Capítulo 285: Seu Lar (2)

Tradução: Nimsay

Superamos com sucesso o obstáculo do octogésimo andar. Agora, Qlqr1 e Taoni tinham apenas dez missões restantes para completar o andar final.

‘Normalmente, é aqui que os obstáculos devem aparecer…’

A mesma coisa aconteceu em Niflheim.

Assim que se espalhou a notícia de que eu havia passado do octogésimo andar, outros jogadores de alto escalão começaram a me pressionar.

No entanto, tudo estava assustadoramente silencioso. Qlqr1 nem sequer recebeu uma nota de congratulações por limpar o octogésimo andar. As razões podem ser uma de duas: ou Seris havia removido todos os obstáculos potenciais, ou a maioria dos jogadores havia abandonado devido ao estado crítico do servidor.

Agora eu podia sentir isso claramente.

O servidor de Escolha-me!, que estava impecável quando joguei, estava em um estado desastroso.

A conexão estava caindo pelo menos uma vez por dia. Qlqr1 não parecia ser afetada e reconectava sem problemas, mas e os outros usuários?

Ao entrar no fórum oficial, os painéis de mensagens estavam completamente desorganizados.

Se fosse apenas o servidor travando, o problema seria resolvido ao esperar que ele se reconectasse, mas haviam os inúmeros erros graves que o acompanhavam. Heróis que desapareciam do nada, itens e habilidades aparecendo e desaparecendo aleatoriamente. Houve até relatos de fragmentos aparecendo em missões no décimo andar, que massacraram os heróis. 

Com as capturas de tela incluídas, Mobius não podia negar nada.

‘Quanto tempo mais eles conseguirão resistir?’

De acordo com a explicação de Yurnet, quando o servidor entrasse em colapso, todos as Salas de Espera mergulhariam no caos instantaneamente.

A deusa agindo como servidora estava suprimindo os trilhões de Fragmentos escondidos no limite dimensional. No entanto, sua capacidade de contenção não era perfeita e os fragmentos que excediam a capacidade estavam vazando pouco a pouco. A eliminação massiva desses fragmentos foi um dos grandes eventos de Escolha-me!, conhecido como Incursão Mundial.

‘…’

Mesmo sabendo a verdade, nada mudou.

Após uma breve pausa, Qlqr1 continuou os preparativos para conquistar o próximo andar. Com Niflheim secretamente fornecendo defesa externa, eu podia me concentrar apenas nas missões, o que era conveniente.

Do octogésimo primeiro andar em diante, não foi necessária muita força.

Qlqr1 obteve informações e enviou uma equipe de elite na missão.

Abri meus olhos e a primeira coisa que vi foi um céu cinza-acinzentado. Abaixo dele, estendia-se uma paisagem urbana em ruínas.

A missão do octogésimo andar na capital do Império, Bardia, causou estragos em vários lugares. E ao que parece, as missões continuarão a se desenrolar neste lugar.

— Tudo ainda está destruído — Jenna falou balançando a cabeça. Uma expressão de desgosto apareceu em seu rosto. — Eu pensei que algo mudaria depois de completar o andar oitenta, mas tudo continua o mesmo. Então eles realmente não vão reviver as pessoas de Taoni? Muitas pessoas morreram.

— Vamos.

Ajustei a gola da minha capa e caminhei pela avenida destruída. Alguns personagens não jogáveis, parecendo mercenários, estavam limpando os escombros dos prédios.

Ao longe, pessoas que pareciam ser refugiados estavam passando pelas ruas.

— Moço… — falou uma voz fraca. Olhei para o lado e vi que era uma menina que não parecia ter mais de dez anos de idade. — Estou com fome… Me dá algo para comer…?

Ela usava trapos sujos de poeira e cinzas, puxando minha jaqueta com força.

— Se você não quer morrer…

— Acalme-se. — Empurrei Velkist para o lado e procurei em meus bolsos. Tirei um pequeno pedaço de carne seca. Coloquei-o na mão suja da garota e sussurrei baixinho. — Fuja o mais rápido que puder.

A garota acenou com a cabeça e desapareceu em um beco. Pouco depois, uma dúzia de mendigos a seguiu.

Velkist soltou uma risada zombeteira.

— É inútil.

— É melhor do que passar fome.

Olhei novamente para a cidade imperial destruída, cheia de mendigos e refugiados. Ocasionalmente, os gritos e berros dos mercenários misturados com os lamentos dos refugiados podiam ser ouvidos.

— Não é uma visão agradável. Espero que isso seja resolvido logo — Jenna suspirou.

Passamos por mercenários, mendigos e refugiados em nosso caminho em direção ao centro da cidade.

Uma tenda de comando para o exército da princesa estava montada sobre as ruínas do palácio imperial. Um guarda que nos reconheceu se afastou para nos deixar passar.

— Quanta comida ainda resta?

— Se a distribuirmos três vezes por dia, não durará um mês.

— Reduza para uma vez por dia. Diminua o suprimento pela metade.

— Mas os cidadãos vão se revoltar…

— Diga a eles para esperar uma semana. Até lá, garantiremos mais alimentos.

— …Entendido.

Um mercenário que trazia ordens de Yoshu passou rapidamente por nós.

Do lado de fora da tenda de comando estava Yoshu, um homem corpulento com uma barba espessa e longa até o queixo, vestindo uma armadura de couro. Ele se virou com a testa franzida. Sua voz áspera me cumprimentou.

— Irmãozão.

— Ele está tão… velho — murmurou Jenna sem jeito, forçando uma risada.

Ele caiu na gargalhada quando viu Jenna.

— É embaraçoso, não é? Não tive tempo de fazer a barba. De qualquer forma, entre.

Yoshu puxou a aba de entrada da tenda de comando. Dentro havia uma sala vazia, composta apenas por uma grande mesa com um único mapa e algumas cadeiras.

— Vocês estão aqui. — A mulher sentada na cabeceira da mesa se levantou. Era Pria, a líder do exército da princesa, usando uma roupa de couro simples, inadequada para seu status de nobreza. — Sentem-se.

Sentei-me em uma cadeira ao lado da mesa e Jenna e Velkist se sentaram ao meu lado.

— Ouvi muitos gritos nos arredores —  comentei.

— Decidimos acolher os refugiados. Não tínhamos como evitar. — Pria suspirou profundamente, com os olhos fixos nas ruínas de Taoni. Ela se virou para Jenna. — Você sabe quantos morreram durante a primeira invasão?

— Nós não os impedimos? Não havia nenhum cidadão na capital naquela época.

— Alguns deles escaparam da capital. Foi por isso que enviei Yoshu.

— …Me desculpe. A culpa é minha por ser incompetente.

— Não, não há necessidade de se desculpar. É natural que não tenhamos conseguido lidar com isso. — Pria deu um sorriso amargo, mordendo o lábio. — Trinta por cento da população do império morreu.

— …

— O fato de deixar uma centena ou mais escapar causou a morte de dezenas de milhões.

Isso fazia sentido.

As armas convencionais e a magia eram ineficazes contra os Fragmentos. Suas características eram totalmente diferentes dos monstros normais, o que tornava difícil lidar com eles em um primeiro encontro.

A imagem de cidades em chamas e cidadãos sendo massacrados involuntariamente veio à mente.

— Então, qual é o seu plano?

Pria fechou os olhos por um momento antes de responder.

— Se tivéssemos a espada dimensional deixada por meu irmão, poderíamos enfrentá-los.

— Isso é verdade. Ela poderia fechar as rachaduras.

— Por enquanto, a única opção é reunir todos os refugiados em um só lugar. Se meu alcance não puder chegar até eles, não poderei salvá-los. Junto com os heróis, teremos que proteger a capital.

Sorri amargamente.

Uma estratégia puramente defensiva. Fechar uma rachadura não seria o fim de tudo. Com o passar do tempo, mais e mais apareceriam inevitavelmente.

— Han, você parece conhecer uma maneira de lidar com essas coisas. Ensine nossos guerreiros a combatê-las.

— Quantos vocês têm?

— Cerca de dez mil.

— Dez mil. 

Eles realmente esperam repelir os Fragmentos com apenas dez mil pessoas? E eles nem mesmo eram heróis. Pessoas comuns, sem habilidades, gravuras ou capacidades físicas aprimoradas.

Suspirei e voltei a falar.

— Eu ajudarei se puder.

— Obrigada. — Pria colocou as mãos cruzadas sobre a mesa e hesitou antes de olhar para mim, Velkist e Jenna.

— Há algo mais que você queira dizer?

— A próxima tarefa… pode colocá-lo em perigo.

— Apenas diga logo. Pare de fazer rodeios.

Yoshu olhou para Velkist com um olhar hostil, mas ele simplesmente deu uma risadinha e o ignorou.

Pria hesitou por um momento, depois colocou uma pedra translúcida sobre a mesa.

— O que é isso? — perguntei.

Pria bateu na pedra com o dedo e como um flash de uma câmera fotográfica, uma luz azul irrompeu da pedra, iluminando a mesa.

Duas imagens diferentes se materializaram acima dela.

É claro que era uma missão baseada em escolhas. Concentrei-me nas imagens pouco visíveis.

< Kraaaah! >

A primeira imagem mostrava um pequeno vilarejo com um moinho de vento em uma colina. O que antes era um lugar pacífico agora estava um caos.

< Eu vou matar você! EU! VOU! MATAR! VOCÊ! PRYOS! >

Um pássaro enorme, com a carne e os ossos grotescamente expostos, se enfureceu descontroladamente. Cada batida de suas asas espalhava sangue negro em todas as direções.

< Como se atreve… um humilde humano… como se atreve a me desafiar, o governante de dez mil demônios…! >

— Desligue o som. — Com um clique, o som desapareceu. — Shutenberg.

Ele não está morto. Bem, faz sentido, afinal é um ser transcendental. Nesse caso, não havia necessidade de olhar para a próxima imagem.

< Han, ele parece estar corrompido. Não há mais nenhum traço de razão nele. >

Halkion falou em minha mente. 

Era evidente que ele não estava em seu juízo perfeito. Shutenberg estava liberando tempestades mágicas maciças de forma imprudente.

Os aldeões já haviam sido exterminados há muito tempo, não deixando sequer cadáveres para trás. A própria aldeia havia sido remodelada de forma irreconhecível.

< Hahaha! Mas uma oportunidade é uma oportunidade. E pensar que ele apareceriam por vontade própria, poupando-nos o trabalho de caçá-lo. >

— Nos poupando o trabalho?

< Han, eu já te contei sobre seu potencial? Você é um recipiente excepcional, comparável ao nosso imperador. Você cresceu bem. Então, você não deveria consumir um outro ser ancestral? Se você absorver o Rei Alado Azul, ganhará poder mágico infinito. Se você absorver o Rei Terreno Vermelho, ganhará olhos que perfuram a realidade e a ilusão. Em todo caso, não há perda. >

— …

< Ou você pode ganhar a força necessária para avançar para sete estrelas eliminando esses dois. >

Uma nova opção para retornar à Terra, já que preciso me tornar um herói de sete estrelas. Isso significa que esses seres seriam ‘sintetizados’ em mim.

‘Parece que não tenho escolha.’

Afinal, a missão será decidida pela Mestra. Se essa caçada faz parte da jornada para alcançar o nonagésimo andar, não há outra opção além de aceitá-la.

Girei meus dedos.

Com isso, o procedimento foi concluído.

— Esses seres estão causando estragos em toda parte — falei calmamente.

— Isso mesmo. Os dois estão bloqueando as principais rotas para a cidade imperial. Por causa deles, os refugiados estão presos e isolados. Nosso exército também está reunindo tropas de elite…

— Não precisa. Vou eliminá-los rapidamente.

As imagens na mesa desapareceram e Yoshu inclinou a cabeça em minha direção.

— Desculpe por incomodar você de novo. Não estamos em uma boa situação…

— Não precisa dizer. É óbvio. Jenna, Velkist, esperem lá fora. Eu alcançarei vocês em breve.

Jenna e Velkist sairam rapidamente. Yoshu olhou para mim e para Pria antes de se curvar e sair também.

E então reinou o silêncio.

Pria não mudou, apesar de praticamente ter matado o próprio irmão e agora conhecer um futuro sem esperança.

— Você está preocupado comigo? — Pria falou em voz baixa. — Estou bem. Já tomei minha decisão.

— …

— Agora não tem mais volta. Só posso seguir em frente, não importa onde isso leve.

Fiquei em silêncio, apenas observando ela.

— Han, eu sei que você não é de Taoni.

— Vim de um planeta chamado Terra.

— Então não posso pedir para você ficar para sempre. Não posso pedir para alguém de outro lugar ficar aqui. — Pria sorriu por um momento. — Esqueça a promessa que fizemos. Faça o que puder enquanto a missão durar e depois volte para sua casa. Encontre sua própria felicidade lá.

— …

— Taoni não pode ser seu lar. Foi um erro meu pensar isso. — Pria se levantou da cadeira, se virou, e caminhou para fora da tenda. Com uma voz trêmula, quase inaudível, Pria murmurou ao passar por mim. — Me desculpe…

‘Meu Lar?’

Fechei meus olhos.