Capítulo 71: Cidade dos Morales Parte 2.
A cidade dos Morales era vibrante, cheia de vida e barulho. Enquanto caminhavam pelas ruas de pedra, Mila fazia questão de mostrar os lugares mais movimentados e interessantes. O destaque era a grande feira a céu aberto, onde comerciantes se espalhavam em tendas coloridas ou circulavam como ambulantes, vendendo seus produtos de um lado para o outro.
Renier observava tudo com atenção. O fluxo de pessoas era intenso, e a diversidade de mercadorias variava de frutas frescas a tecidos finos, passando por armas rudimentares e ervas misteriosas. Entre os vendedores, havia muitos idosos e crianças ajudando a conduzir os negócios. Isso o fez erguer uma sobrancelha.
— As crianças daqui não deveriam estar estudando? — questionou, olhando para um pequeno garoto que empilhava sacas de grãos enquanto sua mãe negociava com um cliente.
Mila suspirou, como se já esperasse essa pergunta.
— Só os nobres têm esse luxo — explicou, dando de ombros. — Crianças das vielas ou do lado leste sempre trabalham com os pais.
Renier não demonstrou, mas aquela ideia lhe incomodava. Ele vinha de um mundo onde a educação era um direito básico, algo natural. Aceitar que, para aquelas crianças, o aprendizado era um privilégio inacessível não era algo fácil de engolir.
Mila o observou de soslaio antes de perguntar:
— Você é algum tipo de nobre?
Renier sorriu de canto.
— Não, sou apenas um mercador… ou pelo menos tento ser.
A garota riu suavemente.
— Você é bem bonito para alguém que carrega peso o dia inteiro.
Renier piscou, surpreso pela observação repentina.
— O que quer dizer com isso?
Mila inclinou a cabeça, avaliando-o.
— Seu jeito de falar e suas roupas… Tudo em você parece algo de alguém que recebeu uma boa educação.
Renier abaixou os olhos para seu traje, feito pela Administradora. Ele nunca havia parado para pensar se sua vestimenta transmitia uma impressão luxuosa, mas aparentemente sim.
Mila continuou:
— Nobres normalmente não falam com pessoas como eu. Eles nos olham como se fôssemos… sei lá, lixo. Mas você não parece sentir nojo ou aversão, como eles.
Renier cruzou os braços, encarando-a.
— Por que eu sentiria nojo de você?
Ela hesitou, como se não tivesse uma resposta concreta.
— Não sei… Só estou acostumada a ser tratada assim.
Renier balançou a cabeça, negando.
— Não deveria. Você não é inferior a ninguém só porque tem menos dinheiro ou não tem um grande território.
Mila piscou algumas vezes, surpresa com a resposta de Renier. Um sorriso genuíno surgiu em seu rosto.
— Você realmente é diferente dos rapazes que eu conheço.
Renier olhou para frente, desviando-se da intensidade do momento.
— Já tive uma amiga que pensava de forma diferente sobre a vida… mas, de certo modo, ela se parecia com você.
A curiosidade brilhou nos olhos de Mila, mas antes que pudesse perguntar mais sobre essa amiga, um grito irritado ecoou pela multidão.
A confusão rapidamente atraiu olhares, incluindo os de Renier e Mila. As pessoas começaram a se agrupar em um círculo, criando um espaço ao redor da cena.
No centro, um homem de corpo robusto, vestido com um manto dourado sobre uma túnica branca e um gorro que lhe cobria a cabeça, gesticulava com fervor. Seu rosto estava avermelhado, talvez pelo calor ou pela exaltação de suas palavras.
Renier estreitou os olhos.
— Esse cara faz parte de algum culto?
Mila pareceu surpresa com a pergunta.
— Você não reconhece? Ele é da Igreja da Deusa da Luz.
Renier deu de ombros.
— Nunca fui ligado a religiões.
O padre continuava com seu discurso inflamado. Mas, ao invés de expressar fé genuína, suas palavras soavam mais como uma propaganda bem ensaiada.
— Somente aqueles que creem verdadeiramente na Deusa da Luz serão salvos! — bradava ele.
Ao lado do padre, uma criança peculiar estava encolhida no chão. Era uma menina de aparência frágil, coberta de sujeira, vestida em trapos. Mas o que realmente chamava a atenção eram suas nove caudas escuras e seus olhos azuis, brilhando como duas safiras frias. Seu corpo estava repleto de ferimentos, alguns recentes, outros já cicatrizados, como marcas de uma vida de sofrimento.
Renier sentiu algo se agitando dentro dele. Seu olhar se tornou afiado, e ele já suspeitava de que não iria gostar do rumo daquela situação.
O padre ergueu a mão, apontando para a menina como se ela fosse uma praga viva.
— Bestas imundas e dragões malignos têm invadido nosso território! Apenas a devoção inabalável à Deusa da Luz pode nos salvar!
O murmúrio da multidão começou a crescer, algumas pessoas assentindo, outras trocando olhares preocupados.
— Desde que essas abominações foram aceitas como escravos em nosso território — continuou o padre. — Monstros passaram a atravessar a barreira da Cidade dos Morales!
Ele olhou para a menina com um desprezo evidente.
— Esses seres são os filhos da Deusa Maligna e seus Pesadelos! Esse monstro é uma afronta à nossa sagrada bênção!
A multidão começou a se exaltar, convencida pelo discurso de ódio do homem. Vozes se ergueram, algumas clamando por punição, outras reforçando a fé na Deusa da Luz.
Renier, com sua expressão neutra, olhou para Mila.
— Tem algum fundo de verdade no que ele está dizendo?
Mila hesitou, cruzando os braços.
— Bem… a Deusa Maligna caiu no mundo milênios atrás. Quando isso aconteceu, uma guerra instantânea começou. Nunca ninguém a viu diretamente, mas o poder dela era real.
Renier continuou a encará-la, esperando mais explicações.
— Quanto a essas bestas… — Mila lançou um olhar incerto para a menina. — Elas são feitas de escravos porque muitos dos monstros criados por essa deusa mataram inúmeros humanos no passado.
Renier não disse nada. Apenas observou.
Os olhos da menina, apesar de toda a sujeira e ferimentos, pareciam manter um brilho de inteligência… e desespero.
Renier voltou o olhar para o padre, que agora puxava uma toalha da bancada ao lado, revelando uma mesa cheia de pedras. Algumas eram do tamanho de punhos fechados, outras menores, mas todas pareciam ásperas e pesadas o suficiente para causar danos sérios.
O padre ergueu os braços teatralmente.
— A única forma de receber a purificação é combatendo o mal da Deusa Maligna!
Sua voz ecoou pela praça, inflamada por fervor e fanatismo.
— Estas pedras foram abençoadas! A graça da Deusa da Luz reside nelas, prontas para purificar a imundície que ameaça nossa cidade!
A multidão reagiu não com hesitação, mas com entusiasmo. Murmúrios de aprovação se espalharam, e algumas pessoas já se moviam para se aproximar da mesa.
— Mas, meus irmãos e irmãs — continuou o padre, seu tom ficando mais controlado, quase condescendente —, as bênçãos da Deusa não são ilimitadas. Somente aqueles verdadeiramente comprometidos com a salvação podem receber essa dádiva!
Ele fez uma pausa dramática, então levantou um dedo.
— Por uma generosa oferta de uma moeda grande de prata, vocês podem garantir sua purificação e mostrar à Deusa sua devoção inabalável!
Renier observou a reação do povo. Não houve hesitação. Mesmo com o preço elevado, a fila se formou rapidamente, cada pessoa ansiosa para comprar uma pedra e jogá-la na menina indefesa.
Mila, ao lado dele, murmurou baixinho, como se temesse que alguém a ouvisse.
— Isso… isso já foi longe demais.
Ela apertou os punhos.
— Se essa demi-humana morrer, isso será um crime contra as leis do Conde Morales.
Renier manteve os olhos fixos na cena, expressão neutra, mas sua mente trabalhava rápido.
— Se a igreja for culpada de um assassinato, especialmente de um escravo, isso pode ser um problema para eles… Então qual é o propósito disso?
O padre sabia o que estava fazendo. Ele não parecia ser o tipo de tolo que jogaria fora o poder da igreja por algo tão impulsivo. Havia um motivo por trás daquela encenação.
Mas Renier não estava interessado em descobrir qual era. Ele já sabia o suficiente: se ficasse ali parado, aquela criança seria apedrejada até a morte.
Continua…
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