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    O som ritmado das gotas d’água ecoava pela caverna, cada gota estalando no silêncio úmido e opressivo do ambiente. A escuridão ao redor não era absoluta; formas rochosas irregulares e umidade reluzente nas paredes tornavam o local vagamente visível. O chão sob ele era frio, áspero, e exalava um cheiro mineral, típico de grutas subterrâneas.

    Renier abriu os olhos lentamente, sentindo o corpo dolorido. Sua mente se embaralhou por alguns segundos antes de finalmente lembrar-se do que havia acontecido. O impacto, o colapso da cidade, a energia demoníaca devorando tudo. Seu olhar afiado percorreu o ambiente, avaliando onde estava. Aquela criatura… Para onde o havia enviado?

    Erguendo-se cautelosamente, seus instintos se mantinham afiados. Então, ele viu. Deitada a poucos passos, Mila permanecia imóvel, o peito subindo e descendo levemente. Ao lado dela, a menina demi-humana, a pequena kitsune, também jazia desacordada, seus cabelos bagunçados contrastando com sua expressão tranquila. A visão o surpreendeu por um momento, mas logo o alívio tomou conta.

    Movendo-se com leveza para não assustá-la caso acordasse repentinamente, Renier se aproximou de Mila e se agachou ao seu lado.

    Renier estendeu a mão e sacudiu levemente o ombro. — Mila acorde… — chamou, a voz baixa mas firme.

    Ela gemeu, os olhos piscando algumas vezes antes de se abrirem por completo. Sua primeira reação foi o medo. Assustada, tentou se mover abruptamente, mas Renier a segurou pelos ombros com delicadeza, impedindo-a de fazer algo precipitado.

    — Está tudo bem, — ele afirmou, de tom calmo, mas carregado de segurança. — Você está segura.

    Mila respirou fundo, a expressão ainda aflita. Seus olhos escuros correram pelo ambiente, absorvendo a escuridão sufocante da gruta.

    — Onde estamos? — sua voz saiu trêmula, quase um sussurro.

    Renier permaneceu em silêncio por um momento, sua mente conectando as peças do que lembrava. Então, as palavras da criatura voltaram à sua mente como um eco distante.

    — A cidade iria afundar em um labirinto, — murmurou, recordando-se das palavras exatas da entidade. Seu olhar encontrou o de Mila. — Provavelmente… é onde estamos agora.

    Renier ficou parado por um momento, imerso em seus próprios pensamentos. Algo estava estranho ali.

    O ambiente inteiro parecia pulsar com uma presença, algo grande e pesado. Não conseguia sentir a criatura, mas o ar carregado de uma invocação poderosa sugeria que estavam muito abaixo da superfície.

    O vento úmido e a respiração fraca da kitsune, Mila, confirmavam isso. Algo estava profundamente enraizado no subterrâneo, e Renier sentia que cada passo mais fundo naquele labirinto só os aproximava da calamidade.

    Ele olhou para Mila, seu olhar ainda calculando a situação, e suspirou, tentando suavizar um pouco o peso do momento.

    – Precisamos acordar a menina. – Disse, a voz firme, mas suave, tentando não alertá-la mais do que o necessário.

    Caminhou até a kitsune caída, seus olhos agora focados nas cicatrizes antigas e nos ferimentos recentes que cobriam seu corpo. A visão não era bonita, mas Renier sabia que havia algo mais ali, algo que poderia ser útil para ele.

    Enquanto tocava as feridas com a ponta dos dedos, ele lançou um olhar de lado para Mila, que parecia ainda tensa.

    – Você sabe como esses labirintos funcionam? – Perguntou, curioso.

    Mila, com um semblante preocupado, olhou para ele, a aflição visível em seus olhos.

    – Normalmente, eles são gerados pela divindade corrosiva da Deusa Maligna… Ou pelo menos, era o que a igreja sempre dizia. – Ela hesitou por um momento, como se ponderasse a ideia. – Mas, depois de ver um monstro se passando por um membro da Deusa da Luz, não posso ter mais certeza de nada.

    Renier deu uma leve risada, mas não era algo que transmitia prazer.

    – Confiar cegamente em líderes religiosos nunca acaba bem. – Disse ele, com uma pitada de sarcasmo na voz. A mão de Renier se abriu, e uma luz verde suave surgiu, envolvendo os ferimentos da kitsune. Em questão de segundos, as cicatrizes e os ferimentos foram curados, a pele restabelecendo-se de maneira impecável.

    Mila ficou surpresa, os olhos arregalados, como se tivesse se esquecido da situação atual. Ela olhou para ele, ainda incrédula.

    – Você é realmente bom com magias… aquela de fogo azul, e a magia de luz que usou antes… – Ela murmurou, como se estivesse tentando processar tudo.

    Renier deu um sorriso orgulhoso, mas não negou o elogio.

    – Tem que ser forte, se quiser se defender sozinho na estrada. – Respondeu ele, com um toque de humor nas palavras.

    Mila soltou uma risada abafada, parecendo desconcertada, antes de olhar para o chão com um sorriso tímido.

    – Eu queria ter uma habilidade assim… – Ela murmurou, sua voz baixa. – Só tenho um status com uma classe de auxiliar. Não é grande coisa, na verdade. É meio… inútil. Mas é de se esperar para alguém de classe baixa…

    Renier ergueu uma sobrancelha, intrigado, e deu um passo mais perto dela.

    – Classe auxiliar? O que há de ruim nela? – Perguntou, genuinamente curioso.

    Mila deu de ombros, uma expressão resignada nos olhos.

    – Os status são dados ao nascimento, como uma marca que decide seu futuro. Se você nasce com o status de Cavaleiro, será bom com cavalos e espadas, mas jamais aprenderá a cozinhar ou fazer outras coisas. – Ela balançou a cabeça. – Não há muito o que fazer sobre isso.

    Renier ponderou por um momento sobre aquilo. Um sistema que traçava o futuro de uma pessoa desde o nascimento? Que absurdo. Não era possível que alguém fosse tão limitado.

    – Então… O que o status de auxiliar te permite fazer? – Perguntou ele, embora já soubesse a resposta.

    – Não sou boa nem ruim em nada. – Ela respondeu, dando mais uma olhada desanimada para o chão. – Posso tentar de tudo, mas nunca serei excepcional em nada.

    Renier olhou para ela por um longo momento, antes de dar um sorriso sutil.

    – Não acho que seja uma habilidade ruim. – Disse ele, pensativo. – Você pode fazer de tudo, mesmo que não seja ótima em nada. Com os recursos certos, isso pode ser bem útil.

    Ele pensou sobre seu próprio status, quando foi analisado na cidade. “Guardião Negro”, com uma classe secundária de Mercador. Até mesmo o sistema de classes parecia ter suas falhas, mas isso era irrelevante para ele. O que importava era o que ele podia fazer com suas habilidades, independentemente do que seu status dissesse.

    Olhou novamente para a menina kitsune. Ela começava a abrir os olhos lentamente, exausta, mas parecia estar se recuperando. Algo nela parecia… submissa. Renier notou isso imediatamente, como se ela estivesse condicionada a uma vida de obediência. O olhar vazio nos olhos dela era uma marca do sofrimento.

    – Você está bem? – Perguntou, quebrando o silêncio.

    A kitsune, com os olhos ainda meio fechados, olhou para ele e, para sua surpresa, falou, sua voz quase sem emoção.

    – Herói…

    Isso pegou Renier de surpresa. Ele não esperava ser chamado assim, mas tentou não deixar transparecer. Na verdade, ficou até um pouco satisfeito, mas não queria demonstrar. Era mais uma questão de orgulho do que uma verdadeira surpresa.

    – Fico feliz que você esteja bem. – Ele respondeu com um sorriso. – Você consegue se levantar?

    A kitsune acenou com a cabeça e, com esforço, se levantou. Mas havia algo no modo como ela se levantou, como se estivesse obedecendo a uma ordem, não como se fosse um pedido.

    Renier cruzou os braços, observando a cena com um olhar calculista.

    – Ao que tudo indica, fomos jogados dentro de um labirinto abaixo da superfície. – Disse ele, como se estivesse fazendo uma avaliação rápida da situação.

    Mila assentiu, seu olhar mais sombrio.

    – Um labirinto, quando nasce, é para sacrificar os indivíduos para o despertar de uma Calamidade. – Sua voz estava tensa, claramente preocupada.

    Renier arqueou as sobrancelhas. A palavra “Calamidade” não era algo que ele usava frequentemente, mas ele sabia exatamente o que isso significava. Uma força destrutiva capaz de acabar com muito mais que uma simples cidade. Se fosse deixada se fortalecer…

    – Isso pode ser um problema global. – Renier murmurou, o tom de sua voz se tornando grave.

    Ele olhou novamente para as duas, sua expressão agora mais focada.

    – O que importa agora é tirá-las de aqui. Precisamos subir para as partes superiores. – Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, pensativo. – A prioridade é não deixar ninguém morrer. Se o fizermos, serão combustível para a Calamidade, e isso não é algo que eu possa permitir.

    A kitsune, com um olhar inquieto, fez uma pergunta que Renier não tinha considerado.

    – E todos os outros da cidade, não estão aqui embaixo também? – Perguntou ela, seus olhos cheios de incerteza.

    Renier, com a mão no queixo, refletiu por um momento. Lembrou-se de Lívia e Priscila, que estavam bem próximas quando tudo aconteceu. Isso significava que havia mais pessoas ali, mais do que ele tinha imaginado. Isso complicava as coisas.

    – Parece que sim. – Ele murmurou. – Há mais um pelotão interno além de vocês duas, provavelmente dentro do labirinto. Eu posso não gostar de sair por aí resgatando todo mundo, mas não podemos deixar que morram. Eles são apenas mais peças no jogo. Vamos garantir que ninguém seja sacrificado.

    Ele se virou para a kitsune, com um sorriso confiante.

    – Qual é o seu nome? – Perguntou ele.

    – Luna… – A kitsune respondeu, olhando-o com um brilho de gratidão nos olhos.

    – Prazer, Luna, eu me chamo Renier – Ele sorriu, se virando para Mita. – E esta é minha amiga Mita.

    Mila olhou para ele com um olhar desconfortável.

    – Você não acha que só nós três conseguimos vencer os monstros dentro deste labirinto? – Perguntou, visivelmente preocupada.

    Renier soltou uma risada curta, mas de tom convencido.

    – Claro que vamos vencer. – Disse ele com confiança. – E vocês duas vão ajudar, claro. Afinal, não podemos deixar essa diversão toda só para mim.

    Renier olhava para ambas com um leve interesse em saber o limite das habilidades que possuíam, e não deixaria passar essa oportunidade…

    Continua…

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