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    No alto do moinho de trigo, onde o vento era mais puro e a vista mais ampla, havia uma janela aberta. Dela, era possível vislumbrar toda a cidade protegida por seus muros de pedra e, além deles, o mar dourado das plantações de trigo que se estendiam até onde os olhos podiam alcançar. O cenário parecia pintado à mão, um quadro vivo de paz.

    Lívia apoiava-se levemente no parapeito da janela, os cabelos dançando ao sabor do vento, os olhos fechados. Seu rosto exalava serenidade, como se o ar que soprava ali fosse o único lugar no mundo onde ela conseguia respirar de verdade.

    — Desde criança, esse era o meu lugar favorito — disse ela com um sorriso nostálgico. — Foi aqui que comecei a entender minha magia… onde o vento sussurrava segredos só pra mim.

    Renier permaneceu em silêncio por um momento, observando a mesma vista. A verdade é que ele não sentia  o mesmo arrepio no peito que ela sentia. Não havia história, nem raízes ali. Mas não podia negar: o lugar tinha algo de especial.

    — A vista é mesmo incrível… — disse ele, encostando-se na madeira da parede ao lado dela. — E é tão calmo aqui em cima… até parece que o mundo lá embaixo não existe.

    Mas o mundo existia. E estava esperando por ele.

    Enquanto seus olhos percorriam os muros da cidade e depois se perdiam além das terras conhecidas, o comunicador em seu ouvido apitou discretamente, emitindo um som quase imperceptível. Em seguida, a voz da Administradora surgiu, como um fantasma em sua mente.

    — Vai mesmo ficar aí parado, Renier? Não vai se permitir relaxar nem por um segundo?

    Ele franziu a testa, mas não respondeu. Nem com palavras, nem mentalmente. Apenas suspirou, pesado.

    Porque mesmo naquele refúgio, com o som do vento e a presença gentil de Lívia ao seu lado… os problemas ainda estavam lá. Acumulados. Espreitando. Crescendo.

    Ele sabia que não podia abaixar a guarda.

    Mas, por um instante, só um, ele permitiu que o vento levasse embora um pouco do peso em seus ombros. Mesmo que ele voltasse segundos depois.

    Lívia desviou os olhos da paisagem por um instante, focando discretamente na mão de Renier, repousando ao lado da sua. Seus dedos não se moviam, mas a proximidade era suficiente para fazer seu coração acelerar.

    “Será que eu deveria…?” ponderou ela, o pensamento vindo como uma brisa inesperada. Mas logo veio a onda de conflito interno. “Segurar a mão de um garoto mais novo… aqui, sozinhos nesse moinho… isso é indecente, não é?!”

    Seu rosto ficou rubro na hora, as bochechas queimando como brasas. Sem saber como lidar com o impulso, bateu as duas mãos nelas, tentando dissipar a vergonha na marra.

    Renier, alheio ao drama interno da companheira, mantinha os olhos voltados para o horizonte, analisando algo que havia capturado sua atenção. Mas então, como se uma decisão silenciosa tivesse sido tomada, ele se virou para ela e disse com serenidade:

    — Quero fazer isso.

    A fala a pegou completamente desprevenida. Lívia congelou.

    — I-isso o quê?! — gaguejou ela, já criando um filme inteiro na cabeça. — É muito cedo pra esse tipo de coisa, não acha?! Ainda mais aqui, sozinhos! É indecente pensar nisso!

    Renier franziu a sobrancelha, perplexo.

    — Espera… indecente? Do que você tá falando?

    Lívia entrou em pânico mental. “Droga, droga, droga…” Ela desviou o olhar, mexendo no cabelo, disfarçando.

    — Ahn… nada! Não falei nada! Esquece isso, bobagem. O que você queria fazer mesmo?

    Ele a olhou de canto, suspeitando da fuga descarada, mas preferiu não forçar. Ainda assim, a sobrancelha arqueada ficou ali, levantada como quem dizia “você não escapa disso pra sempre…”

    Voltando ao tom sério, Renier então comentou, como se estivesse costurando os pontos de algo que já vinha refletindo:

    — No forte do General Morales, ouvi a General Priscila comentando… O território além das cordilheiras vermelhas é domínio dos Dragões, certo?

    A pergunta fez Lívia endireitar a postura na hora. O tom dele era direto demais para ser só curiosidade casual.

    — Sim… — respondeu, agora mais contida. — Depois das cordilheiras vivem os Lizardmans Vermelhos. Aquela região pertence aos Dragões há séculos.

    Renier fixou os olhos nos dela.

    — É possível chegar lá?

    Lívia suspirou, cruzando os braços.

    — Para um mercador como você? Impossível. — Mas então, seus olhos brilharam com malícia e entusiasmo. — Mas… se for um pedido oficial da minha mãe, a nova Duquesa dos Morales, é possível. A travessia pode ser “justificada” como uma missão de estudo… mineração, geologia, coleta de recursos…

    Renier inclinou a cabeça.

    — Você costuma falar esse tipo de coisa pra qualquer um?

    Ela soltou uma risada convencida, ajeitando a capa como se estivesse se apresentando no teatro.

    — Óbvio que não! Mas se for com você me levando junto… então será com propósitos científicos, claro. — Ela deu um sorrisinho atrevido. — E pra ser honesta… sempre tive o desejo de conhecer os Dragões de perto.

    Renier cruzou os braços, refletindo por dentro. Ela é mais esperta, e mais ousada, do que aparenta… Mas o brilho nos olhos dela ao falar dos Dragões não era fingimento. Era puro fascínio.

    E talvez, só talvez, os dois estivessem começando uma jornada que ia muito além de uma simples missão ou estudo.

    Era o vento do destino soprando, e nenhum dos dois sabia ao certo onde ele os levaria.

    Lívia virou-se levemente, ainda apoiada na janela do moinho, e soltou a ideia com naturalidade, como se já tivesse pensado nisso há tempos.

    — Considerando que você enfrentou o Labirinto e seu nome já corre por toda cidade… com certeza conseguiriam aprovar uma solicitação pra uma expedição como essa.

    Ela se afastou da janela, ajeitando a capa com um gesto sutil.

    — Se quiser mesmo chegar até o território dos Dragões… posso conversar com minha mãe. — Fez uma pausa dramática, encarando Renier com aquele olhar de quem já estava dois passos à frente. — Vá até a casa dos Morales amanhã cedo. Eu cuido do resto.

    Renier cruzou os braços, analisando-a com um certo ceticismo.

    — Por que você se envolveria nisso? É perigoso. Fora do seu território. Fora da sua zona de conforto. E… estamos falando de dragões, Lívia.

    Ela deu um leve sorriso, nostálgico e sonhador.

    — Quando eu era criança, eu lia muitos romances de aventura. Heróis destemidos, princesas corajosas… e quase sempre havia um momento em que alguém montava em um dragão e voava pelos céus.

    Renier arqueou uma sobrancelha.

    — Então você quer ver um dragão de perto?

    Ela balançou a cabeça, negando com um gesto suave.

    — Não. Quero subir em cima de um. — Seus olhos se ergueram para o céu, tão azuis quanto a própria esperança que carregava. — Como maga do vento, meu maior sonho… sempre foi alcançar as nuvens com minhas próprias mãos. Voar. De verdade.

    Renier não conteve o sorriso. Aquilo não era só uma fantasia boba — era puro coração. Lívia podia ser nobre, estratégica e cheia de sarcasmo quando queria, mas ali, naquele instante, era só uma garota olhando para o céu como se ele pertencesse a ela.

    — É um sonho bonito — disse ele, com sinceridade rara. — E, se for isso mesmo… talvez esteja mais perto de se realizar do que você imagina.

    O vento soprou mais forte por um segundo, como se o próprio céu tivesse ouvido.

    E o moinho, como uma testemunha silenciosa daquela conversa, continuou girando suas hélices, devagar, mas constantemente, como os sonhos que acabavam de ganhar forma.

    Continua…

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