que você não me obrigue a organizar milhares de itens enquanto me dá um sermão.
A Administradora riu suavemente, pousando a caneca no balcão ao lado.
— Então Jennifer realmente descontou sua frustração enquanto trabalhava… — comentou. — Não se preocupe, serei mais tranquila. Mas se me irritar… talvez eu decida brincar um pouco.
Havia um brilho sutil de diversão e ameaça em sua voz. Renier apenas sorriu, sentindo que a noite ainda seria longa.
Renier puxou o capuz escuro, fazendo com que a máscara desaparecesse gradualmente, deixando seu rosto visível na penumbra. Seus olhos percorreram o ambiente ao redor, perdidos em pensamentos silenciosos. Ainda assim, algo dentro dele não o deixava em paz.
— Posso perguntar algo? — Sua voz cortou o silêncio, direcionada à Administradora.
Do outro lado da linha, uma risada suave.
— Mas é claro — respondeu ela, um tom de interesse genuíno em sua voz. — Afinal, a mente mais brilhante e perspicaz está aqui para responder.
Renier ignorou a provocação e foi direto ao ponto.
— Quando fui recebido pelos Lizardmans, os ataques contra mim começaram imediatamente… — Ele fez uma pausa breve antes de continuar. — Mas o que me incomoda não é o confronto, e sim como eu reagi. Eu os matei sem hesitação, sem sequer ponderar. Agi como se fosse natural… Como se matar fosse a única resposta.
Ele estreitou os olhos.
— Essa é a atitude que um Guardião deveria ter?
A Administradora bebeu um gole de seu café antes de responder, sua voz carregando uma honestidade cortante.
— Não.
Renier não escondeu sua surpresa com a resposta direta.
— Um Guardião Negro deve priorizar o equilíbrio — continuou ela. — Matar sem sentido ou sem um propósito claro na balança não é o que define um verdadeiro Guardião.
As palavras ressoaram em sua mente. Ele hesitou por um instante antes de perguntar:
— Então… tem algo errado comigo?
Mas, ao contrário do que esperava, a Administradora sorriu, batendo a colher contra a borda da caneca de café.
— Não, Renier. O problema não é que você agiu como um Guardião. — Sua voz ficou levemente provocativa. — O problema é que você agiu como um Dragão.
O silêncio pairou no ar.
— …Um Dragão? — Renier franziu a testa.
A Administradora inclinou-se levemente para frente, como se estivesse prestes a revelar algo importante.
— Você não é apenas humano. Não é apenas um Guardião. E, com certeza, não é apenas um demônio ou um oni, caso prefira essa definição — afirmou ela, seu tom carregado de um conhecimento mais profundo do que ele esperava. — Você é muitas coisas, Renier, camadas sobre camadas de uma existência complexa e única.
Ela fez uma breve pausa antes de soltar a revelação:
— E uma dessas camadas… é a de um Dragão. O Dragão Cósmico.
Renier ficou em silêncio por alguns segundos, processando suas palavras.
— Então você está dizendo que… eu não sei quase nada sobre minha própria natureza ou minha espécie?
— Exatamente.
Ele soltou um suspiro indiferente.
— Para ser honesto, minha família, que supostamente deveria me ajudar com isso, nunca me procurou. Então eu simplesmente vejo tudo isso dentro de mim como uma arma para derrotar o Vazio.
A Administradora riu suavemente, parecendo apreciar sua perspectiva.
— Você tem um jeito prático de encarar as coisas — disse ela, quase com um tom de tutora. — Mas há algo que você precisa entender. Desde a primeira vez que assumiu sua forma dracônica na batalha contra a Sombra, seus instintos começaram a despertar. Eles estavam dormentes, mas agora estão ativos… e reagindo ao mundo ao seu redor.
Renier ponderou sobre isso, seus pensamentos vagando até o momento em que sentiu aquele frio estranho na sala da Administradora.
— Então foi por isso que senti aquela sensação estranha…
Ela assentiu.
— Para os Dragões, Renier, não existe nada acima deles. São orgulhosos e jamais abaixam a cabeça para qualquer coisa. E você não é um dragão qualquer — sua voz se tornou mais firme. — Você tem uma natureza cósmica. Raros e únicos, Dragões Cósmicos não se submetem a nada. Eles desafiam tudo. E se alguém tentar se impor contra você…
Ela pausou deliberadamente antes de concluir:
— Essa pessoa não será vista como um adversário, mas apenas como um inferior que ousou se igualar a você.
Renier fechou os olhos por um breve instante, absorvendo as palavras.
— Então… minha chegada neste mundo… e a forma impiedosa como matei os Lizardmans… foi tudo um reflexo do meu instinto natural como Dragão?
Um sorriso satisfeito se formou nos lábios da Administradora. Sem dizer uma palavra, ela bateu a colher contra a caneca com um som firme, como se estivesse confirmando um acerto absoluto.
Renier soltou uma risada baixa enquanto continuava a caminhar, seus passos pesados ecoando no chão, enquanto seus pensamentos se perdiam na ideia de sua natureza dracônica.
A lembrança do poder que ele havia exercido contra a Sombra ainda o fazia sentir uma chama interna, uma sensação de grandiosidade que jamais havia experimentado antes.
Transformar-se em dragão pela primeira vez… aquilo havia sido algo indescritível. O poder que percorreu seus ossos, a força que elevou seu ser, sua resistência expandida de uma forma que ele mal conseguia compreender.
— Ser um dragão… — murmurou ele, a voz carregando um leve sorriso. — Isso foi algo bem incrível…
A Administradora, observando-o de longe, respondeu com uma leveza na voz, mas com uma ponta de ironia disfarçada.
— Bem, qualquer coisa que não seja humana já é um passo à frente, não é?
Renier ouviu, sentindo um leve desdém em suas palavras, como se o simples fato de mencionar “humano” fosse uma ofensa velada para ela. Ele não soubera ao certo se deveria questionar ou reagir, então preferiu deixar passar, optando pelo silêncio.
O vento, frio e suave, acariciava seu rosto enquanto ele caminhava, o som de suas botas estalando contra o calcário ecoando na noite silenciosa. Ele olhou ao redor, observando as pastagens vazias, o horizonte distante iluminado apenas pela luz suave das estrelas. O brilho em seus olhos parecia intensificar à medida que ele sentia a vastidão do lugar.
Sua mente vagava, absorvendo o ambiente mágico que o cercava, mas também uma sensação que ele não conseguia compreender completamente.
— Mundos mágicos… — ele murmurou para si mesmo. — Tem algo de… magia neles. Mas uma solidão que eu não entendo.
Silêncio. Nenhuma resposta veio pelo dispositivo da Administradora, talvez porque essa solidão não fosse algo que pudesse ser compartilhado. Não havia palavras para aquilo.
Renier se permitiu pensar, talvez sua mãe, Yggdrasil, pudesse estar ali, com ele, para compreender o que ele sentia. Mas a ausência dessa resposta parecia também refletir sua falta de conexão com o lugar, um vazio que nem mesmo a presença de sua mãe poderia preencher.
O som distante de uma coruja cantando quebrou o silêncio. Renier puxou o capuz escuro novamente, fazendo com que a máscara se formasse e a luz neon em sua roupa brilhasse com um brilho frio. Seu olhar se endureceu por um instante, mas logo se suavizou, como se ele mesmo não soubesse o que fazer com aqueles pensamentos.
Antes de retomar a caminhada, Renier soltou uma última frase, sua voz tingida com desdém e ironia.
— Eu sou tudo isso… Um dragão, um demônio, uma divindade, uma valquíria, até um espírito ou humano. — Ele riu, a risada amargurada. — Mas no final, nenhum disso parece realmente fazer parte de mim. Eu perco cada uma dessas partes, uma a uma.
E, com isso, ele seguiu em frente, seus passos ecoando na quietude da noite, enquanto o vento ainda sussurrava ao redor, como se estivesse tentando entender os sentimentos que ele não podia expressar.
Continua…
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