Capítulo 86: O Sacrifício Final.
Enquanto a batalha se desenrolava nas profundezas do labirinto, Renier permanecia imóvel diante do altar pulsante do Núcleo.
O ambiente ao seu redor era carregado de energia arcana, como se o próprio espaço vibrasse sob sua presença.
Ele estava concentrado, seus olhos azuis semicerrados, e as mãos envoltas em filamentos de energia cósmica, absorvendo a essência mágica do local como um maestro que rege o próprio tecido da realidade.
As paredes vivas do labirinto reverberam com os tremores da luta que acontecia a metros dali, mas o altar… o altar permanecia intacto.
A Rainha jamais atacaria aquilo que jurara proteger. Era uma ironia cruel, o epicentro de seu poder, agora corrompido e violado por alguém que conhecia suas entranhas melhor do que ela.
Renier, no entanto, sentia-se mais impotente do que nunca.
Seus dedos trêmulos denunciavam sua exaustão. O esforço de cortar a conexão da criatura com o Núcleo exigia precisão absurda, domínio absoluto da magia do local, e ele não podia desviar sua atenção.
Uma falha, e a Rainha voltaria a sugar o poder da fonte. Seria o fim.
Ele sabia o que acontecia lá atrás, mesmo sem olhar.
Sentia os choques de energia, os cortes no ar, o colapso das defesas de seus aliados. Seus sentidos estavam conectados a tudo.
Mas seus pés estavam cravados ali, no centro de tudo, e não podia fazer nada além de confiar.
Ele rangeu os dentes, frustrado.
“Eu sou o Guardião Negro… o pilar que deveria protegê-los. Não é a eles que devo confiar minha vida… sou eu quem deve carregar o fardo.”
Mas ali estava ele, parado. Inerte. Apenas sentindo.
Atrás dele, Lhian observava em silêncio.
Quando Renier falou, sua voz carregava um cansaço silencioso:
— A situação… piorou mais à frente?
Lhian hesitou. Seu corpo tremia levemente, não de medo, mas de angústia.
— Eu… não sei. Talvez as chances de vencer tenham sido encurtadas demais. Você… tem certeza de que confiou nas pessoas certas?
Silêncio.
Renier não respondeu de imediato. A energia em suas mãos crescia.
Ele fechou os olhos.
Quando os abriu novamente, havia neles uma calma inquebrantável.
— Eu nunca faço nada… sem absoluta certeza. Se eu confiei neles… é porque eu sei que vão sobreviver. Cada um deles.
Do canto da sala, o velho Mercador de Escravos se encolheu, sentado no chão frio, com o rosto amassado numa careta de desprezo.
— Tsc… aqueles inúteis vão morrer. Quando isso acontecer, seremos os próximos.
Renier virou a cabeça só o suficiente para que um brilho ameaçador surgisse no fundo de seus olhos. Ele sorriu de canto, com a ironia fria de quem brinca com o destino.
— Quando isso acontecer… a gente te usa de escudo e corre. Afinal, alguém sem importância não vai fazer falta lá em cima, certo?
A voz saiu baixa, mas afiada como uma lâmina feita de estrelas mortas.
O mercador engasgou no próprio ar. Tentou rir, mas o som morreu na garganta. Olhou nos olhos de Renier e, por um momento, teve certeza de que ele estava falando sério. Ou não. E talvez esse fosse o verdadeiro terror.
Renier voltou-se para o altar.
— Vamos, seus desgraçados… ainda não é hora de morrerem. Eu ainda não terminei aqui.
E assim, o Guardião Negro continuou, mesmo com o coração em chamas e os punhos tremendo.
Conectado ao Núcleo…
Confiando no impossível. Porque se alguém podia suportar o peso do mundo nas costas… era ele.
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A Rainha Aranha recuou por um breve instante, suas patas se ergueram do solo envenenado e começaram a vibrar com energia concentrada.
As glândulas em sua mandíbula pulsava com aquele brilho vermelho maligno e viscoso, ela preparava outro disparo devastador, semelhante ao que quase dizimou o grupo momentos antes.
Mas Mila não ia esperar dessa vez.
— Esse vai ser o último ataque com magia das sombras… então vou fazê-lo valer a pena! — gritou ela, sua voz firme ecoando pelo labirinto.
De imediato, a fumaça negra se espalhou como um mar sombrio, expandindo-se em todas as direções.
Como um véu de trevas líquidas, a magia cobriu o território, engolindo visão, luz e forma.
A Aranha, embora poderosa, perdeu completamente a noção de direção. Suas presas batiam no ar, suas patas golpearam o nada. Ela rugia com fúria frustrada, cega e desorientada.
Liam, do outro lado, ergueu a voz entre os ecos da batalha:
— Necromancia, Mila! NECROMANCIA! — berrou, como se a resposta estivesse ali o tempo todo.
Ela arregalou os olhos, confusa. Necromancia? Por um segundo, hesitou. Mas então se lembrou, a armadura.
A armadura do Dullahan…
Renier havia mencionado que ela vinha carregada com o poder dos mortos… mas ele fazia essas coisas parecerem tão fáceis que ela nem tinha cogitado usá-la assim.
Mila respirou fundo. A fumaça começava a dissipar, e com ela, a vantagem do grupo se desintegraria.
— Não posso hesitar — murmurou ela decidida. — O Renier não hesitaria…
Com força, ela cravou o cabo da foice no chão. O impacto ressoou como um trovão abafado.
No mesmo instante, um círculo mágico se revelou sob seus pés, obscuro como a morte, mas com bordas brancas acinzentadas, tremeluzindo como brasas prestes a despertar.
A energia ao redor dela mudou. Um frio sobrenatural soprou pelas paredes do labirinto, como se o próprio tempo tivesse parado.
E então, do solo, das paredes, das entranhas esquecidas daquele lugar amaldiçoado… eles surgiram.
Esqueletos. De homens. De monstros. De horrores esquecidos. Um exército de mortos-vivos, puxados das entranhas do labirinto, quebrando rochas e teias com os ossos rangendo, olhos vazios brilhando em um azul espectral. Uma verdadeira legião necromântica.
A Rainha, agora visível, avançava furiosa, mas foi recebida por um enxame de ossos, espadas enferrujadas e garras esqueléticas. Como mariposas famintas ao redor de uma chama, os mortos a envolveram.
Mila ergueu a foice e a apontou diretamente para a criatura.
— Ela é de vocês… Vão! — sua voz soou gélida, quase outra pessoa. E os esqueletos obedeceram.
A Aranha rugiu, golpeando, esmagando, cortando. Mas a cada esqueleto destruído, mais dois surgiam, se agarrando ao seu corpo, prendendo suas patas, tentando a derrubar. Ela cambaleava, cercada.
Mila então correu até onde estavam Laim, Luna. Arrastando a Liza enfraquecida consigo.
— Essa habilidade não vai durar muito, — ofegou. — Temos que bolar um plano agora. Um ataque. Um só. Mas que acabe com essa desgraçada de vez.
Luna, ainda sangrando, abriu os olhos com esforço. Liam apertava os punhos, sentindo o tempo correndo. A decisão precisava ser rápida, precisa… e definitiva.
A última chance estava diante deles, e ela viria coberta de ossos, trevas… e a determinação de quem não aceita morrer antes da luta final.
Laim sorriu. Um sorriso calmo, carregado de uma melancolia serena que só quem já viveu o bastante para entender o valor do momento é capaz de expressar.
Com a mão trêmula, pousou sobre a cabeça de Luna, seus dedos percorrendo os fios prateados sujos de sangue e poeira.
— Foi divertido… — disse ele, com um tom gentil. — Ver talentos tão grandes nascerem num lugar tão fundo… tão sombrio.
Seu olhar cruzou a sala, buscando e encontrando Renier, de pé diante do núcleo. O brilho cósmico iluminava sua silhueta como uma chama indomável.
— Aquele rapaz… — murmurou Laim, com admiração. — Ele sabe confiar nas pessoas certas, na hora certa. Eu vou fazer isso valer a pena.
Luna o olhou confusa, sentindo um aperto no peito.
— Do que está falando? Isso parece uma… — sua voz falhou — …despedida.
Sem responder diretamente, Laim se abaixou diante de Mila e jogou o manto vermelho sobre seus ombros. O tecido estava rasgado, marcado pelas batalhas, mas ainda exalava uma aura de magia.
— Tem um encantamento de fortalecimento e proteção — disse ele, sorrindo. — Tá todo feio agora… mas trata ele com carinho, tá?
Mila segurou o manto com força. Seu coração disparou.
Laim se ergueu com firmeza. Havia uma decisão nos seus olhos, irrevogável. Ele fitou as duas guerreiras, a voz firme:
— Só temos uma chance. Vou usar dois feitiços de amplificação… um em mim. Outro na Luna.
Deu alguns passos à frente, posicionando-se entre elas e o monstro, como um escudo humano.
— Já preparei a entoação. O feitiço que usei antes… só funciona uma vez. E vai ser agora.
Luna arregalou os olhos.
— Você não tá pensando em…?!
Ele virou o rosto para ela com um sorriso calmo. O olhar de quem já aceitou o preço.
— Faz valer a pena, Luna. E… não erra.
Luna engoliu seco. Um silêncio cruel caiu entre eles. Era a única opção. A única maldita opção.
Laim respirou fundo.
— Foi uma última aventura divertida… — disse ele, com nostalgia. — Eu caí nesse labirinto buscando algo emocionante pra fazer antes da aposentadoria. E achei. Proteger… sempre foi a minha maior honra em batalha.
A magia de amplificação ativou em Luna com uma violência absurda. Sua mana explodiu ao redor como um tornado dourado-prateado, misturado a resquícios rubros , uma aurora de fúria e determinação. Ela se levantou, mesmo ferida, ofegante… mas mais forte.
— Eu… vou fazer valer a pena. — declarou, com os olhos brilhando.
Mila, tremendo, segurou o manto sobre si.
— Eu vou guardar isso com carinho. E vou contar pra todos na cidade o que você fez aqui embaixo… Laim.
Ele apenas assentiu, seu sorriso humilde contrastando com a cena apocalíptica.
A Rainha Aranha se erguia, rugindo em fúria. Os esqueletos, mesmo numerosos, não conseguiam mais segurá-la. Um por um, eles tombavam, esmagados ou desintegrados.
Laim avançou. Um passo. Outro. E mais outro. O coração disparado, mas o espírito em paz.
— Sabe… esse feitiço que usei em mim… é tão idiota. Um velho truque de limpeza de esgotos. Serve pra atrair monstros de pequeno porte… marca o conjurador como presa.
Ele deu uma risada seca.
— Ela só vai enxergar a mim agora.
A Rainha se virou. Sua aura desabou sobre Laim como um abismo. Ele tremia até a alma, mas não vacilou. Estendeu as mãos. Lançou uma bola de fogo, pequena, patética… irritante.
O bastante.
O disparo dos fios vermelhos veio como uma sentença divina. O mundo desacelerou. Um brilho carmesim cruzou o ar como uma lâmina infinita. O corpo de Laim foi cortado em dezenas… centenas de fragmentos.
Sangue e pele se desfizeram como papel. Pilares ao redor foram rasgados como se fossem feitos de seda. O impacto soltou um pulso de vento e magia que sacudiu tudo.
O tempo parou.
Os pedaços do corpo de Laim caíram um a um… como folhas no outono. Silêncio.
Mas então, uma luz prateada como a lua.O poder de Luna atingiu o pico. Seus olhos arderam em prateado puro, refletindo dor e justiça.
— FAZENDO VALER A PENA! — gritou.
O disparo explodiu.
Um canhão celestial, azul-prateado-dourado, misturado à energia corrosiva da fúria e da perda, atravessou a sala como um meteoro divino. A Rainha foi atingida em cheio. Um grito hediondo cortou o labirinto enquanto tudo era consumido pela luz.
A destruição varreu a Sala do Chefe do Labirinto. Pilares, paredes, monstros, nada resistiu. Uma cratera surgiu onde antes havia chão. O brilho ofuscou tudo.
E no centro disso tudo, restava apenas o eco do nome de Laim… gravado nos corações daqueles que sobreviveram.
Continua…
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