Capítulo 195: Difícil Manter a Paciência

Desde a aparição da entidade Er’Ika em Verdan, foi-se criado uma regra implícita entre os envolvidos no caso: esconda o máximo possível a identidade do receptáculo. As pessoas informadas naquele tempo foram tanto os membros que integraram o Tribunal Divino quanto algumas pessoas de fora, como o diretor Trion, quem presenciou a cena da cidade inteira se desmanchar diante de seus olhos por uma mancha preta no céu.

Eles também necessitaram de sua figura para encobertar o caso, revelando ser uma catástrofe mágica de proporções absurdas e uma possível coincidência de vários fenômenos acontecendo simultaneamente. Se somente a igreja falasse sobre o caso, seria difícil para acobertar aos não-fieis e aqueles de fora, logo, o diretor se provou essencial para a manobra de esconder qualquer informação disponível.

E isso era justamente o que fez os nervos de aço de Cristal derreterem. As veias pulsando pelo seu pescoço, pelo rosto e até pelo coração estavam tão latejadas que ameaçavam explodir. Seu rosto estava vermelho, era a primeira vez que Grey a via tão irritada. Ele também possuía uma raiva, mas não tanto quanto sua irmã.

Com uma pedra hexagonal na mão prestes a rachar pela pressão dos dedos, ela falou ao diretor:

— O que INFERNOS aconteceu? Liane voltou a pouco tempo me contando sobre tudo, e além dessa garota ser um enorme problema pra ele, ainda ousou provocá-lo. Você tem o mínimo de noção de como é importante manter o estado mental de receptáculos estável? O que faria se alguma coisa afetasse o selo?

— Ca-ham, veja bem… — A voz do outro lado vinha com um pouco de estática, talvez sinal da pedrinha prestes a quebrar. — Eu estou agora com a senhorita Solaris, quem deu o discurso. Quero garantir que ela também entenda.

— Hã? Você ainda quer envolver pessoas do exterior de Kirstein com isso?! Enlouqueceu, Trion?!

O cetro de Cristal bateu contra o piso, partindo-o no meio, enquanto as cores no rosto de Cristal ficavam ainda mais fortes. Nunca que uma emoção intensa desse jeito lhe afligiu, removendo sua serenidade e meiguice na voz, mimetizando um sargento de exército pegando no pé de recrutas.

Ela não sabia o que odiar mais, a situação ou a própria garota Solaris. Cansada, respirou muito fundo, puxando um pedaço de papel e uma pena.

— Já chega. Não permitirei nenhuma causalidade. Estarei escrevendo uma carta para Vossa Alteza Real para transferi-la de volta ao seu país, ela é uma ameaça ao reino. Não me importo se são os costumes, culturas ou seja lá o que, ainda tenho um povo para cuidar.

De repente, um som intenso de farfalhar veio do outro lado. Era Trion lutando contra alguma coisa, até repentinamente aparecer uma resposta com a voz de uma garota.

— Senhora Santa?

Cristal parou de escrever. Seus olhos se voltaram para frente, ainda contidos na ira.

— Diga logo, antes que eu termine a carta.

— Pode não escrever esta carta, por favor?

— Me dê uma boa e agradável razão para não fazê-la.

— Isso pode ferir o relacionamento entre Kirstein e Coraci. Ambos os líderes não desejam isso.

— Ah, mas ele vai desejar se a princesinha deles pode ser uma ameaça a destruição de cidades ao reino, não é mesmo?

Solaris, do outro lado da ligação, emudeceu, pensando sabiamente nas próximas palavras. Demorou tempo demais para um pouquinho de consciência descer, ligar os pontos e finalmente entender o que estava fora do lugar. Ela engoliu seco.

— Mil perdõ… es. — A voz saiu toda travada, uma clara dificuldade de pedir desculpas. — Vou me abdicar daquele discurso com um novo, então…

— Faça isso e eu envio a carta para o rei. Não mencione, sequer dê atenção a ele. Apenas fique longe e mantenha sua boca fechada, fui clara?

— Sim…

Com isso, a ligação terminou. Cristal respirou muito fundo antes de afundar a pedra de comunicação na mesa de madeira, quebrando o dispositivo por completo. Lascas de pedra caíram de seus dedos, enquanto o ódio incendiário demorou para se dissipar. O rosto dela ficou vermelho pelo que pareceu uma eternidade, enquanto os olhos injetados matariam qualquer um que a encarasse diretamente.

Passando a mão no cabelo, seus olhos fecharam com força.

— Mãe Lithia, me dê forças para o controle. Me dê forças para não me irar contra ninguém. Consola o meu coração…

Ela recitou a oração baixinho, falando consigo mesma enquanto apertava o colar triângulo preso no pescoço. Andou de um lado para o outro, buscando a paciência dentro de si, e só depois de encontrá-la, permitiu soltar os sentimentos raivosos para dar lugar a calmaria. Seu corpo retrocedeu naquela aparência assustadora, sem veias estourando ou uma face de tomate.

Andou em círculos pelo recinto, e só quando estava em plena consciência, terminou de escrever a carta e guardou-a gentilmente numa gaveta. Quando precisasse, poderia usá-la como ferramenta para ameaçar a princesa de Coraci, mesmo que os dogmas da igreja fossem altamente contra esse comportamento. Pecando, era a única forma que via para salvar muitas vidas.

— Espero que a deusa me perdoe pelo comportamento e pelo que estou fazendo.

— Ela entenderá, irmã. Está tudo bem.

— Tomara, sim, tomara. E Liane?

— Ele se encontra nos aposentos do bispo Vylon, meditando.

Cristal acenou positivamente com a cabeça. Nos últimos anos, fizeram de tudo para que o estado mental do garoto se mantivesse bem, do contrário, suas flutuações de humor poderiam afetar o selo e manifestar parte dos poderes da entidade. Para evitar isso, escolheram uma série de atividades diferentes, uma delas era a meditação, ensinada pessoalmente por Vylon.

Até então, funcionou como uma luva. O garoto se induzia a um estado de controle maior, e quando estava sob estresse, bastava cruzar as pernas e fechar os olhos. Ele dizia ter medo do que viria dentro de si, mas no final acabou gostando e aderiu a proposta. A santa arrumou a franja e limpou o suor da testa.

— Certo. Fique mais vigilante nos arredores dele. Não permita Solaris agir livremente perto de Liane. impeça qualquer tentativa dela de se aproximar ou coisa do tipo, corremos o perigo dela ativar mais memórias ou desestabilizar o estado mental de Liane. Tenha o máximo de cuidado, Grey.

O paladino balançou a cabeça, saindo da sala. Cristal apoiou as mãos no peito, retornando a sua oração.

— Lithia, mãe de minha mãe, proteja aquele pobre garoto, por favor…